A resposta sobre o que foi a Idade Média depende de quem é o responsável pela pergunta e de quem é o alvo da resposta. Isso ocorre devido ao conhecimento forjado sobre esse período. Conhecimento este que foi e tem sido completamente influenciado pelos pilares do mundo ocidental: o colonialismo, o nacionalismo e o eurocentrismo. Um dos exemplos desse fenômeno é a interpretação do medievo ter correspondido a um período violento e de trevas. Porém, o fato é que esse período foi tão violento quanto qualquer outro e, na verdade, o considero menos violento do que o período das grandes guerras. Frente a esses questionamentos, atualmente, e felizmente, essas interpretações estão caindo por terra. Como apresentado por Dominique Barthélemy (2010), isso ocorre na medida em que mostramos que essas imagens são produzidas e que o período não correspondia a esses estereótipos.

As interpretações sobre o medievo foram muito influenciadas pelas mídias e produções audiovisuais, por serem, em sua maioria, dominadas pelo ocidente branco que alimentava uma imagem de guerras e conflitos incessantes. Assim, os bárbaros e orientais foram colocados como grandes monstros e inimigos da civilização, principalmente contra os romanos, que responsabilizaram os bárbaros pelo fim do império. Não seria capcioso afirmar, entretanto, que os principais e verdadeiros responsáveis pela queda do império foram os próprios romanos, com as falhas administrativas das estruturas imperiais e seus problemas internos. Estes problemas, não por acaso, foram se tornando, cada vez mais, insolucionáveis. Um dos principais exemplos foram as reformas do sistema fiscal do império, como a diocleciana. Essas reformas causaram o colapso com a divisão do império, resultando em grandes problemas para as cidades, como êxodo de grandes proprietários e a intensificação das tensões internas. Além disso, o número de bárbaros que entraram no império romano era inferior e menos preparado para a guerra do que a quantidade imensa de romanos e suas grandes defesas, o que torna inviável a hipótese que os bárbaros tenham realmente destruído o império por meio da força.

Como citei acima, a reforma diocleciana reorganizou o Império Romano em quatro partes, contendo cada uma prefeitura e seu exército próprio, seus próprios limites e sua própria capital. Por sua vez, cada capital era dividida em dioceses, e, cada diocese, dividida em províncias. Essa reforma diminuiu o poder central do Estado, o que possibilitou que os grandes proprietários parassem de pagar seus impostos e passassem a arrecadar os impostos da população. Assim, esse grupo aumentou seu poder cada vez mais, concentrando os recursos em suas mãos e enfraquecendo o Imperador, alegando que este e os serviços públicos não davam conta de cuidar do império e suas fiscalizações. Não obstante, a violência passou a ser característica constituinte do império, assim como a corrupção e o patrocínio/apadrinhamento passaram a representar partes integrantes da estrutura administrativa romana.

A Idade Média, em outra mão, não inventou seus problemas e suas características, na verdade, muito foi herdado das dificuldades, das estruturas e dos problemas do período que a antecedeu. Isso pode ser visto, por exemplo, através dos meios pelos quais os europeus modernos tentaram compreender as diferenças entre os grupos sociais que foram herdados da antiguidade clássica e da bíblia, classificando-os por uma distinção entre “nós” e “eles”, “civilizados” e “bárbaros”.

A interpretação sobre os romanos, sua caracterização dos costumes, sua localização geográfica e sua continuidade propiciaram modificações sutis, mas significativas no modo como os eles descreviam os grupos sociais. Porém, apenas aos romanos era atribuída uma noção de desenvolvimento, fluidez e complexidade. Ao conceber que os romanos eram os únicos a ter uma história, os estrangeiros, pelo contrário, eram relegados à mitologia e à barbaridade. A história para estes, portanto, só existia quando entravam em contato com os romanos e sua identidade.

Uma outra característica romana, no entanto, merece atenção. A sua se baseava em uma associação e uma aceitação de um sistema legal ou político. Logo, ser romano era uma questão de lei constitucional e situacional, e não de lei natural. Portanto, de acordo com o Patrick J. Geary (2005), teoricamente qualquer um poderia ser romano. Desse modo, os habitantes do mundo romano, fossem cristãos, judeus ou pagãos, conheciam o modelo de povo étnico, baseado na ancestralidade, costumes e território, e o modelo constitucional situacional, baseado na lei e na adesão. A diferença era apenas uma questão de perspectiva, e sua distinção era feita nos preconceitos herdados. Isso permite dizer que tanto os povos bárbaros quanto os romanos, ao entrarem em contato uns com os outros, moldaram-se e influenciaram-se, tornando-se unidades políticas de caráter mais constitucional do que étnico que uniam grupos de origens culturais, linguísticas e geográficas diversas.

Ambos os grupos, sejam bárbaros ou romanos, não eram homogêneos, assim, as distinções entre “eles” e “nós” estavam desaparecendo à medida que os romanos se tornavam semelhantes aos seus vizinhos e sucessores bárbaros. Isso ocorria, pois a condição de pertencer a um povo bárbaro dependia também de uma disposição para se identificar com as tradições do povo em questão e de sua competência para contribuir com essas tradições. Assim, com o tempo e com a mescla cultural sintética, um bárbaro e um romano não eram tão diferentes e suas determinações passaram a depender da situação. Se fosse benéfico ser um bárbaro, em uma situação específica, passava-se a ser bárbaro, e o mesmo vale para a identificação como romano. Ambos os grupos passaram a adotar os costumes uns dos outros para se assemelharem e formarem alianças, como, por exemplo, à medida que as reformas iam enfraquecendo o Imperador, este era forçado a pedir ajuda, muitas vezes, aos bárbaros. Essa simbiose era muito favorecida pelo fato de ser impossível separar nitidamente esses grupos, possibilitando deduzir que nem mesmo os próprios romanos possuíam uma noção certa sobre o que era ser romano.

Essa realidade aponta para uma relação relativamente equilibrada entres eles, com situações de conflitos e de paz, mas sempre em convívio, a ponto de, com a ineficiência e fraqueza do imperador, as pessoas passarem a resolver seus problemas por meio dos grandes proprietários ou pelos reis bárbaros, dando-lhes ainda mais poder e apoio. O que permite-me concluir que, ao contrário de grandes problemas para o Império, na verdade os bárbaros foram, muitas vezes, soluções para os problemas. Logo, torna-se necessário uma revisão das interpretações, produções e estudos não só históricos e historiográficos, mas sim, gerais, sobre a Idade Média, sem a influência dominante do modo de vista preconceituoso e nacionalista do ocidente, com o propósito de articular uma dinâmica Histórica mais coerente e justa.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

GEARY, Patrick. Uma Paisagem Envenenada: etnicidade e nacionalismo no século XIX/ Povos Imaginados na Antiguidade. In: O Mito das Nações: a invenção do nacionalismo. São Paulo: Conrad, 2005, p. 27-79.

BARTHÉLEMY, Dominique. Os Guerreiros Bárbaros. In: A Cavalaria: da Germânia Antiga à França do Século XII. Campinas: UNICAMP, 2010, p. 20-78.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Revoltas camponesas na Idade Média 1358: a violência da Jacquerie na visão de Jean Froissart (1337-1405). Ricardo da Costa.

 

 

 

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