Afinal, onde estão as feministas?

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A principal preocupação de diversas feministas na atualidade é estabelecer os pressupostos que definem o movimento que reivindica direitos femininos. Em geral, as feministas são chamadas a responder questões que nem sempre abrangem a militância desse movimento social e político. Afinal, cadê as feministas agora? É um ensaio preocupado com o lugar dessas mulheres na sociedade, assim como, nos inúmeros ataques virtuais que recebem em uma tentativa de descredibilizar os movimentos femininos. Essa foi a pergunta guia para a escrita desse ensaio. No esforço de libertar os diferentes movimentos feministas de parâmetros fechados, é preciso compreende-los à medida que se desenvolvem e evoluem nas sociedades que estão inseridos. É dessa maneira que poderemos nas partes finais dessa escrita compreender o feminismo, nos dias atuais, como um movimento de mulheres plurais, que respondem as emergências dos acontecimentos históricos que vivenciam, atentas para o fato de que nem todas as mulheres reivindicam os mesmos interesses. A saber, desde o início da história do movimento feminista as mulheres negras sempre estiveram presentes com reflexões e contribuições que foram fundamentais para a elaboração teórica do movimento, abrindo seus horizonte ao abranger as necessidades de uma parcela feminina da sociedade que pouco ou quase nenhum direito haviam conquistado. Nesse ensaio, priorizamos essas autoras e teóricas fundamentais na compreensão do feminismo. Para tanto, o feminismo considerado para essa escrita está na definição de Barbara Smith,[1] em 1979:

 

Feminismo é a teoria e prática política que luta para libertar todas as mulheres: mulheres de cor, mulheres da classe trabalhadora, mulheres pobres, mulheres deficientes, lésbicas, mulheres idosas – bem como mulheres brancas, economicamente privilegiadas, heterossexuais. Qualquer coisa menos do que essa visão de liberdade total não é feminista, mas apenas o autoengrandecimento feminino. (SMITH, 1982, p. 49).[2]

 

É dessa maneira que a escritora define o que é feminismo a partir de uma visão não reducionista de apenas mais uma disputa pelo poder. Os projetos feministas procuram a equidade através da relação das diversas mulheres que o compõem e não uma disputa pelo poder de quem está no topo dos privilégios da sociedade. Importante escritora do movimento negro, Smith tem como objetivo definido estabelecer as práticas e teorias que levariam a libertação total de mulheres percebidas por ela como presas a um sistema de opressão. Devemos realçar ainda que seu entendimento compreende um grande e diversificado número de mulheres. Esse sistema não é uno e homogêneo. A escritora percebe que as mulheres só podem ser compreendidas a partir da compreensão da diversidade de opressões que sofrem e as diferenciam entre si. Em complemento as ideias de Barbara Smith, outra importante feminista Nancy Hartsock,[3] também de 1979, suplementa as definições de feminismo compreendidas nesse trabalho:

 

O feminismo é um modo de análise, um método de abordagem da vida e da política, uma forma de fazer perguntas e buscar respostas, ao invés de um conjunto de conclusões políticas sobre a opressão das mulheres (HARSTSOCK, 1979, p. 58).[4]

 

Com as duas definições estabelecidas, podemos considerar então que primeiramente o feminismo é uma teoria e prática política que permite a manifestação da ideia de que todas as mulheres são elementos fundamentais para o funcionamento da sociedade. E com a Hartsock, podemos definir que os feminismos são reflexos do que está acontecendo na sociedade em um determinado momento. A partir das reivindicações de feministas podemos estudar e compreender as emergências do período histórico analisado. Ou seja, o feminismo é uma manifestação continua, nunca estagnada ou atrasada, mas em relação direta aos acontecimentos históricos sejam eles políticos ou culturais. O conceito feminismo não pode ser um arcabouço fechado em sua definição e sim uma maneira dialética de se pensar a situação das mulheres nas sociedades.

Iniciando a compreensão do desenvolvimento do movimento histórico feminino desde o que ficou conhecido como a “primeira onda do feminismo”[5] atrelada as reivindicações pelo sufrágio feminino. Ocorrido no final do século XIX e no início do século XX, período da revolução industrial e desenvolvimento dos primeiros centros urbanos, marco importante do surgimento de léxicos como socialismo e liberalismo econômico entre outros. Em uma das convenções formais para discussão sobre direitos das mulheres organizadas pelos norte- americanos uma das palestrantes, Sojourner Truth[6] fez um discurso que é considerado até os dias atuais como um discurso extremamente potente. Essa convenção fez parte do que ficou conhecido como Women’s Rights Convention, realizada em Akron, Ohio, Estados Unidos em 1851. O seu discurso evidenciou que muitas das reivindicações que as mulheres brancas exigiam não contemplavam de maneira alguma as mulheres negras norte americanas. E dessa maneira sua intervenção é incisiva:

 

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher? (TRUTH, 1851, s/p).[7]

 

Esse foi o primeiro registro de uma mulher negra declarando-se diferente daquelas que compunham o movimento feministas. Evidencia que as mulheres são diferentes entre si, sofrem opressões diferentes e que os direitos femininos precisavam necessariamente ser construído e pensado para todas as mulheres da sociedade norte americana.

A “segunda onda feminista” acontece, entre 1960 e 1980,[8] principalmente pautado por discussões sobre direitos civis e sobre os costumes. As feministas norte-americanas, nesse momento, passam a reivindicar o direito ao divórcio, ao aborto legal e a igualdade salarial. É nessa perspectiva que surge o jargão “O pessoal é político”, ou seja, o que acontece dentro da esfera doméstica também era importante. Abrangendo, portanto, uma série de perspectivas feministas singulares como a violência doméstica. É o momento onde o movimento feminista transborda as instituições e migra para a esfera pessoal. Surge a noção de que uma vida digna também importa para a libertação das opressões femininas. Nessa perspectiva, aconteciam muitas articulações de mulheres em muitas frentes nos Estados Unidos, essas manifestações foram fundamentais para a construção de leis do divórcio, da equidade salarial e de leis de legalização do aborto. A ampliação das reinvindicações feministas, que no primeiro momento da historiografia feminista era pautada pela conquista do voto feminino, nesse momento se complexificações à medida que engloba um maior número de diferentes mulheres. Quanto mais grupos de mulheres reivindicando suas perspectivas maior é a sofisticação dos debates entorno do que eram as mulheres e do que as oprimia.

Avançando no período histórico, é necessário citar as ativistas negras norte-americanas contemporâneas que realizaram intervenções importantes dentro do movimento feminista. Florynce Kennedy[9] é uma ativista negra importante desse período ao criar o que ela nomeou como um “ativismo cupim” , ou seja, um ativismo que deveria corroer as estruturas por dentro delas mesmas. Outra importante feminista negra e que impacta diretamente no desenvolvimento do movimento é a Angela Davis.[10] Autora do importante livro “Mulheres, raça e classe” afirma que a opressão da mulher negra não ocorre apenas na perspectiva de gênero, mas também na perspectiva de raça e de classe. E são esses elementos somados que tornam a mulher negra um sujeito singular dentro do sistema de opressões da sociedade patriarcal e racista. Ou seja, ela torna evidente que pensar a opressão de gênero sem pensar na opressão de classe torna a perspectiva feminista falha.

A interpretação do mundo feminista não está edificada em conceitos fixos ou em um único modo de interpretação. Afinal, onde estão as feministas? Em todos os lugares, construindo as suas próprias percepções, objetivando um futuro sem opressões. Lutando por um período onde o movimento feminista não esteja mais na mira das armas daqueles que criticam o movimento sem saber, se quer, qual o lugar que as feministas ocupam na sociedade, ou se essas, devem explicações sobre algo ou alguém. Desqualificar movimentos sociais descontextualizando seu histórico é o argumento daqueles que mantém a imaginação fértil de um passado mítico de um país perfeitamente formado por famílias tradicionais brasileiras compreendidas na heterossexualidade compulsória onde mulheres e minorias raciais não reclamavam de seus lugares. O novo populismo da extrema direita, que tanto assola esse país, é da mesma família da árvore plantada, anos atrás, que forneceu a sombra de sua copa carregada  privilégios aqueles que se apoiavam na branquitude, na cristandade e na masculinidade e distribuiu seus frutos àqueles que hoje lutam contra movimentos sociais importantes como aquele formado pela luta das mulheres.

 

 

 


REFERÊNCIAS

DAVIS, Ângela. Mulher, raça e classe. Boitempo: São Paulo, 2016.

HARSTSOCK, Nancy. Feminist Theory and the Development of Revolutionary Strategy. New York: Monthly Review Press, 1979.

SMITH, Barbara. Toward a black feminist criticism. Within the circle: an anthology of african american literary criticism from the Harlem renaissance to the present. Ed. Angelyn Mitchell. Durham and London: Duke UP, 1994.

KENNEDY, Florynce. Color Me Flo: My Hard Life and Good Times. Englewood Cliff, NJ: Prentice-Hall, 1976.

TRUTH, Sojourner. Ain’t I a woman? In: SCHNEIR, Miriam. Feminism: the essential historical writings. New York: Vintage Books, 1994. Disponível em http://www.historyisaweapon.com/defcon1/aintwomantruth.html acessado em 04/08/2020.

 

 

 


Notas

[1] Ativista feminista negra, lésbica e socialista. Escritora acadêmica que contribuiu no desenvolvimento teórico  sobre o feminismo negro norte americano desde 1970.

[2] No original: “Feminism is the political theory and practice that struggles to free all women: women  of color, working-class women, poor women, disabled women, lesbians, old women – as well as white, economically privileged, heterosexual women. Anything less than this vision of total freedom is not feminist, but merely female self-aggrandizement”.

[3] Professora de Ciência Política e Estudos da Mulher na Universidade de Washington desde 1984.

[4] No original: That feminism is a mode of analysis, a methof od approaching life and politics, a way of asking questions and searching for anwers, rather than a set of political conclusions about the oppression of women.”.

[5] Usaremos nesse artigo a definição de ondas dentro do movimento feminista por questões didáticas. Mas é preciso estabelecer que as ondas são meramente ilustrativas de períodos fechados dos quais queremos nos referir. De maneira alguma deve ser compreendido como o início da produção de mulheres que reivindicavam direitos políticos e sociais. Essas existiram muito antes do que conhecemos como primeira onda do feminismo. O conceito de onda foi utilizado pela primeira vez em um artigo da New York Times, em 1968, cunhado pela jornalista Martha Weinman Lear, ao reportar uma série de manifestações de mudanças fundamentais na sociedade norte americana. Ou seja, o conceito de ondas do feminismo foi cunhado por uma percepção externa ao movimento feminista e que revela o despertar do interesse da sociedade no movimento feminista.

[6] Ex-escravizada, conquistou a própria alforria e passou a se dedicar na luta pelos direitos das mulheres negras norte americanas.

[7] No original: That man over there says that women need to be helped into carriages, and lifted over ditches, and to have the best place everywhere. Nobody ever helps me into carriages, or over mud-puddles, or gives me any best place! And ain’t I a woman? Look at me! Look at my arm! I have ploughed and planted, and gathered into barns, and no man could head me! And ain’t I a woman? I could work as much and eat as much as a man – when I could get it – and bear the lash as well! And ain’t I a woman? I have borne thirteen children, and seen most all sold off to slavery, and when I cried out with my mother’s grief, none but Jesus heard me! And ain’t I a woman?”

[8] É importante lembrar que entre a primeira e a segunda onda acontecem as duas grandes guerras que ocasionaram mudanças profundas não apenas nos países que participaram, mas em todo o mundo.

[9] Advogada estadunidense, feminista e ativista dos direitos civis das pessoas negras norte americanas.

[10] Professora e filósofa socialista estadunidense. Ganhou reconhecimento internacional na década de 1970 como membro do Partido Comunista dos Estados Unidos e dos Panteras Negras.

 

 

 


Créditos na imagem: John Olson/The LIFE Picture Collection/Getty Images.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Júlia Tainá Monticeli Rocha

Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) na linha de pesquisa Política, Intelectuais e Mídias desenvolvendo pesquisas em torno da Organização da Mulher Moçambicana nas décadas de 1960 a 1980. Mestra em História pelo mesmo Programa de Pós Graduação. Desenvolveu a pesquisa intitulada "Do vento da emancipação à força motriz da Revolução: A mulher nos discursos de Samora Moisés Machel (Moçambique) (1973-1980)". Formada no Curso Superior de História, licenciatura, pela PUCRS em 2015 e cursando História, bacharelado, na UFRGS desde 2017. Dedica suas pesquisas na área de História de Moçambique e História das mulheres.

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