A casa é sua

Por que não chega agora?

Até o teto tá de ponta-cabeça

Porque você demora

A casa é sua

Por que não chega logo?

Nem o prego aguenta mais

O peso desse relógio

Arnaldo Antunes

 

Escrevo isto para a bibliotecária de obras raras e professora Ana Virgínia Pinheiro, a quem sou muito grato sempre. Faço uma volta no tempo e me remeto a um dia do ano de 2015, ano em que fui pesquisador residente na Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

À vontade na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional, na volta do almoço, tendo obra separada para continuar o trabalho de notar, ler, anotar, vou ao balcão de atendimento e pego a referência, o objeto livro, o objeto material parte de minha pesquisa.

Foi como pegar a viagem empírica, só que não.

Ao passar pela chefe da Divisão, mostro a ela a lombada do livro, a lombada da encadernação, a asa do avião. Ela me pergunta:

– É nosso? Você pegou na estante?

Digo a ela:

– Jamais!

Explico a ela ter consultado d’Orbigny, das viagens de 1836, pela manhã e que um funcionário subordinado a ela havia deixado a obra separada para mim.

Mais do que isso, digo a ela que a gente não pode ir à casa dos outros e ir abrindo a geladeira para se servir das iguarias lá guardadas. A gente não pode abrir os armários dos lugares que visitamos.

Ela se riu, eu me ri e vi que ela gostou de minha resposta, pois praticamente piscou com cumplicidade ao olhar para outro de seus subordinados que trabalhava próximo da cena, do entabular dessa conversa.

Sorrindo me dirijo à minha mesa de trabalho. Minha não, pois, embora a Biblioteca Nacional seja um sítio público, um acervo brasileiro, não sou dono daquilo, de nada ali, nem de nada. Talvez seja dono apenas de minha pesquisa, de meus desejos. Sou apenas um visitante passageiro que foi bem-vindo e limpou os pés ao entrar.

Isso bastava para uma crônica, mas meus dedos no teclado insistem, querem mais.

O som dos grilos e das cigarras que dizem, em Santa Teresa, que amanhã fará sol, os galos que cantam na hora e fora de hora, o ar que arrefece depois de um dia extremamente quente, dizem que a crônica não terminou.

É preciso dizer que hoje, na volta para casa, no 507, vindo mais cedo, vim com os bebês e as mamães que saíam do trabalho e da creche.

Vim, pois, no horário da creche.

Hoje, enquanto cumpri o comprido de meu trabalho, lá fora o sol imperava na antiga Capital do Império e da República. Lá fora as obras, que não letradas, da Avenida Rio Branco, fervilharam.

Fui ao Largo da Carioca hoje, depois do almoço, no restaurante vegetariano, à procura não da palavra, não da poesia.

Fui lá à procura de alfenins. Alfenim para dar de presente à minha mãe e à uma prima. Os encontrei. Os comprei. E os acondicionei em caixinhas para que não se quebrem, uma vez que são doces feitos praticamente de água e açúcar.

Comprei alfenins para elas e para mim.

Pensei-os e os inscrevi aqui como um paralelogramo árabe-português que há nas duas e há em mim.

Agora, para que os alfenins não se quebrem estão em caixas. Para que apenas se dissolvam na boca não na chuva que se anuncia, devem ficar protegidos até o momento de serem degustados.

Eles são uns paralelos, como a vida em paralela, aos braços abertos do Cristo no Corcovado aqui próximo, que para termos o prazer de usufruir temos que esperar.

Não me sentisse tão em dívida com quem para quem comprei os alfenins tinha feito deles no 507 hora da merenda, hora da saída da creche uma hora tão feliz. Tinha oferecido às mães e aos bebês os alfenins.

Não fiz. Não ofereci. E hoje não houve história trágica, nem bacia, nem desperdício d’água como outro dia em que conheci no ônibus a moradora do Silvestre com seu carrinho de feira avariado.

Hoje, teve a saída da creche, os nenês no colo. E na mochila, em caixas, os alfenins para elas e para mim.

Para ler esta crônica, você não precisa de mim. Pode entrar. A crônica é sua, os alfenins.

 

 

 

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