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A sétima arte exclui o ”aqui e agora”?
Ensaios e opiniões

A sétima arte exclui o ”aqui e agora”? 

 

O cassaco de engenho

dorme em sala deserta:

A nenhum sonho-filme

assiste, nem tem tela.

João Cabral de Melo Neto

 

Em 2019, Bacurau, longa do Kleber Mendonça, estava movimentando o cinema. É importante aqui relembrarmos o filme. Em suma, Bacurau tem em vista criticar o imperialismo norte americano a partir de uma narrativa que explora o confronto entre algozes estadunidenses e cidadãos simplórios do sertão do nordeste brasileiro. Até então, não se nota nada muito inovador, tendo em vista que temas como esse mostram-se tendência: em 2018, Democracia em Vertigem, em 2019, Coringa e em 2020, O Poço. Todos esses filmes refletem uma estrutura política problemática que se observa no Ocidente contemporâneo. Como coloca Virginia Woolf (2014, n.p), ”A ficção precisa se ater aos fatos, e quanto mais verdadeiros os fatos, melhor a ficção.”

Antes de prosseguir, não posso deixar de fazer um adendo: é curioso colocar um filme situado no universo Batman (Coringa) em uma lista de filmes politizados. Como nos lembra Augusto Boal (2008, p.151):

 

Filmes made in Hollywood ocupam, no Brasil, dois terços dos cinemas com suas armas anestésicas da sensibilidade e letais à inteligência(…).Nos primeiros meses de 2007, oitenta por cento de todos os cinemas brasileiros foram invadidos e ocupados por dois ou três filmes dessa laia, 1, 2 e 3 homens-aranha e carrapato.

 

Isso remete a uma questão que intriga a todos os adornianos: por que a indústria capitalista, da qual Coringa é oriundo, financiaria uma crítica contra si mesma? Nesse viés, questiona-se se o cinema é capaz de provocar a emancipação em vez da alienação. No meu ponto de vista, a resposta se aproxima da opinião do Mark Fischer (2009, n.p), segundo a qual os filmes realizam o anticapitalismo por nós. Mas essa é uma conversa para outra hora.

Para retomar ao assunto de interesse principal, o que há de diferente em Bacurau em relação a muitos outros filmes é o fato de que, na sessão em que eu estava, em uma determinada cena, na qual um estadunidense é morto pela primeira vez — o que indica uma reviravolta na história — houve aplausos na sala de cinema. Depois eu soube que isso se deu em diversas ocasiões em que o filme foi exposto. Além disso, em sua exibição no festival de Cannes, ainda que os aplausos exagerados sejam típicos desse festival, houve consideráveis sete minutos de aplausos[1]. Bacurau se destaca por ter sido excessivamente aplaudido.

A cena que foi alvo de aplausos pode ser descrita da seguinte forma: a personagem interpretada pela atriz Ingrid Trigueiro e o personagem interpretado pelo ator Carlos Francisco, que formam par romântico, encontravam-se nus, visivelmente à vontade, enquanto cuidavam das suas plantas no seu recinto — é interessante comentar que a população de Bacurau, atravessada por saberes tradicionais, tinha conhecimento fitoterápico e tinha o hábito de usar uma semente psicoativa em situações específicas —. Havia algo de pacato na cena, até que Kate (Alli Willow) acompanhada por Willy (Chris Doubek), personagens pertencentes a um grupo de estrangeiros que encontravam diversão matando sujeitos subalternizados, estavam armados e põem-se a postos para acertar o casal. Quando Willy estava perto de atirar, para a surpresa de todos: é ele quem sofre o golpe. Em uma cena sangrenta, que nos faz lembrar de Tarantino, a cabeça de Willy explode. Apesar do ocorrido, Kate não desiste de atacar e se inicia uma troca de tiros, da qual Kate sai ferida. Então, o casal aproxima-se dela, que estava caída no chão, e pede para que ela escolha: ”você quer viver ou morrer?”

Muita comoção também foi desencadeada a partir da frase final do longa que indica o quanto de empregabilidade a produção do filme gerou, a fim de destacar a importância do cinema para a economia. Sobre isso, Kleber Mendonça declarou que ”cultura também é indústria”. Novamente, os adornianos e outros pensadores que dialogam com as ideias da Escola de Frankfurt se sentiriam profundamente incomodados com essa afirmativa, mas não pretendo explorar esse ponto aqui.

É preciso ter em mente que Bacurau visa ilustrar o momento político atual ou futuro, como disse o próprio diretor. Isso parece indicar que houve uma motivação política para esses aplausos, e por isso, faz-se necessário pensar tal situação com cuidado. Tendo isso em vista, os referidos aplausos parecem extrapolar o nonsense e indicar algo que reside no âmbito do social, afastando-se de outros casos de aplausos em salas de cinema. Por exemplo, aplausos diante de uma cena romântica, o que é simplesmente piegas e talvez até, uma atitude absurda, ou seja, uma atitude em direção ao nada, uma atitude esvaziada.

Sobre isso, Kleber Mendonça e Juliano Dornelles foram enfáticos ao declarar que eles estavam engajados enquanto escreviam o roteiro e, possivelmente por isso, o filme teve tamanha repercussão. Quer dizer, eles estavam longe do escritor estereotipado que escreve isolado, referido por Nietzsche (apud FLUSSER, 2019, p.133) na seguinte citação: ”o autor mítico cria na solidão da geleira, nos mais altos picos.” Como se sabe, o autor enquanto o fundador, o Grande Homem, não apenas se tornou redundante como estritamente impossível na contemporaneidade (FLUSSER, 2019, p. 134). Então, é de bom tom a iniciativa dos roteiristas em vista a ”desconstruir” esse estereótipo ultrapassado.

A fim de investigar essa repercussão de Bacurau, cabe pensar na ideia de Walter Benjamin com relação ao aqui e agora da obra de arte. ”O aqui e agora” caracteriza a obra de arte aurática, ou seja, aquela que é singular e, por isso, oferece uma experiência estética ampliada e autêntica. No pensamento benjaminiano, a obra de arte aurática se opõe à obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Isso acontece em função do fato dessa última ser reproduzida em massa, o que faz com que a instância do ”aqui e agora” torne-se deficitária, senão inexistente.

Para melhor compreensão, o autor apresenta o cinema em contraste com o teatro. No cinema, a relação dos espectadores com os produtores e artistas é mediada pela câmera e outros aparelhos, ao passo que no teatro, essa mediação não existe. Segundo Benjamin (2013, n.p), o diferencial do cinema é ”colocar a aparelhagem no local do público.” É esse o ponto que as reflexões sobre Bacurau nos permitem refutar.

Como fica claro nos momentos dos aplausos, diferentemente da câmera, os espectadores na sala de cinema não são inertes ou reféns da ação alheia. Ou seja, os espectadores não são isentos de agência — motivo pelo qual Augusto Boal opta pelo termo ”espectatores” em vez de ”espectadores” —. Além disso, não é como se a reação do público fosse desprezível e não tivesse efeitos sobre a repercussão do filme.

No cinema, os aplausos apontam para um tipo de interferência inesperada por parte da plateia. Já que, convencionalmente, os aplausos visam homenagear os artistas presentes e, no caso de exibições em salas de cinema comuns, os artistas que estariam sendo homenageados por essas palmas não as escutam — o que não significa dizer que elas não reverberam —. Visto que nesse contexto os aplausos se constituem como um elemento inesperado e, por isso, estão relacionados à espontaneidade e ao contato imediato entre os espectadores ali presentes, é possível pensar que esse elemento aproxima a instância do aqui e agora do cinema.

No caso de Bacurau, as palmas parecem ser uma catarse em resposta a uma problemática que extrapola as telas. ”Catarse”’ é um termo que originalmente diz respeito ao alívio relacionado à arte e depois foi deslocado para o alívio relacionado aos desbloqueios propiciados pela psicoterapia. De acordo com a definição do dicionário, essa palavra é oriunda do grego, katharsis, que significa purificação, alívio da alma pela satisfação de uma necessidade moral (HOUAISS, 2001, apud ALMEIDA, 2010 p. 76). O termo surge em Ars Poética de Aristóteles, que estudou precisamente o comportamento da plateia do espetáculo, concluindo que a tragédia só se completaria como arte se conseguisse mobilizar as reservas afetivas do público, provocando o exorcismo do coletivo (ALMEIDA, 2010, p. 77).

Além de evocar catarse, tais aplausos evocam também o sentimento efêmero de união e identificação política entre telespectadores desconhecidos que nem se enxergam na escuridão da sala de cinema. Assistir a um filme e expressar uma reação em conjunto com as demais pessoas ali presentes — que provavelmente só estarão todas reunidas naquele momento e para isso — revela-se uma experiência estética única e irreproduzível. Por isso, é fácil notar um sentimento vivificante especial, talvez singular, naqueles que estavam ali presentes. Assim, é possível afirmar que a experiência teria sido outra se essas pessoas tivessem assistido ao filme em casa, isoladamente. Do mesmo modo, o impacto desse longa teria sido outro se, como agora, não fosse possível ir ao cinema. Já que esses ”aplausos generalizados”, por assim dizer, foram muito comentados, o que naturalmente trouxe ainda mais repercussão ao filme.

O ponto é que apesar de o filme ser o mesmo, ele não é igual em todas as suas reproduções, visto que, aqueles que o assistem, estejam sós ou em grupo, estejam no cinema ou em casa, têm variadas formas de recebê-lo e reagir ao que recebem. A recepção de um filme é sempre atual porque é condicionada pelo tempo histórico em que o filme está sendo assistido. E é em função dessas várias formas de recepção, que implicam em manifestações diversas e não desprezíveis, que se faz notar que o cinema é permeável pelo ”aqui e agora”. Já que o espectador é um agente e não uma máquina, a recepção de um filme não é maquinal. Ainda que a sua produção e reprodução sejam, em grande medida, maquinais.

No entanto, não estou sugerindo que esses aplausos são indicativo de algo muito maior, como uma certa conscientização política por parte de quem aplaudiu. Mesmo porque, bater palmas, ainda que seja uma maneira dos espectadores ”se colocarem na narrativa”, não deixa de ser tão somente uma atitude passiva que nada diz das atitudes subsequentes.

Além disso, cabe questionar quem são aquelas pessoas que têm condições de pagar idas ao cinema e, portanto, estar ali, aplaudindo. Será que aqueles que se encontram em situação de maior vulnerabilidade em relação à problemática de que Bacurau trata, para quem a suposta conscientização propiciada pelo filme seria mais valiosa, puderam assisti-lo? É preciso considerar que, infelizmente, ir ao cinema no Brasil é um privilégio. Isso se faz notar na medida em que não se paga idas ao cinema com uma moeda (ALESSANDRO, 2020), diferentemente do tempo e do espaço em que Benjamin escrevia. E os obstáculos para acessar as salas de cinema não se limitam à questão financeira. Por exemplo, apesar de 80% da programação do Palácio das Artes, localizado no centro de Belo Horizonte, ser gratuita, é fácil encontrar pessoas que passam diariamente pelo entorno do prédio e que nunca colocaram seus pés ali dentro (OLIVEIRA, 2015). “Temos muitas clientes que são funcionárias do Palácio das Artes, que nos convidam para ir lá, mas não sobra tempo para quem é mãe”, diz Aparecida Albino, que trabalha há oito anos em uma loja na vizinhança do Palácio (ibidem).

Houve outra situação que se aproxima de Bacurau, que se refere ao filme A Casa que Jack Construiu do Lars Von Trier. Enquanto o filme estava exposto no cinema, há relatos de que em diversas sessões as pessoas abandonaram as salas antes que o longa chegasse ao fim. Na ocasião da estreia, em que foi exibido no festival de Cannes, aconteceram protestos, de modo que mais de cem pessoas saíram da sala antecipadamente. Essa indignação está relacionada à ”violência gratuita” apresentada no filme (FIORILLO, 2018). No entanto, o tema do filme não é a violência, mas o atual reinado da amoralidade, o que capta genialmente ”o novo normal”, o espírito do nosso tempo (FIORILLO, 2018).

O que quero destacar sobre isso é que aqueles que saíram da sala de cinema, agiram livremente. Visto que, ao não suportar permanecer do início ao fim na sala de cinema, esses espectadores estavam exercendo o direito de dizer não, o direito de vetar, o que constitui a liberdade (FLUSSER, 2019, p. 164). Assim como os aplausos em Bacurau, nesse caso, sair precocemente da sala de cinema constitui uma interrupção da recepção esperada para um filme, o que denota espontaneidade. Isso, mais uma vez, revela agência e liberdade por parte dos telespectadores, afastando-se da comparação entre o público no cinema e a aparelhagem, tal qual descrita por Benjamin.

Os modos de recepção aqui referenciados, com relação aos longas do Lars Von Trier e Kleber Mendonça, tem cunho moral e político. Essa dimensão social exige que tais reações sejam pensadas com cautela. Como já dito, é muito simplificado pensá-las como nonsense. Parece haver motivos para pensar que, esboçar reações em conjunto diante de uma obra (em especial, as que se atém aos fatos sociais para constituir sua narrativa) propicia uma experiência estética ampliada, que envolve contato humano vivificante por meio da arte. Isso me permite pensar que apesar dos filmes terem um começo e um fim, eles portam algo de inacabado, pois são permeáveis pela reação do receptor, que está em diálogo ativo com a obra. Pensando por esse lado, a experiência estética na era das tecnoimagens não parece necessariamente excluir da instância do ”aqui e agora”.

 

 

 

 


REFERÊNCIAS:

ALESSANDRO Reina e Douglas Lopes – Concepção do cinema como arte: um diálogo entre Benjamin e Lukács. Produção: Colóquio Walter Benjamin 2020. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9RNs4hcHXYU. Acesso em: 17 out. 2020.

ALMEIDA, WC. Além da catarse, além da integração, a catarse de integração. Revista Brasileira de Psicodrama, 2010. Disponível em: https://revbraspsicodrama.org.br/rbp/article/view/129. Acesso em: 29 out. 2020.

BACURAU é um filme de resistência, defendem os diretores Kleber Mendonça e Juliano Dornelles: Carta Capital, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=P8b_XONFjE8. Acesso em: 14 nov. 2020.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Tradução: Gabriel Valladão. L&PM, 2013, edição não paginada

BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

FISHER, Mark. Realismo Capitalista. [S. l.: s. n.], 2009, edição não paginada.

FLUSSER, Vilém. Elogio da Superficialidade: O universo das imagens técnicas. São Paulo: É realizações, 2019.

INDIFERENÇA é o grande mal contemporâneo: Marília Fiorillo reflete sobre o tema a partir do filme “A Casa que Jack Construiu”, de Lars von Trier. Jornal USP, 30 nov. 2018. Disponível em: jornal.usp.br/?p=212968. Acesso em: 31 out. 2020.

OLIVEIRA, Cinthya. Acessibilidade permanece como um dos principais desafios do Palácio das Artes. Hoje em Dia, 3 set. 2015. Disponível em: https://www.hojeemdia.com.br/almanaque/acessibilidade-permanece-como-um-dos-principais-desafios-do-pal%C3%A1cio-das-artes-1.322050. Acesso em: 29 out. 2020.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu, trad. Bia Nunes de Souza, 2014, edição não paginada. Disponível em: https://drive.google.com/viewerng/viewer?url=http://ler-agora.jegueajato.com/Virginia+Woolf/Um+Teto+todo+Seu/Um+Teto+Todo+Seu+-+Virginia+Woolf?chave%3D1677cfea7cb1b4e721f78316a481fd9c&dsl=1&ext=.pdf acesso: 17. out. 2020

 

 

 


NOTAS:

[1] BACURAU | Aplausos – Festival de Cannes. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6AQ3YFGz6IA. Acesso em: 17 out. 2020.

 

 

 


Créditos na imagem: Erwin Wurm, 59 positions, 1992.

 

 

 

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1 Comment

  1. Lucas Sampaio

    Legal seu texto, Lara! Sigo ideia parecida a sua pro caso da literatura.

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