Antirracismo na arte: Rosana Paulino e Renata Felinto

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Pensar a iconografia da mulher nas obras de arte produzidas ao longo da História requer, como já pontuamos em diversas oportunidades, a identificação e aprofundamento de questões que, em sua maioria, ainda não figuram dentre os aparatos teóricos do ensino da História da Arte. Em 2019, foi ofertado pelo Centro de Formação Artística e Teconólogica (CEFART) da Fundação Clóvis Salgado, o curso Iconografia da Mulher na História da Arte, experiência que terminou por ser incluída no que à época era o meu projeto de pesquisa da graduação. Para além do conteúdo voltado especificamente à presença da figura feminina nas construções imagéticas em diferentes períodos da História, a própria reação da turma ao curso me pareceu uma chave de leitura interessante; turma lotada, foi preciso ocuparmos uma sala maior e depois, um auditório, pois mesmo pessoas não matriculadas começaram a frequentar as aulas. Era consenso geral o fato da falta, ou da escassez de discussões acerca do tema, fosse nas escolas, universidades ou no trabalho.

Bem, o curso terminou e, claro, pedimos que houvesse alguma continuidade, atendida na forma de um segundo módulo. Já em 2022, o Laboratório de Estudos Museais (LEM) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) promoveu o curso Antirracismo na Arte: primeiro movimento, também com turma numerosa e alta demanda pela continuação das discussões. Ambas as situações demonstram, antes de tudo, que a questão das perspectivas de análise iconográfica e discussão sobre arte precisa ocupar mais espaços. As turmas contavam com artistas, pesquisadores, gestores culturais, professores. Da mesma forma, a demanda pela continuidade dessas ações aponta para um alto potencial de ampliação de seu papel social. Cursos, rodas de conversa, seminários, exposições. Somadas as duas perspectivas abordadas nestes dois cursos, adentramos em outra discussão: a iconografia das mulheres negras na arte e seus impactos socioculturais. Apresentarei a seguir duas artistas que trabalham a questão no âmbito do ativismo cultural e político, contribuindo com obras e atividades de grande relevância à constituição de novos olhares acerca das representações da mulher negra brasileira, no passado e no presente.

Começaremos por Rosana Paulino; artista plástica, educadora e curadora nascida em São Paulo em 1967. Doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Gravura pelo London Print Studio, Paulino é autora de uma das obras mais relevantes ao estudo da presença das mulheres negras na História e na arte brasileiras. A série Bastidores, desenvolvida e apresentada pela primeira vez ao público em 1997, nos traz elementos que dialogam diretamente com o passado. As obras constituem-se de fotografias antigas de mulheres negras e indígenas, em preto e branco, transferidas para um tecido que tem como suporte o bastidor, peça utilizada no bordado. As figuras femininas apresentam costuras em linha preta na boca ou nos olhos, feitas de forma bem marcada sobre a fotografia. Partindo do título, as obras sugerem não apenas a presença do utensílio de costura chamado bastidor mas, principalmente, o silenciamento de negras e indígenas na História do Brasil. Sabemos que os bastidores de um evento, por exemplo, não são vistos pelo grande público e, portanto, as histórias que dali decorrem também têm pouca ou nenhuma visibilidade. A técnica do bordado, por séculos não considerada uma linguagem artística “válida” dentre críticos, professores e alunos de arte por advir de mãos femininas e remeter ao fazer doméstico, é aqui aplicada para ampliar a mensagem acerca dos silêncios. Em outras obras, a artista dá sequência à proposição e provocação de novos questionamentos; a série Atlântico Vermelho, datada de 2017, reúne impressões digitais de mapas, fragmentos de periódicos e de estudos da anatomia humana novamente sobre a costura. Em cada obra da série, a artista questiona conceitos e falas comuns sobretudo aos cientistas e políticos do período em que perdurou a instituição da escravidão no Brasil. A escolha dos títulos, materiais, elementos e símbolos utilizados na composição é perspicaz em questionar o passado em todas as suas contradições e preconceitos estruturais.

Tão importantes quanto suas produções artísticas, Rosana Paulino desenvolve uma gama de outras atividades enquanto educadora e curadora. Dentre as exposições em que já participou, destacamos Necrobrasiliana, realizada em Curitiba e encerrada recentemente, ao final de agosto. A exposição trazia a memória colonial em duas frentes: a do conjunto documental chamado Brasiliana, formado por obras pictóricas e escritas produzidos entre os séculos XVI e XIX, e de 12 artistas contemporâneos, dentre eles:  Ana Lira, Dalton PaulaDenilson BaniwaGê VianaJaime Lauriano, Rosana Paulino, Rosângela Rennó, Sidney Amaral, Tiago Sant’AnaThiago Martins de MeloYhuri Cruz e Zózimo Bulbul. Se a primeira perspectiva trazia em seu conjunto a normalização das violências praticadas contra a população negra no referido período, o grupo de artistas contemporâneos instiga a pensar criticamente esta normalização. É interessante pensar que, há poucos meses, diversas obras destes pintores do Brasil colonial eventualmente surgiam nas redes sociais em outras ocasiões e, muitas vezes, sem o menor teor crítico nas descrições que as acompanhavam. Novamente, é preciso manter a discussão antirracista na arte sempre ativa pois, tal como o texto curatorial de Necrobrasilianas expõe, a normalização do racismo e outras formas de violência tornou-se parte da memória coletiva brasileira, e continua sendo reproduzida e repassada às novas gerações.

A segunda artista é Renata Felinto, nascida em São Paulo em 1978 e atuante no Ceará como artista visual, pesquisadora e professora. Assim como Paulino, Renata Felinto tem vasta formação e atuação no âmbito da diáspora afro-brasileira na arte: É Doutora e Mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP e especialista em Curadoria e Educação em Museus de Arte pelo Museu de Arte Contemporânea da USP. Professora adjunta da URCA/CE, na qual compôs o Comitê de Pesquisa Científica, a coordenação do Curso de Licenciatura em Artes Visuais e do subprojeto PIBID, além de líder do Grupo de Pesquisa NZINGA – Novos Ziriguiduns (Inter)Nacionais Gerados na Arte que em 2021 participou do Projeto Territorial Re-connecxiones sob curadoria de Catarina Duncan e subsídios do MoMA. É também docente no Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Artes da URCA/CE e no Curso de Especialização em Gestão Cultural.

Para Felinto, a questão da ausência da discussão sobre pessoa e, principalmente, da mulher negra na arte é o ponto de partida e o fio condutor de seus projetos. A tríade de performances Axé Marias!, de 2019, representa a história de três mulheres negras com atuações de grande relevância, porém pouco conhecidas, que a artista teve a oportunidade de conhecer pessoalmente ou de pesquisar. A imagem que acompanha esta publicação é parte do projeto, e traz dona Margarida, uma das inspirações para as performances de Felinto. Maria Margarida é musicista, compositora e brincante, criadora de um grupo da tradição composto apenas por mulheres chamado “Guerreiras de Joana D’Arc”. Artista multilinguagem, Renata também desenvolveu e apresentou as performances Axexê da Negra ou o descanso das mulheres que mereciam ser amadas, em 2017. A obra faz menção ao ritual originado do candomblé que marca o enterro da espiritualidade da pessoa falecida ou o desfazer da sua iniciação na religião; o enterro, na ocasião, é de fotografias de obras de arte, sobretudo modernistas, em que a figura da mulher negra se faça presente de modo estereotipado ou em que a narrativa imagética sugira violências e preconceitos contra estas mulheres. A crítica da artista se dirige principalmente ao enaltecimento acrítico de obras e artistas do Movimento Modernista brasileiro que se utilizavam da figura da negra destas formas, aspecto sobre o qual cada vez mais pesquisadores e artistas têm se dedicado e apresentado seus projetos. Tais produções, no entanto, precisam chegar ao grande público; uma das obras enterradas por Felinto é, não por acaso, A Negra, de Tarsila do Amaral.

Rosana Paulino e Renata Felinto são duas importantes agentes desta movimentação antirracista e questionadora acerca das memórias e conceitos advindos do período colonial e que contribuem para a permanência dos mais variados tipos de agressões – verbais, físicas, simbólicas. Ambas trazem em suas trajetórias a forte relação não apenas com a ancestralidade, mas com a produção historiográfica e iconográfica. A partir do diálogo com o passado colonial ou com o passado recente, propõem representações que não apenas tornam visíveis as tantas histórias ainda não contadas ou pouco difundidas, mas problematizam e contribuem para novas pesquisas e produções artísticas. Mais do que isto, operam com excelência seus papéis sociais enquanto artistas, pesquisadoras e educadoras, movimentando e democratizando conhecimentos e ocasionando questões referentes a um passado que grande parte da sociedade brasileira ainda não olhou com o senso crítico e de humanidade necessários.

 

 

 


REFERÊNCIAS

FLETCHER, Kanitra. Redução de danos: a resistência visual de artistas negras dentro e fora do Brasil. In: História das Mulheres, Histórias Feministas Volume 2: Antologia. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 2019. p. 458-469.

Galeria. In: Rosana Paulo [site oficial da artista]. Disponível em: https://rosanapaulino.com.br/multimidia/

Nova representação da memória colonial do País é apresentada em “Necrobrasiliana”.  . In: Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira.  Disponível em: https://www.premiopipa.com/2022/08/nova-representacao-da-memoria-colonial-do-pais-e-apresentada-em-necrobrasiliana/

Ocupação finalistas 2020: Renata Felinto. In: Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Disponível em: https://www.premiopipa.com/2020/11/ocupacao-finalistas-2020-renata-felinto/

Renata Felinto. In: Prêmio Pipa – A janela para a arte contemporânea brasileira. Disponível em: https://www.premiopipa.com/renata-felinto/

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Margarida – Axé Marias!. In: Renata Felinto – Prêmio Pipa: A janela para a arte contemporânea brasileira. Acesso em 04 de setembro de 2022. Disponível em: https://www.premiopipa.com/renata-felinto/

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Paula de Souza Ribeiro

Mestra em História pela Universidade Federal de Ouro Preto na linha de pesquisa Poder, Linguagens e Instituições. Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membra do Grupo de Pesquisa Justiça, Administração e Luta Social - JALS, sediado na UFOP. Ênfase de atuação nas áreas de História da Arte, História do Brasil Imperial, Musicologia, Curadoria e Patrimônio Cultural.

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