Alguns comentaristas e políticos ficaram surpresos com a força da reação na Grã-Bretanha ao assassinato de George Floyd nos EUA. Mas não há motivo para perplexidade. O grande número de pessoas que estão se organizando, reunindo, protestando e, às vezes, derrubando estátuas, também estão ocupadas em fazer as conexões que informam seus protestos. Elas sabem que a Grã-Bretanha não é os EUA e, em particular, que a população deste país não inclui uma grande minoria de pessoas que são descendentes de escravos – ou, pelo menos, não de escravos que viviam nesse país. Mas eles também estão cientes de que os navios negreiros que levavam homens e mulheres negros da África para as ilhas dos EUA e do Caribe costumavam navegar sob bandeiras britânicas e que os comerciantes britânicos – incluindo Edward Colston e Robert Milligan- fizeram fortunas com o tráfico de pessoas. Eles sabem que o estado britânico engordou com os lucros coloniais derivados de seu domínio coercitivo e muitas vezes violento sobre seus súditos distantes na África, Índia e outras partes do mundo . Eles estão fazendo outras conexões também. Eles observam que as maiores cidades da Grã-Bretanha estão inundadas de estátuas de traficantes de escravos (geralmente descritos com eufemismos em placas como ‘comerciantes das Índias Ocidentais’). Observam que há celebrações daqueles que governavam despoticamente os súditos coloniais da Grã-Bretanha, mas dificilmente qualquer esforço de memorialização pública da escravidão ou do sofrimento de súditos coloniais . Eles nos lembram que o assassinato e a exploração britânica de pessoas negras e pardas aconteciam no exterior – o que torna tudo mais fácil de ignorar e esquecer – mas não por isso menos real. Eles chamam a atenção para outros fatos incontestáveis, incluindo o caráter racializado de desigualdade de renda, das taxas de encarceramento e de saúde (brutalmente destacados pela crise da Covid-19) no Reino Unido e nos EUA. Eles apontam a mancha indelével de autoridade e poder que as estátuas deixam no espaço público, demarcando-o como hostil a alguns britânicos, antes mesmo que a política de abordagem e revista policial maciça tenham tornado essa delimitação ainda mais concreta.
Juntar os pontos é o primeiro passo para ver padrões onde antes havia apenas fatos isolados e coincidências infelizes. À medida que começa a reunir eventos históricos aparentemente díspares, o movimento contra o racismo cresce em abrangência e escopo. Pode perceber mais claramente que a desapropriação e o genocídio dos povos indígenas das Américas e da Austrália fazem parte do mesmo panorama histórico que dá origem às injustiças contra as quais suas lutas são dirigidas. Revela que as fronteiras pelas quais os EUA procuram situar-se fora da América Latina, e a Europa fora do norte da África, não separam civilizados e incivilizados, democracias de autocracias, mas, antes, buscam separar os privilegiados daqueles cujo trabalho tem sido a fonte de muitos de seus privilégios. Observando esses protestos no Reino Unido e em outros lugares, parece que estamos assistindo não apenas a um movimento de massas, mas um movimento que opera como uma sala de aula – mas cheia de energia intelectual. Os manifestantes, muitos deles jovens, porém já amadurecidos, estão fazendo a ligação entre a história do colonialismo, a história da escravidão e o racismo estrutural que é o seu legado. Eles estão fazendo isso apesar de sua educação formal, e não porque esta lhes deu essa oportunidade. A rua é a sala de aula porque as salas de aula falharam.
Nós levamos mais de uma década na Goldsmiths revendo nossos cursos de modo que passassem a vincular questões e lutas contemporâneas, incluindo o Black Lives Matter, a política de monumentos públicos e as numerosas lutas contra o neocolonialismo no Sul Global, com as histórias de conquista e colonialismo que os fizeram necessários. Ao fazê-lo, ficamos impressionados e satisfeitos com a ânsia, a sede, com a qual nossos estudantes debatem colonialismo, raça, escravidão, conquista e expropriação. Às vezes, sentimos como se não estivéssemos ensinando, mas fornecendo as matérias-primas que permitem aos nossos alunos entender a experiência vivida e traduzi-la em ação. Em certos momentos, nossos alunos se tornam nossos professores, como durante a ocupação notável da Goldsmiths em 2019, quando os alunos exigiram que a instituição enfrentasse e abordasse sua própria cumplicidade na reprodução do racismo estrutural.
Isso acontece apesar do fato de que nossos alunos geralmente chegam até nós sem ter encontrado essa história no decorrer de seus estudos, pois, por incrível que pareça, ainda é possível estudar história e política na escola e quase não enfrentar o passado imperial da Grã-Bretanha. Isso os torna ainda mais ansiosos para aprender sobre esse passado, e para conectá-lo com o seu e o nosso presente. Isso também não ocorre porque quase metade do nosso corpo discente é negro, asiático ou de minoritária étnica britânica; assim como os manifestantes, nossos alunos mais apaixonados podem ser tanto brancos como negros ou asiáticos.
Os ativistas envolvidos nessa luta estão estabelecendo conexões, assim como nossos alunos, muitos deles ativos no movimento, vêm fazendo conexões na sala de aula. Como professores, apenas ensinamos que a sala de aula e a rua estão perfeitamente integradas; os ativistas do Black Lives Matter e outras organizações estão demonstrando que é assim. Com base em nossa experiência como professores universitários, não estamos surpresos que o assassinato de George Floyd nos EUA tenha injetado energia renovada nos movimentos contra o racismo em todo o mundo, principalmente na Grã-Bretanha. Não há motivos para choque ou surpresa aqui.
Os autores deste artigo dirigem o Centro de Estudos Pós-coloniais em Goldsmiths, Universidade de Londres.
Créditos na imagem: A estátua de Robert Milligan foi coberta com tecido e placa de Black Lives Matter antes de ser removida. Fonte: Wikpedia.
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Sanjay Seth
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