Tudo para o proprietário ocioso, tudo contra o proletário trabalhador:
a educação burguesa, que desde a primeira infância corrompe a criança,
inculcando-lhe os preconceitos anti-igualitários; a Igreja, que confunde o
cérebro da mulher; a Lei, que impede a troca de ideias de solidariedade e
igualdade; o dinheiro, se necessário, para corromper aquele que se faz
apóstolo da solidariedade dos trabalhadores; a prisão e a metralhadora,
à vontade, para calar a boca daqueles que não se deixam corromper.
Eis o Estado.
Piotr Kropotkin
Desde que comecei a cultivar leituras e convivências anarquistas, no início do século que corre – e para isso me empurrou um vento forte, já que, de minha parte, impregnava-me uma outra educação política –, instalou-se em mim um sentimento de que o desejo que nos constitui é mais que tudo, nas circunstâncias, exercício de resistência. No correr dos anos, vi que isso pode ser dito a partir das mais diversas angústias – como o é, de fato: nascemos, muitas e muitos de nós, em condições tais que o ser que nos atribuem nos é atribuído como marca de exclusão ou de submissão; somos “pobres”, somos “feias” e “feios”, somos da “periferia”, somos “escuras” e “escuros”, somos “homossexuais”, somos “mulheres”, somos “travestis”, assim por diante. É resistência, pois, a que façam dos nossos seres uma marca – tanto no sentido mercadológico, de algo a ser explorado e consumido, como no de algo que distingue e hierarquiza pela hostilidade, muitas vezes armada.
Ou seja, brotaram questões relativas ao desejo e à liberdade e, com o tempo, qualquer pretensão a anarquismos metódicos que eu tivesse imiscuiu-se a outras convulsões que não poderiam deixar de vir; talvez por isso, esforcei-me para figurar experiências anárquicas onde os anarquismos em pouco ou nada contribuíam – do ponto de vista de leituras e movimentos restritos e autodeclarados; esforço que, pude constatar, era a preocupação bem pensada de outros anarquistas, como David Graeber, por exemplo. Ao prazer de cultivar leituras e convivências anarquistas (nunca o perdi, antes o contrário), misturou-se o sentimento de uma anarquia de afetos e de resistências que multiplica modos de ser, e por isso vivida como resistência a tudo o que marca alguém.
Atualmente, mesmo que à frente do governo nacional esteja um grupo de genocidas – denominação que não é uma simples marca, pois a dizimação de vidas tem sido um parâmetro consciente –, a condição para o que leva muitas e muitos dentre nós à morte é muito anterior, é o definhar da solidariedade como possibilidade concreta de vida em cada recanto no qual o capitalismo passa, violentamente, a exigir de nossas naturezas que tomem a indiferença e a competição como características fundantes de nossos seres. Eis o Estado, anotou Kropotkin: a caminho de meio milhão de mortes devido a uma doença que, com a ajuda do novo coronavírus, tem levado o país ao ostracismo mundial, o que tem mantido a dignidade de quem ainda é desejo e vida? Há como negar a realidade visceral do apoio mútuo como condição de vida, e de uma que, quando possível, se nega a ser apenas sobrevida?
Foi assim, pensando em marcas que no tornam alvos de perseguidores gananciosos – em territórios que devem igualmente ser marcados pelas traves do individualismo soberbo; pensando nas ações de solidariedade não caritária que vieram e ainda vêm chegando nessa crise – e em como é difícil saber de suas existências se não nos dedicamos a isso –, que recaí, como que necessariamente pela minha trajetória, em linhas escritas pelo geógrafo e anarquista russo Piotr Kropotkin (1842 – 1921). Daí para ensaiar este texto foi um pulo; quando da lembrança de que seu desaparecimento completa cem anos, o pulo já tinha ocorrido, mesmo assim a coisa deu um verniz de mais afeto para estas poucas linhas que decidi escrever.
Como as pretensões de Kropotkin, em grande parte, eram científicas, ao examinar seus escritos nos acompanha a sensação de que suas ideias necessitam de verificações mais atualizadas, de que alguns dos exemplos dados por ele são abordados a partir de relatos superficiais se comparados a estudos que a antropologia, especialmente, disponibiliza-nos hoje. No mínimo, sentimos que é preciso estudar mais, o que já é benéfico; porém, a sensação que talvez prevaleça, ainda do ponto de vista de suas pretensões científicas, é a de que a ciência e o conhecimento que com ela se busca firmar tem raízes profundas no desejo de vida, de que quando a neutralidade científica é propagada a favor da competição é a insegurança o suporte de suas distinções e exclusões – um temor, em alguns casos, de que o que importa no conhecimento científico seja, de fato, comum a diversidades incontáveis de modos de vida.
Não penso que Kropotkin, no que concerne ao apoio mútuo como condição de aprimoramento da existência, tenha dourado a natureza ou a humanidade – ou mesmo separado os dois termos; sua preocupação era histórica: conforme avançou, na Europa, nas colônias e ex-colônias, o roubo da terra por indivíduos privados ligados aos estados e ao capital, hábitos e costumes de apoio mútuo transmutaram-se em fonte de resistência à involução geral que tal roubo implica. São modos de ser que permanecem e se modificam, então, como recusas mais ou menos pontuais a estruturas que tendem a isolar os indivíduos e considerar o egocentrismo um valor educativo. Os conflitos “naturais” e “sociais” são forças inevitáveis, claro, mas que não se descolam de respostas que demandam solidariedade.
Não é misterioso pensar em modos de vida que priorizem a ética (a lida com os encontros e desencontros tendo em vista a compreensão do melhor encaixe entre o bem comum e o bem individual) e não a economia, tanto mais quanto esta última é tomada como a “ciência” de como devem ser geridos privadamente bens que são comuns. Apesar de toda violência deliberada contra a solidariedade organizada, não é utópico irmanar trabalho e festa, trabalho e educação, e imaginar como entrelaçadas todas as esferas que concernem às alegrias comuns e individuais; nesse sentido, trabalho e educação ainda podem ser vistos e vividos como manifestações básicas de desejos comuns que primam pela vida e não sinas a serem suportadas.
A violência do estado e do capital continua marcando corpos e os perseguindo, torturando, exibindo poder pelo extermínio de vidas – às vezes um suspiro de dor, quase desespero, ao fim do dia, é a única reação possível quando nos sentimos pequenas e pequenos pelo cansaço e por experiências seguidas de impotência; dá medo, sim. Mas o cansaço e o medo têm seus limites. O que nos move é bem mais extenso e complexo, talvez menos barulhento que o medo e a covardia, talvez menos visível que a competição e a “satisfação” individuais, porém é o que faz tremer quem acredita no poder e na ideia de que ele pode ser simplesmente detido por uma casta iluminada. Enfim, não foi sem razão que acabei lembrando de Kropotkin.
Créditos na imagem: divulgação. Disponível em: professoragiseleleite.jusbrasil.com.br/artigos/373048898/violencia-do-estado-moderno
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Daniel Santos da Silva
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