Nossos avós estão morrendo

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A notícia da morte de Zé Celso é terrível, chocante, avassaladora, amedrontadora, inacreditável e quantos mais adjetivos de efeito se quiser acrescentar. Não apenas porque morre uma das figuras centrais do teatro brasileiro, mas também pelas circunstâncias de sua morte. A Folha de São Paulo de hoje (7 de julho de 2023) nos informa que, no incêndio que ocorreu em sua casa, ele queimou 56% do corpo (em reportagem de Gustavo Zeitel, Ilustrada, p. C3). Saiu de lá entubado e passou poucos dias no hospital, como acompanhamos nos últimos dias pelas redes sociais, num misto de certeza de que um homem de 86 anos que passa por algo desse tipo inevitavelmente morre e de esperança de que este homem não é qualquer homem, mas o xamã do teatro brasileiro, o pajé de nossas esperanças de que esse país dará certo. Queríamos acrescentar mais um capítulo à lenda e dizer, daqui a vinte anos, que, além de todas as tragédias de sua vida conturbada, Zé Celso sobreviveu a um incêndio na beira dos 90 anos. Queríamos vê-lo morrendo como disse que queria morrer em entrevista a Dráuzio Varela há poucos meses, no palco:

Não, porque quando ela vier ela vem. A não ser que eu tenha uma morte ruim que tenha que ficar hospitalizado ou coisa assim, mas se for uma morte de repente é ótimo. Não tem problema. Eu espero que eu tenha uma boa morte, que eu saiba morrer. Morrer em cena então, seria uma glória![1]     

Drauzio o perguntara se a perspectiva da morte o assusta e é isso que ele responde. Zé Celso não teve a morte que queria, não soube morrer. Morreu numa tragédia inexplicável, sofrendo dores terríveis, depois de alguns dias hospitalizado. Os relatos parecem todos sugerir que Zé e os atores que moravam com ele trabalharam ao longo da noite e foram dormir pela manhã. Ricardo Bittencour, um dos moradores, tirara uma foto, a última de Zé Celso, comendo laranja, enquanto conversavam sobre a possibilidade da publicação das obras do fundador do Oficina pela ABL. Foi dormir feliz, diz o post no Instagram onde se encontram as imagens[2]. Ligou o aquecedor, porque fazia frio naquela madrugada e, em algum momento depois disso, pelo contato do aquecedor com algum objeto inflamável (é o que diz o laudo dos bombeiros como causa provável) iniciou-se o incêndio. Todos relatam ter acordado assustados e, no meio da confusão, ele foi trazido para fora do apartamento, já muito queimado. A médica que o atendeu na ambulância, em entrevista ao Fantástico de hoje (09 de julho de 2023) diz que ele relatou estar sentindo muita dor e dificuldade para respirar. Victor Rosa disse, ao mesmo Fantástico, que acordou com o Zé gritando socorro, em pé, com o andador e, ao pegar nele, queimou as mãos. José Celso Martinez Correa, segurando-se num andador e gritando por socorro, com a pele queimada a ponto de queimar quem encostasse nele. É essa imagem de terror e impossibilidade, de dor excruciante e tragédia inexplicável que fazem com que sua morte nos doa tanto, nos faça tanto mal. Uma morte ruim. Ainda na sequência de reações a sua morte, na mesma Folha de S. Paulo de 7 de julho, Gerald Thomas diz, metaforicamente, que o fogo de sua tragédia deve estar relacionado a alguma coisa que desagradou Hefesto (Ilustrada, p. C7). Eu entendo que nesse momento precisemos dizer esse tipo de coisa, recorrer ao conjunto de referências culturais que alivie a nossa dor, que atribua algum sentido a algo tão brutal e rude, mas a verdade dos fatos é que a morte do principal diretor de teatro dos últimos 50 anos é isso mesmo: brutal, rude, inexplicável.

Morrido de uma morte terrível, Zé Celso não vai sozinho, embora mais dramático. Nos últimos meses perdemos Gal Costa, Pelé, Rita Lee e, agora, ele. Todos idosos, chorados publicamente por um país enlutado que entrevê suas referências culturais indo embora e com a sensação de que, a bem da verdade, não temos nada para colocar no lugar. E pior: entrevemos que ainda teremos anos difíceis do ponto de vista de nosso luto coletivo. Caetano Veloso, que fez oitenta anos há pouco tempo, disse em sua live de aniversário que queria voltar pra Bahia e parar de se apresentar pelo país. Disse isso de novo por esses dias à imprensa argentina ou uruguaia, não me lembro bem. Está se retirando da cena cultural brasileira, com suas mãos tremendo, o emagrecimento de seu corpo que se transforma lentamente em cadáver e, ao mesmo tempo, um desejo de continuar a fazer o que sempre fez que trai cada anúncio de retirada. Gilberto Gil, que também fez oitenta anos há pouco tempo, teve problemas de coração há alguns anos, mas promete continuar por mais tempo do que seu companheiro de Santo Amaro. Bethânia deve continuar a cantar até o fim, que, como todos sabemos, está mais próximo do que longe, dada a idade avançada da cantora. Milton Nascimento se despediu do público com um show emocionante no Mineirão, alguns dias depois da morte de Gal, e aparece no Instagram fazendo exercícios físicos para conseguir envelhecer bem.

Esses são os sobreviventes de uma geração que perdeu muitos membros ao longo do caminho, mas que, nessas figuras, permanece viva no imaginário cultural do país. E a nossa sensação de desolação com seu desaparecimento gradual vem misturado ao que já disse antes: a certeza de que não temos nada para colocar no lugar. Esse tipo de sensação pode ser sintoma de um conservadorismo tacanho de quem considera que tudo no passado era melhor, ou pode ser mais bem entendido como uma mudança estrutural significativa nas dinâmicas culturais brasileiras depois do golpe de 1964. Essa mudança, que nos fez ser quem somos, esteve diretamente conectada a essa geração, que, de início, resistiu bravamente a suas formas conservadoras e autoritárias, e, depois, integrou-se ao novo mundo da cultura como mercado de bens culturais. Caetano é a figura mais emblemática: sua adesão à indústria cultural já estava dada desde o início e sua consagração como figura chave de nossa cultura reforça, na verdade, que isso que entendemos por cultura é apenas um mercado que gere instituições.

Ora, é exatamente contra isso, contra o mercado da gestão de instituições culturais, que o trabalho inicial de Zé Celso, inspirado no Glauber Rocha de “Terra em transe” se levantava. Era contra o teatro das instituições culturais, o teatro do bom gosto e dos bons modos, que o transe crítico de Zé Celso se levantava pelas peças de Oswald de Andrade e Chico Buarque (outro dos sobreviventes!), numa conturbada década de 1960. Dali pra frente a coisa se radicaliza numa negação do teatro como forma estabilizada de cultura, ou seja, como instituição cultural (principalmente em “Gracias, Señor”, uma peça coletiva praticamente ilegível da década de 1970) e, depois do exílio e do início da redemocratização, num giro inacreditável, o trabalho de Zé Celso ressignifica a noção do transe, como negatividade terceiro-mundista do cinema de Glauber Rocha, para a positividade xamânica-iorubá de nossa peculiaridade nacional. É nesse momento que, mesmo revestido de sua retórica contracultural e com momentos de verdade transcendentes, o trabalho de Zé Celso se confunde, paradoxalmente, com a consagração de sua própria figura como instituição cultural, muito bem controlada pelo mercado dos bens culturais. Tudo isso não é exatamente um demérito dele, que teria abandonado os ideais da juventude. Não se trata disso, mas de uma mudança radical na forma como a cultura brasileira funciona.

O golpe de 1964 nos jogou no meio da modernidade industrial de forma definitiva e o sonho dos brasileiros ilustrados desde meados do século XIX tinha se concretizado: éramos um país industrial, relativamente desenvolvido, no rumo certo. O problema é que, nesse processo, íamos lentamente deixando de ser um país para nos tornarmos num espaço, voltando às nossas origens coloniais de forma vergonhosamente direta. No campo da cultura isso significou a integração completa às dinâmicas da indústria cultural controlada pelos americanos, que perceberam que era mais interessante jogar sobre nós sua própria música e sua própria cultura do que financiar a nossa música nacional, a nossa cultura nacional. A integração de todas essas figuras à indústria cultural, ou às instituições culturais, é uma forma de matá-las como elemento vivo da cultura de um povo. E a cultura de um povo, entenda-se, é a forma como ele interpreta o mundo e a si mesmo nesse mundo.

O que a indústria cultural faz é, nesse sentido, destruir a forma como um povo se vê no mundo e o mundo em si mesmo. Um povo não se entende pelos museus que é capaz de produzir: quando chega lá, a cultura já está morta, como bem nos lembra Michel de Certeau e como, antes dele, já sabia o velho Mário de Andrade bom de guerra. Tendo tudo sido transformado em mercadoria, restava a esse Zé Celso institucionalizado lutar, dentro dos circuitos institucionais, pela sobrevivência de seu teatro, não mais como a forma de um povo de ver a si próprio e ao mundo, mas como o prédio desenhado por Lina Bo Bardi.

Sua disputa com Sílvio Santos é paradigmática em praticamente todos os sentidos e merece reflexão delongada se se pretende entender o país que não tem quem colocar no lugar de seus artistas defuntos (ou defuntos artistas, em alguns casos). Sílvio Santos é o outro lado da moeda: é a própria indústria cultural encarnada e em quase todos os sentidos ele é o futuro que Zé Celso relutantemente aceitava. Sílvio Santos é a outra face de Zé, aquela que ele e nenhum de nós gostaríamos de ver vencedora, mas é a que não tem cessado de vencer, para lembrar o velho Benjamin. O Parque do Bexiga não vai acontecer, a não ser que ele, Sílvio Santos, ganhe muito dinheiro com isso. Ele é tão mais avançado do que o velho diretor de teatro, conservador que não sabia aceitar o futuro das geladeiras populares da ditadura que vieram com a televisão e o cinema americano embutido, que num diálogo gravado numa tentativa de mediação de João Dória, quando Zé lhe diz que todos vão morrer e que essas questões são pequenas, ele, rindo, diz que ele, Sílvio Santos, encarnação do capital e do futuro, não vai morrer. Não vai mesmo, mas Zé Celso acabou de morrer, apesar de nossos gritos de “Zé Celso Vive!”. Só lhe restava a ele, o velho diretor de teatro político, diretor da primeira montagem de Roda Viva, deglutir o velho Sílvio e querer se tornar nesse seu outro. A Roda Viva da peça e da canção de Chico é esclarecedora porque, a rigor, relega ao lugar de roda morta tudo que não está ali, inscrito no circuito bárbaro da indústria cultural que carrega o destino, a roseira, viola e, finalmente, a saudade pra lá. O terrível é pensar que, se hoje choramos tão sentidos a partida trágica e inaceitável de Zé Celso, amanhã a Roda Viva levará não apenas seu trabalho, mas a mesma saudade pra lá.

Esses foram nossos avós e eles estão morrendo. Em suas contradições e em sua tentativa de resistir ao que hoje nos parece o estado natural das coisas, eles fizeram o país que temos e com qual não sabemos o que fazer. Nós somos a derrota do que eles foram há muito tempo e que depois se transformou no que eles podiam se tornar. Cada um à sua maneira, todos estavam em casa há muitas décadas, guardados por Deus, juntando vil metal e, como a aviltante propaganda da Volkswagen nos fez lembrar recentemente, podem renascer ao bel prazer de seus novos senhores. Morreram mortes repentinas, como Gal Costa, que sofreu duas décadas com a esposa-empresária, ou mortes esperadas como Rita Lee e Pelé, que sofreram por anos com um câncer, ou ainda mortes trágicas como essa comovente de Zé Celso. Mas morreram, e nosso luto coletivo tem algo que ver com o fato de que, para o bem ou para o mal, eles nos definiram como somos, em suas contradições terríveis de geração que perdeu uma batalha que não podia ser perdida.

A morte desse tipo de figura tem um efeito ampliado de algo que todos sentimos quando alguém próximo morre. A morte, essa coisa estranha, nós só a podemos experimentar por meio de algo mais estranho ainda, porque mais imediato: o cadáver. Quem já viu o cadáver de um ente querido sabe da estranheza da sensação. Reduzido a um pedaço de matéria inorgânica, o corpo morto é uma experiência de silêncio insuportável. A pessoa que se foi não era apenas aquele amontoado de carne, mas uma forma específica de ver e sentir o mundo que se concretizava, em sua prática social, numa elaboração própria da linguagem, numa forma de usar a língua, se quisermos ser mais precisos ainda. O cadáver é o avesso da língua viva que atravessa todos os viventes e por eles é sempre transformada. Aquela voz se calou e dela só resta o que em nós fica de sua forma peculiar de usar as palavras (e, portanto, de ver o mundo). Um avô morto não é simplesmente um amontoado de matéria inorgânica, embora seja exatamente isso que ele seja: é também aquela forma só dele de dizer o mundo que está em nós. Ver o cadáver é olhar para essa anatomia de nossa própria linguagem e sentir que algo em nós, também, morreu.

Quando se multiplica isso ao nível social, temos a experiência de perder alguém como Zé Celso, que, com sua dicção própria de dizer as palavras e, portanto, de apreender os objetos do mundo, é parte da forma como nós mesmos dizemos e entendemos esse mundo. E é por isso que o luto coletivo tem essa força tão profunda, essa comoção tão abrangente. Ele nos lembra que a sociabilidade é a segunda natureza própria do homem. Talvez venha exatamente daí a força daqueles momentos finais da Ilíada, quando Aquiles e Príamo choram, cada qual a morte de seu ente querido. Só que na epopeia homérica os homens não têm a condição individual que eles assumem na modernidade. Pelo contrário, são a própria coletividade, não num sentido alegórico, como costumamos fazer hoje, mas profundamente simbólico, para usar as dicotomias de Goethe: eles, na própria materialidade corpórea, são sua sociedade. Não produto ou representação, mas a própria sociedade em sua forma acabada de pessoa. O luto de um herói épico nunca é o luto de um indivíduo, mas de uma coletividade e talvez seja nessas obras que encontremos mais bem acabada a abrangência e a profundidade desse luto que hoje não sentimos mais em toda sua potência quando perdemos entes queridos importantes apenas para nosso círculo mais íntimo. Para esses mortos coletivos, talvez possamos dizer como Gilgamesh no poema acádio:

Agora, que sono te pegou a ti?
Ficas calado e não me ouve a mim?
Mas ele não ergueu a cabeça. (SIN-LEQI-UNNINNI, 2017, p. 215).

O que está morrendo não é simplesmente um conjunto de pessoas, mas aquele conjunto que nos ensinou a dizer, a pensar e a sentir o país em que vivemos. Suas contradições são as nossas. São insubstituíveis não porque sejam superiores ao que conseguimos fazer hoje, mas porque criaram o Brasil moderno em que operamos e com o qual não sabemos que fazer. Estamos de luto porque sabemos que com eles se vai algo precioso e irrecuperável. Estamos, como Aquiles depois de vingar a morte de seu querido Pátroclo:

O Pelides saudoso a revolver-se,
Ou supino, ou de bruços, ou de ilharga;
Lembra-lhe a valentia, o ardor daquele
Com quem tanto empreendeu, curtiu fadigas,
Em duro marte, em perigosos mares,
E debulha-se em lágrimas. Levanta-se,
Vaga ao longo da praia, até que as ondas
A aurora purpureia (HOMERO, 2014, p. 333).

Mas também, como Aquiles, dizemos a nós mesmos:

“Fiz, Príamo, o teu gosto, jaz teu filho
No féretro; ao partir, na aurora o vejas.
Porém da ceia agora nos lembremos.
Níobe de comer também lembrou-se, (…)

Tratemos pois da ceia: ao transportá-lo,
Divo ancião, prantearás teu filho.
Tens muito que chorar, sossega um pouco.” (ibidem, p. 345).

Só nesse luto coletivo e excruciante podemos dizer algo como o que nos diz Aquiles e pensar na ceia em meio à dor mais terrível. Essa ceia aconteceu no velório Zé Celso, em que se cantou e se dançou em homenagem ao morto. Em que se cantou, com palmas animadas, ao som de Chico César: “Catolé do Rocha, praça de guerra! Catolé do Rocha onde o homem bode berra!”. Esse é o terrível de nossos avós estarem morrendo; é que, sabendo de suas contradições irredutíveis, de seus erros e de seus fracassos, filhos do mundo que eles ajudaram a criar, mesmo que à contragosto, não sabemos ainda o que fazer com seu legado, com tudo que tem de má intepretação e momentos luminosos de verdade. Não nos esqueçamos nunca de suas más intepretações, mas não deixemos de admirar jamais seus momentos transcendentes de verdade.

Já caracterizei o erro e o fracasso de Zé Celso e de sua geração, esses nossos avós coletivos, mas acho que seria injusto se não indicasse também seus momentos de verdade, mesmo quando emaranhado aos equívocos mais evidentes. É algo que se manifesta em Caetano de forma mais clara: no meio de sua chatice ególatra e autocentrada encontramos canções líricas como “Terra” ou “Cajuína”, que o salvam de seus erros. No caso de Zé Celso, a centralidade do corpo me parece desempenhar essa função. Seu teatro era regido por uma centralidade absoluta do corpo sobre o intelecto, não no sentido de negar largueza teórica às suas produções; muito pelo contrário, o que sua recolocação das dicotomias do pensamento ocidental produzia era uma concretização corpórea da capacidade de pensar. Quem pensa no teatro de Zé Celso é o próprio corpo, numa constatação óbvia de que os meios de operação da razão são, também eles, naturais. Nesse sentido, estava à frente de quase todos nós com sua transcendência corporal.

Esse é seu momento de verdade mais luminoso e suas representações gravadas irão deixar para sempre esse testemunho contundente das capacidades da matéria. Isso culminava em sua arte numa liberdade corporal poucas vezes vista entre nós, e não apenas no sentido da negação da carolice reinante, que pode assumir as formas de nosso conservadorismo, mas da afirmação positiva de uma corporeidade plena. Em Zé Celso, o corpo era tudo e, portanto, valor positivo inescapável para sua arte. Essa centralidade da matéria humana resultava também em seu teatro numa profunda centralidade do presente. O passado, os textos do passado, nunca foram para ele simples objeto de antiquário, mas formas de pensar o presente e os momentos presentes. Seja o “Hamlet” de Shakespeare ou “Os Sertões” de Euclides: tudo para ele era desculpa para pensar os problemas do presente e as contradições do presente, porque tudo para ele se resumia ao corpo e, para o corpo, só há o presente, o agora. O passado é o corpo que já foi e o futuro é o corpo que ainda será: só o presente pode nos apresentar o corpo que é. E é pela centralidade do corpo que encontramos em cada remontagem de suas peças alterações que nos apontam para os desafios do presente.

Esse seu momento de verdade é seu legado mais contundente para nós, que precisamos fazer alguma coisa com o que se fundou com suas contradições. Vejam até onde vai o problema: seu próprio momento de verdade é motivo de mistificação. Suas representações, que pretendiam fundar novas formas de sentir o mundo a partir de uma corporeidade plena e positiva, o afastavam da imensa maioria do público brasileiro, ainda preso às concepções religiosas mais tacanhas. O país que se entrevê na luminosidade de seu momento de verdade, por mais que se diga e se queira o contrário, não é o país da maioria dos brasileiros, que entendem o Brasil não como libertação do mal-estar da civilização à la Oswald de Andrade antropófago, mas o país da chacota hipócrita e moralizante que Sílvio Santos tão bem representa. Tirando parcelas da classe média dos grandes centros urbanos, o Brasil livre e corporal que Zé Celso sonhou em seu teatro ao longo das últimas décadas simplesmente não existe, não tem efetividade nenhuma. Restrito ao plano das ideias, sua contraface real é o futuro que o Sílvio-Santos-que-nunca-morre representa. O nosso desafio é transformar seu momento de verdade em verdade efetiva.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

SIN-LEQI-UNNINNI. Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgamesh. Trad. Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017. 421 p.

HOMERO. Ilíada. Trad. Odorico Mendes. São Paulo: Poeteiro Editor Digital, 2014. Disponível em: 366858.PDF (santoandre.sp.gov.br). Acesso em 09 de julho de 2023.

 

 

 


NOTAS:

[1] Disponível em: (314) Zé Celso fala sobre sua perspectiva da morte #Shorts – YouTube. Acesso em 07 de julho de 2023.

[2] Disponível em: Ricardo Bittencourt (@ricardobittencourtoficial) | Instagram. Acesso em 09 de julho de 2023.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Zé Celso no Teatro Musical Brasileiro em 1988 — Foto: Norma Albano/Estadão Conteúdo.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Filipe de Freitas Gonçalves

Doutorando em Estudos Literários com ênfase em Literatura Brasileira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Estudos Literários com ênfase em Literatura Brasileira (2021) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduação em Letras (Bacharelado em Língua Portuguesa, com ênfase em Estudos Literários (2017) e Licenciatura (2018)) na Faculdade de Letras da mesma instituição. O interesse de pesquisa está voltado à história da literatura brasileira, teoria da literatura (gêneros literários, especialmente o romance), a relação entre a história literária e questões sociais no Brasil. Atuou, ao longo do ano de 2021, como estagiário-docente no programa Apoio Pedagógico da Faculdade de Letras (UFMG). Trabalha com ensino de Português, Literatura e Produção de Texto para alunos do Ensino Médio e Fundamental.

1 comment

  1. Anônimo 1 agosto, 2023 at 20:01 Responder

    É muitíssimo delicado nos arvorarmos a dizer o que quer que seja sobre a morte de alguém. O fogo que o trouxe o levou de volta para o big bang cósmico. Para além do bem e do mal!

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