Esta série de estudos dialogará com a ética de Paul Ricoeur, mais especificamente com o livro O si-mesmo como outro (1990). O filósofo francês define desta maneira a sua pequena ética: “A visada da vida boa, com e para outrem em instituições justas” (RICOEUR, 2014, p. 186). O diálogo com um pensador da envergadura de Ricoeur traz uma série de desafios. A sua filosofia é absolutamente viva e dialógica com o mundo da realidade. Os seus escritos são capazes de nos tocar, levando-nos a uma formação mais humanista em que se percebe uma relação fundamental entre cuidado de si, cuidado com o outro e, também, cuidado com o mundo. A filosofia de Ricoeur tem a capacidade de interpelar as pessoas muito em razão de ser um pensamento sobre a ação.
Serão tratados nesta série de três ensaios o desenvolvimento da ética prescrita em seu livro O si-mesmo como outro. De certa maneira, a obra apresenta-se como um desdobramento das teses, desenvolvidas nos anos 1980, de Tempo e narrativa. Seria por meio da narrativa que se chegaria a uma compreensão arrazoada de nós mesmos. A narrativa é a melhor maneira de se conhecer – de se poder estabelecer uma identidade (ipse). Esse é um movimento simultâneo, pois implica o reconhecimento da mesmidade e das mutações, além da narração impelir uma percepção possível projetada junto ao plano da alteridade. Desse modo, tentaremos ver como o livro de Ricoeur escrito em 1990 dá prosseguimento a problemáticas já conhecidas. No primeiro estudo, este que se apresenta, veremos os contornos da sua ética, que se desenvolve por meio da dialética entre estima de si e solicitude sob mediação da amizade. O segundo ensaio tratará dos problemas das instituições justas e da moral. No último trabalho nos aventuraremos no problema da sabedoria prática. A ética de Ricoeur responde, sendo possível assinalar, a demandas de um viver bem e responsável, não só individualmente, mas em sociedade. Poderíamos dizer que o seu projeto filosófico se ampara em uma ética do cuidado.
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O pensamento ético de Paul Ricoeur direciona-se para a chamada vida boa, no sentido que foi atribuído por Aristóteles. Seria o desejo de viver bem, que viria até mesmo antes dos enunciados normativos, da moral das normas como ele disse em A crítica e a convicção. Esse ideal recuperado dos gregos tem a ver com a possibilidade de se apreciar as próprias condutas de maneira racional, de (auto)avaliar-se ao ponto de poder se estimar perante a si, perante os outros e diante da sociedade. Há a aproximação entre Aristóteles e Kant, sendo que do primeiro a ideia de bom não acarretaria um movimento valorativo, mas caminharia para o sentido do virtuosismo, de se atingir a felicidade. Enquanto que do filósofo alemão a discussão é em termos deontológicos: de universalização de um agir moral. A fusão das disposições teleológicas e deontológicas resulta em três apontamentos práticos: “1) que a estima a si mesmo é mais fundamental que o respeito a si mesmo; 2) que o respeito a si mesmo é o aspecto assumido pela estima a si mesmo sob o regime da norma; 3) que as aporias do dever criam situações em que a estima a si mesmo não aparece apenas como fonte, mas como recurso do respeito (…)” (RICOEUR, 2014, p. 185-186).
Ou seja, a ideia de si está relacionada com a estima, com um compromisso ético, enquanto que o respeito passa pelo nível moral. Esse gesto transforma-se naquilo que o filósofo chamou de sua “pequena ética”. O viver bem é o intuito da sua filosofia. É a busca do viver bem consigo mesmo, voltando-se, também, para o outro a partir de instituições justas. A sua ética quer assumir essa visada, que resume uma prática e um plano de vida. Só é possível se chegar à boa vida a partir do momento que ela pode passar pelo escrutínio daquele que almeja esse ideal. A pessoa torna-se, nesse sentido, protagonista da sua vida, podendo ponderar sobre a sua própria trajetória. É a vida em estado de realização, sendo que o foco do filósofo francês está no agir, de forma tal que se possa escolher, a partir do entendimento racional de si, a felicidade. É uma espécie de ontologia, um olhar para vida que se torna realizada por meio da escolha e do acolhimento desta escolha. A vida boa que leva à felicidade seria, então, aquela em que se descobre a sua função, a sua tarefa, ou a sua obra. Se cumprindo bem esse itinerário, passível de racionalização, se viveria, em tese, feliz. A vida boa é, nesse sentido, aquela que possibilita a autorreflexão e que se lança ao bem, felicidade do existir e habitar o mundo.
A vida boa é possível pela estima de si, bem como pela capacidade humana de escolher e movimentar ações que alteram o sentido dos fatos, o que retira as pessoas de qualquer forma de determinismo. Aquela tendência autorreflexiva implica, em Ricoeur, estimar-se. Há uma intricada relação entre intepretação e estima de si. Pode-se dizer que a estima de si é o que dirige as ações das pessoas – a sua práxis. De acordo com o filósofo, é por meio do gesto autorreflexivo que poderemos nos entender e nos sentir autores de nossas vidas, o que sugere o encontro em sentido dos acontecimentos e da ação.
A estima de si, dentro do projeto ético de Paul Ricoeur, deve se conectar com o plano social, com o entorno, com os outros. Essa disposição das pessoas Ricoeur concebe como solicitude, que seria a boa vontade em voltar-se para o outro – um estar receptivo em modo ativo. A disposição da solicitude não está desvinculada da estima. Na verdade, são polos que se encontram e se informam mutuamente. Estima de si e solicitude compreendem a ética de Ricoeur, sendo que atuam em modo dialógico e interacional.
Mais uma vez o dialogo de Ricoeur se volta para a filosofia do estagirita. Dessa vez para o sentido assumido pela amizade em sua Ética a Nicômaco, em que fica evidente a carência das pessoas pelo contato com o outro. Para além de alcançar a vida boa pela autorreflexão as pessoas têm carência de contato, de viver com os outros, de ter amigos. A solicitude implica, nesse sentido, a instauração de um plano de reciprocidade, aquela dialética do dar e do receber. Mas não seria um movimento amparado em um dever, mas numa espécie de espontaneidade. Podemos acompanhar a reflexão do filósofo, que indica a “dimensão de valor que faz cada pessoa ser insubstituível em nossa afeição e em nossa estima” (RICOUER, 2014, p. 213). A solicitude favorece, de certa maneira, o gesto do estimar-se, isso porque na “experiência do caráter irreparável da perda do outro amado que, por transferência de outrem para nós mesmos, ficamos sabendo do caráter insubstituível de nossa própria vida” (RICOEUR, 2014, p. 213).
Assim sendo, alcançar a vida boa é projetá-la com os outros, sendo estes mediadores entre nós e o entorno, o que nos faz habitar o mundo de maneira realizada. Aristóteles é, em todo caso, chamado por Ricoeur para a discussão, porque o filósofo antigo acredita que para se ter amigos é necessário ser amigo de si, que é justamente o que a vida boa pede: estimar-se. O estudioso francês é muito claro com relação ao sentido da amizade: ela não espera nada do outro a não ser aquilo que ele é, não subtraindo e sempre somando. Pela amizade se estabelece a solicitude em perspectiva dialogal, na medida em que se verifica o reconhecimento do outro e, correlatamente, se promove a estima de si, que não pode ser assimilada completamente sem dispor desse gesto de reconhecimento anterior.
Paul Ricoeur explica o caminho dialógico entre estima de si e solicitude. O que o filósofo, amparado na noção de amizade proposta por Aristóteles, invoca é que não seria possível estimar-se sem estimar o outro como a si mesmo. “Como a mim mesmo significa: tu és capaz de começar alguma coisa no mundo, de agir por razões, de hierarquizar tuas preferências, de avaliar os objetivos de tua ação e, ao fazeres isso, és capaz de estimar-te a ti mesmo assim como eu mesmo me estimo (RICOEUR, 2014, p. 214).
A amizade acaba sendo, então, o eixo mediador entre o estimar-se e a solicitude. O movimento não é de difícil compreensão, sendo significativa a contribuição de Ricoeur para o plano ético: o que o estabelecimento do pacto de amizade confere é, por um lado, o reforço da estima de si, quer dizer, o gesto de reconhecimento das nossas capacidades e boa direção das ações, e, por outro, o viver a vida feliz com e para o outro, acionando a solicitude. Aqui um ponto importante: o respeito aparece como componente necessário para o estabelecimento entre ética e moral. A amizade, nesse sentido, só pode se estabelecer no plano ético, ou seja, na negação de atitudes egoístas e na eleição do bem comum, o que implica respeito a si mesmo e ao outro. Os amigos são capazes de tornar a tragicidade da vida mais amena, o que invoca a questão das instituições justas, que no caso são família, tradição, grupos em geral e a própria linguagem. A amizade é, nessa direção, o caminho para o respeito com o outro.
REFERÊNCIAS:
RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
Créditos da imagem: Reprodução: A metáfora em Paul Ricouer. Rafael Antonio Blanco.
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Piero Detoni
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