Na última semana as redes sociais foram invadidas por uma nova polêmica: o artigo de Lilia M. Schwarcz, publicado no jornal Folha de São Paulo, no dia 02/08/2020, sobre o vídeo Black is King, da cantora pop Beyoncé. O vídeo, de cerca de uma hora e meia de duração, é uma profusa junção de imagens que vão de um continente africano místico a imagens da pobreza e desigualdade contemporâneas. A narrativa dialoga com o filme O Rei Leão e é também uma produção da Disney. No centro da narrativa, personagens negros ocupam a realeza e desenvolvem seu protagonismo. Frases exaltando a beleza dos negros e o poder do corpo feminino surgem com frequência ao longo da trama. A mensagem é clara: eles podem (e devem) ser protagonistas de sua própria história.
Mas para Schwarcz é justamente a história o principal problema do vídeo: perdeu-se a oportunidade de demonstrar a complexidade do passado africano para em seu lugar apresentar “imagens estereotipadas” e uma “África caricata e perdida no tempo das savanas isoladas”. A antropóloga também disse duvidar se jovens se reconheceriam “no lado didático dessa história de retorno a um mundo encantado e glamorizado, com muito figurino de oncinha e leopardo, brilho e cristal”.
Como não poderia ser de outro modo, em tempos polarizados como os nossos, integrantes dos movimentos negros, bem como indivíduos que se sentiram atingidos, criticaram com afinco o artigo de Lilia Schwarcz, chegando a afirmar que não caberia a ela, uma mulher branca, dizer o que uma artista negra deveria (ou não) fazer. Dada a intensidade que a polêmica tomou, Schwarcz reconheceu os problemas de seu texto e pediu desculpas. No entanto, o tema continua dando o que falar.
Quando uma polêmica ganha muita intensidade, ela tende a girar gravitacionalmente em torno de um ponto cego. Os argumentos arranham a superfície do problema, mas poucas vezes atingem seu núcleo. Tudo se transforma em um verdadeiro debate de surdos, onde as paixões dominam a razão e ninguém está realmente interessado em ouvir o outro. Os campos também se dividem em afinidades: quem gosta do fulano se posiciona a seu favor e quem prefere o ciclano faz a mesma coisa – ainda que se tente ocultar essa afinidade através de argumentos coerentes e racionais.
Os debates acerca das questões humanas não são exatos, sendo assim, buscar verificar quem está certo ou errado e atacar violentamente o outro é ótimo artifício retórico, mas pouco eficaz quando se pretende chegar a algum lugar com a discussão. Nesse sentido, para além das questões passionais, fica a dúvida se censurar ou “cancelar” Schwarcz é realmente benéfico. Penso que não, porque acredito que a censura nunca é benéfica e é sempre anti-iluminista. Anti-iluminista porque limita a liberdade individual de se expressar (que fique bem claro que essa liberdade de expressão deve ser barrada quando caminha em direção ao racismo ou a qualquer outro ato criminoso) e porque é apenas com a livre expressão que se pode ter o debate ˗ mecanismo que aperfeiçoa nosso pensamento crítico, fundamental para qualquer melhoria da vida social. Censurar ou “cancelar” tampouco faz com que algo deixe de existir, mas antes alimenta o ressentimento e potencializa o revanchismo. No atual contexto político, no qual a extrema-direita vem ganhando amplo espaço, em grande parte devido ao ressentimento que setores privilegiados (fundamentalmente homens, brancos, heterossexuais e, principalmente, economicamente elitizados) sentiram ao perder uma parte insignificante de seu quinhão de poder em um país tão desigual como o nosso, é fundamental estar atento aos riscos do ressentimento. O que não significa que se deva recuar na luta, mas reavaliar nossos passos (e aqui não digo dos movimentos ou grupos identitários, mas dos setores progressistas como um todo).
Mas defender o direito de Lilia Schwarcz se expressar não significa estar de acordo com ela, mas antes defender um direito que só pode se concretizar se for estendido a todos (aos que dizem que o Iluminismo é uma ideia exclusivamente branca, eu afirmo que essa é uma concepção eurocêntrica e que basta olhar para a Independência do Haiti para ver como os negros o expandiram e radicalizaram). A partir disso, digo: o artigo de Lilia Schwarcz, ao que pese toda a erudição despejada nele, é bastante fraco. Talvez ela já tenha se dado conta disso e por isso pediu desculpas. Mas ele não me parece fraco porque ofende os setores que Beyoncé procurou defender (essa não foi a intenção de Schwarcz), mas porque se fundamenta a partir pontos equivocados. Além disso, o texto é hesitante, impreciso e, em alguns momentos, beira ao desconexo – ela elogia Beyoncé e o filme de forma vazia, sem dizer seus aspectos positivos, apenas para criticar sua romantização do continente africano. Schwarcz é uma intelectual experiente e provavelmente sabia que estava patinando em gelo fino. A impressão que passa é que queria se expressar, criticando a obra e a cantora, mas sem estender essa crítica aos movimentos negros e aos negros em geral. Apostou até que eles não se sentiriam identificados com o continente africano que Beyoncé – e seus produtores – buscaram representar. Bom, apostou errado.
Mas conforme a polêmica avança, um equívoco ainda mais fundamental de Schwarcz parece ter passado despercebido: a obra de Beyoncé, Black is King, é uma obra ficcional e os discursos mais racionalizadores – a História e a Antropologia, embora sejam mais conscientes de seus próprios elementos ficcionais, ainda tem sérias dificuldades de lidar com isso – poucas vezes se atentam para os elementos que constituem a ficção. Antes mesmo de chegar ao ponto de que se Lilia Schwarcz pode ou não dizer o que disse do vídeo de Beyoncé, deve-se atentar que ela analisa uma obra ficcional a partir de valores historiográficos. Talvez sem ter tido consciência do que fez, ela entendeu que seria correto subjugar a liberdade ficcional aos parâmetros históricos. Claro que isso não significa que a crítica que a intelectual fez ao filme não possa ser feita, mas ela será, inevitavelmente, “manca” e egocêntrica, no sentido de que implica julgar o que Beyoncé fez e suas intenções ao fazê-lo, a partir daquilo que se acredita ser o melhor, de acordo com suas próprias concepções intelectuais. E é aí que, mais uma vez, o artigo falha, não de maneira superficial, mas em seus fundamentos.
Beyoncé e seus produtores não buscavam fazer uma reconstrução histórica do continente africano, mas sim formular um passado imaginário – e ficcional – que pudesse mostrar a dignidade dos negros (e da mulher negra). A ficção é conformadora de identidades (as próprias identidades são ficcionais) e é por isso que Black is King serviu aos propósitos de Beyoncé e, ao contrário do que apostou a antropóloga, foi reconhecido por muitos jovens. Se Black is King inventa um passado que não existiu, é uma ficção que se projeta para o presente e para o futuro: busca dar poder a quem sempre o teve negado e, quem sabe, diminuir o sofrimento psíquico (e muitas vezes físico) daqueles que são vítimas de uma opressão histórica e cotidiana. As ficções – e aqui me aproprio das ideias de Jacques Rancière – possuem a capacidade de embaralhar e modificar nossas sensibilidades a respeito dos elementos presentes em nosso cotidiano. Ou seja, elas mudam nossos modos de ver, perceber, sentir e se relacionar com temas que são públicos. Elas podem tirar e dar poder. Isso está claro no vídeo e na polêmica dele resultante.
Quero deixar bem claro que respeito o trabalho e a pessoa de Lilia Schwarcz. Não pretendo ensiná-la o que ela já faz de maneira brilhante. Mas chamo a atenção para as dificuldades que os que se dedicam às ciências humanas tem para se pensar teoricamente a ficção (e sei que Scwarcz fez isso em outros momentos, o que me faz pensar que o artigo tenha sido um lapso). E também para como a reflexão teórica está sempre alinhada às nossas práticas intelectuais e sociais.
Termino dizendo que, no caso da censura ou do “cancelamento”, existe uma sutil diferença entre dizer que “não se deve” e que “não se pode” fazer algo. Dizer que não se deve é uma questão normativa: entende-se que ela pode, mas não seria adequado. Talvez tenha sido o que ocorreu e Schwarcz percebeu isso. Ainda assim ela tem a liberdade de errar. As críticas a ela, por outro lado, chamam atenção para o que “não se pode” e isso é um fato: mesmo se ela tivesse toda a boa vontade e disposição para isso, é impossível para ela se sentir como uma mulher negra. Esta é uma condição existencial e não essencial.
Acredito que todos vamos aprender algo com a polêmica. Se isso ocorrer, demonstrará o acerto de minha crítica à censura ou ao “cancelamento”. Tais posturas não são viáveis, pois visam a um convívio artificial com o semelhante, nos afastando da real dimensão da sociedade – e do conhecimento – que exige o convívio com o diferente, o contraditório e, muitas vezes, o desagradável. Esta não é uma questão de gosto ou afinidade, mas da própria existência. Temos um longo caminho pela frente se nosso objetivo é a construção de um mundo profundamente democrático. As “minorias” sabem disso melhor que todos.
REFERÊNCIAS
RANCIÉRE, Jacques. Política de la literatura. Buenos Aires: Libros del Zorzal, 2011.
SCHWARCZ, Lilia M. Filme de Beyoncé erra ao glamorizar negritude com estampa de oncinha. Folha de São Paulo, São Paulo, 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/08/filme-de-beyonce-erra-ao-glamorizar-negritude-com-estampa-de-oncinha.shtml. Acesso em: 07/08/2020
Créditos na imagem: Arte da capa do LP Bitches Brew de Miles Davis.
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