Anacronismo e atualidade: sobre “Meu Coco” de Caetano Veloso

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Do alto de seus quase oitenta anos, Caetano Veloso lançou mais um álbum de canções inéditas. Depois de nove anos sem um conjunto desse tipo, ele se justifica repetindo um mantra que já havia anunciado na edição comemorativa de Verdade Tropical: as canções lhe são irresistíveis, ele as ama, não consegue deixar de fazê-las (CAETANO, 2017, p. 11-45). Não precisava, obviamente, das quase desculpas por continuar compondo depois de tanto tempo: poderia, simplesmente, dizer como Drummond (2012, p. 136) no poema Declaração em juízo, do livro As impurezas do branco (1973): “Reparem: não tenho culpa./ Não fiz nada para ser sobrevivente”. O fato é que Caetano não resiste a se reinventar, a mudar de opinião, a participar do mundo em que vive. Diferente do eu-lírico de Drummond (2012, p. 164), que afirma: “Viver, propriamente, não vivi/ se não em projeto”, Caetano insiste em viver para além do projeto. Participa ativamente das ilusões e desilusões de seu mundo, que o seu cancioneiro retrata com o lirismo profundo que lhe é característico. Nos últimos tempos, para além de sua participação nas redes sociais e da turnê com os filhos, ele resolveu rever suas opiniões sobre o marxismo e o comunismo a partir do contato com o trabalho de Jones Manoel, o que o levou a entrevistar o jovem pernambucano, e sua colega marxista Sabrina Fernandes, além, obviamente, de se atirar à leitura dos livros de Domenico Losurdo que Jones Manoel tanto cita. O impacto parece ter sido tanto que em sua live de Natal Caetano acaba se referindo a Losurdo, a Jones Manoel e aos debates em torno de Hannah Arendt que têm acontecido na imprensa brasileira. O fato é que ele quer participar, integrar a discussão, contribuir.

Esse seu aspecto enseja uma espécie de positividade que está tematizada no novo álbum de várias formas. Tomemos uma canção em seu conjunto marcada por certo pessimismo e desilusão, Anjos Tronchos, que foi lançada como single algumas semanas antes do álbum inteiro. Mesmo admitindo que nosso mundo está controlado pelo algoritmo e que a grande novidade da internet, que havia inspirado otimismo civilizatório, foi tomada pelas forças do horror, ele pesa a negatividade com o otimismo de que “há poemas como jamais” e que, em relação à sua juventude (evocada pela citação à canção Alegria, alegria), houve avanços. E mesmo diante da barbárie quase absoluta em que vivemos, sua canção continua querendo “não deixar”, como diz o nome de outra canção, que o país seja arrastado à destruição completa. Seu otimismo é insistente e quase contagiante, como nesta espécie de refrão que acompanha a música:

 

Apesar de você dizer que acabou

Que o sonho não tem mais cor

Eu grito e repito: Eu não vou!

O menino me ouviu e já comentou

“O vovô tá nervoso” “O vovô

Nervoso, teimoso, manhoso” (VELOSO, 2021)

 

A internet aparece mais uma vez na forma deste menino que conversa com o vovô, talvez o próprio compositor. E ela aparece como força de positividade, capaz de reproduzir a mensagem de não permissão da canção às gerações mais novas, que respondem, que já reagem. Mas o mais interessante é que essa força positiva aparece nas canções com um conteúdo determinado. Não se trata apenas de um voluntarismo otimista que ignora as mazelas de nosso tempo. Pelo contrário: sua não permissão e sua insistência na força positiva do novo mundo que surge está balizada pela referência constante, que perpassa quase todas as canções, à tradição musical brasileira, que representa a tradição criativa e popular com a qual sua carreira está misturada. O próprio nome do álbum, Meu coco, constrói-se numa ambiguidade que joga com essa tradição: de um lado, o coco é um daqueles gêneros musicais populares de origem rural que está na base do desenvolvimento das linhas mais criativas da canção popular brasileira (sobre isso, ver o famoso livro de Mário de Andrade (2002) sobre a questão); por outro lado, o coco é também expressão popular que se refere à cabeça (que aparece na arte do disco de forma destacada). A cabeça do compositor, que se nega a dobrar-se diante da negatividade do mundo contemporâneo, é potencializada pelo coco-gênero-musical. E, na canção de mesmo nome, a tradição da música brasileira, identificada à nossa mestiçagem como grande novidade nacional, é capaz literalmente de fazer “um mundo feliz”. Essa mistura de raças, gêneros musicais e tradições religiosas – nosso elemento distintivo – faz do Brasil um país maior do que qualquer tragédia política ou social é capaz de destruir. Sem querer reproduzir as controvérsias em torno do Brasil como uma democracia racial, o álbum como um todo parece ressoar a visão positiva inaugurada pelo Casa-Grande e Senzala (1933) de Gilberto Freyre, sem ignorar (como também não fazia Freyre em sua obra) as mazelas de nossa formação histórica.

Essa visão do país está mesmo emaranhada à obra do compositor e a canção popular (que ele simplesmente não consegue deixar de fazer e de amar) seria um dos resultados mais altos de nossa formação social positiva. Desenvolvida ao longo do século XX, a canção brasileira, em seus diversos gêneros, estaria vinculada à criatividade popular potencializada pelo processo de modernização social, política e econômica por que o país passou ao longo de quase todo o século. O samba, a bossa nova, a tropicália – todos eles partes de uma narrativa de criatividade nacional, possibilitada pela nosso elemento distintivo (a miscigenação), atestariam aquilo que o país estava prestes a se tornar a qualquer momento ao longo do século passado: uma nova forma de civilização que não se renderia à seriedade do mundo europeu (produtora daquele famoso mal estar freudiano) e construiria uma nação moderna, industrial, com graus consideráveis de inclusão, sem as inconveniências culturais de um protestantismo castrador que marcaria tanto o velho mundo quanto sua réplica norte americana.

O ouvinte atento à tradição do pensamento brasileiro logo percebe que é essa a visão do Brasil que está ali veiculada. O que não está ali de forma aparente é o fato de que, ao longo do século passado, o processo de modernização capitalista que ensejou essa visão do Brasil fracassou exatamente no que se refere à nossa particularidade nacional: ao invés do paraíso na terra, a modernização aconteceu, quase toda ela, sob regimes ditatoriais. O que não foi colocado na conta é o fato de que as formas de atraso social prevaleceram quase sempre sobre a famigerada burguesia nacional (operadora da modernização), que ficou sendo uma lenda urbana ao longo do processo. Dito de outra forma: o país que Caetano evoca teve sua chance no século passado, mas não se concretizou. O país moderno e original que figuras como Mário de Andrade sonharam simplesmente não se realizou, porque, usando uma expressão de Mário, os “donos do poder” herdados da colônia venceram. E nesse sentido, a positividade de Caetano, embora inspiradora e ainda profundamente bela, é anacrônica: julga possível a realização de um projeto que, a rigor, já fracassou.

Mas tudo isso seria desimportante para o ouvinte se não tivesse consequências formais para as canções. O projeto, afinal, só pode ser evocado e a tradição criativa da música brasileira, citada. A realização cultural de fato desse projeto é algo do passado. O recurso recorrente à citação é quase que um procedimento padrão das canções. Pense-se na canção GilGal, cuja letra é uma evocação dos grandes nomes da música nacional e cuja base musical é o atabaque do candomblé:

 

Vem de Pixinguinha a Jorge Ben

Pousa em Djavans

Wilson Batista, Jorge Veiga

Carlos Lyra e o imenso Milton Nascimento

Vem de Pixinguinha a Jorge Ben

Ele me ensinou

O sentido do som

E eu quis ensinar

O sem som do sentido

Vem de Pixinguinha a Jorge Ben

Pousa em Djavans

Nossas almas irmãs

Rasgaram manhãs

Mas sem

Chegar aos pés dos Tincoãs (VELOSO, 2021)

 

A música não nos diz exatamente o que é que vem, mas o som dos atabaques e o contexto das outras canções deixa claro que o que vem é a tradição criativa de nossa música nacional, evocada não apenas pelos nomes, como também pelo atabaque, índice de nossa particularidade africana herdada da escravidão. A citação é o procedimento fundamental: aqui, os atabaques, cuja sonoridade é tão importante para a música bahiana de forma geral, não aparecem como elemento catalisador da criação musical, mas de forma bruta, como citação à fonte. Veja-se a diferença entre esse uso e aquele que faz, por exemplo, Caymmi: ali, o atabaque está plasmado em seu violão praieiro e em sua voz grossa. Se esse projeto de positividade nacional é recorrentemente citado e lembrado, ele não consegue mais se realizar num todo orgânico. Talvez a canção Recanto Escuro, gravada por Gal Costa em álbum de 2011, seja uma das representações mais incisivas dessa mesma impossibilidade. Se ali a impossibilidade está explicitada e a potência remetida ao passado, a reatualização de agora aparece marcada pelas quebras formais inevitáveis do anacronismo.

Supondo que esse argumento se sustente, há ainda uma reviravolta: afinal, o que há de mais atual do que esse anacronismo? Em termos formais, ele responde à desintegração da canção como gênero especificamente brasileiro, à globalização de seus estilos e gostos e à penetração vista como algo inevitável das modas musicais internacionais em detrimento das tradições consideradas locais. Em termos mais amplos, quais são as perspectivas, não apenas do ponto de vista político mais imediato, mas mais largamente sociais, temos diante de nós se não requentar aquele projeto fracassado? O que tem sido as saídas sociais apresentadas ao país desde a redemocratização se não a rendição às forças da modernização neoliberal contra as quais não conseguimos reagir se não por meio da conciliação que é sempre outro nome para rendição? É nesse sentido, e principalmente em suas fraturas, em suas deficiências, que o álbum de Caetano e sua ilusão impossível ganham uma atualidade inesperada. Não são as canções ou o “velho compositor baiano” que são anacrônicas: somos nós. A última pergunta que podemos colocar (e dificilmente responder) é se a música não deveria nos superar e apresentar a superação desse anacronismo. Não seria exatamente essa a origem de seu poder no século passado, a sua capacidade de magicamente transformar num todo orgânico aquilo que na realidade estava irremediavelmente desarticulado?

 

 

 


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário de. Os cocos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2002. 506 p.

DRUMMOND, Carlos Drummond. As impurezas do branco. In: _____. 23 livros de poesia. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2011. p. 143-236.

VELOSO. Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2017 [1997]. 456 p.

VELOSO, Caetano. Meu coco. Rio de Janeiro: Uns Produções, 2021. Disponível em:  https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_mb1jN3jo3DcVWuB3REx7RfpAZbTVZUN3E. Acesso em 23 de outubro de 2021.

 

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Foto: Fernando Young. Projeto gráfico: Cubículo

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Filipe de Freitas Gonçalves

Doutorando em Estudos Literários com ênfase em Literatura Brasileira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Estudos Literários com ênfase em Literatura Brasileira (2021) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduação em Letras (Bacharelado em Língua Portuguesa, com ênfase em Estudos Literários (2017) e Licenciatura (2018)) na Faculdade de Letras da mesma instituição. O interesse de pesquisa está voltado à história da literatura brasileira, teoria da literatura (gêneros literários, especialmente o romance), a relação entre a história literária e questões sociais no Brasil. Atuou, ao longo do ano de 2021, como estagiário-docente no programa Apoio Pedagógico da Faculdade de Letras (UFMG). Trabalha com ensino de Português, Literatura e Produção de Texto para alunos do Ensino Médio e Fundamental.

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