“Mi patria es el continente de la América: he nacido bajo la línea del Ecuador”
Manuela Sãenz
Neste ano de 2023, celebramos os duzentos anos da consolidação da independência política brasileira em terras baianas, evento em que as tropas portuguesas foram expulsas do território da antiga colônia quase um ano após o tão famoso e mítico “grito do Ipiranga” decretado pelo futuro imperador D. Pedro I. Apesar da narrativa androcêntrica que oculta, inclusive, o papel de mulheres aristocratas como a princesa D. Leopoldina das tramas da independência do Brasil, observamos que nos desfiles cívicos, nas imagens de divulgação, nos murais escolares das cidades baianas, destacam-se com mais frequência as figuras de três mulheres de nomes compostos: Maria Quitéria, Maria Felipa e Joana Angélica. Além dos nomes, da proximidade geográfica e da atuação no contexto de emancipação política do país, elas compartilharam o fato de terem sido mulheres que subverteram os papéis de gênero prescritos a elas em uma ordem patriarcal e fundamentada no racismo colonial. Elas e muitas outras, cujos nomes não aparecem nas celebrações oficiais, nos permitem contar uma “outra história” não apenas sobre a independência brasileira e sobre a lutas das baianas e baianos, mas sobre os processos de descolonização por toda a América Latina.
Ao problematizar os rumos tomados pelo campo da história das mulheres diante das possibilidades historiográficas da categoria “gênero”, em 1989 a historiadora estadunidense Joan Scott se preocupava com o fato de que o nosso conhecimento acerca da participação das mulheres em um dado acontecimento (como a Revolução Francesa, por exemplo) não alteraria a nossa compreensão sobre ele. Esse mesmo questionamento podemos então fazer ao estudo da atuação feminina nas lutas anticoloniais e no processo de conquista da emancipação política brasileira. O que muda de fato, em nossa percepção sobre o tema, saber que as mulheres estavam lá? Para responder a isso em uma única frase, é possível dizer que esse conhecimento nos possibilita derrubar mitos.
A memória oficial sobre a história de como o Brasil deixou de ser uma colônia de Portugal está repleta de nomes masculinos: D. João, D. Pedro, José Bonifácio, Tiradentes, entre outros, são figuras carimbadas em livros didáticos e obras midiáticas. A pintura mais famosa que constrói uma cena imaginada para o brado de “independência ou morte”, encomendada ao artista Pedro Américo encena um ato heroico do príncipe cercado por soldados e observadores passivos. Por sua vez, o marco simbólico que deu origem a uma monarquia americana cercada por repúblicas em seu continente perpetuou a ideia de que esse processo foi pacífico, sem guerras e derramamento de sangue, o que nos opunha às demais nações latino-americanas, cujas independências foram conquistadas na ponta das espadas de homens como Simón Bolívar e San Martin.
Ao conhecermos as histórias de desobediência, resistência e enfrentamento das mulheres brasileiras oitocentistas, cujos nomes venceram o silenciamento imposto através dos séculos, nossa interpretação se transforma e se estende também, de maneira relacional, aos homens que atuaram nas lutas anticoloniais. Não há passividade em mulheres que se vestiram com roupas masculinas para lutarem em batalhões militares, nem em escravizadas e libertas que expulsaram tropas portuguesas do seu território, nem mesmo em religiosas enclausuradas que defenderam com a vida seus espaços sagrados, muito menos em indígenas que saquearam vilas inimigas ou negociaram a defesa de seus territórios. Em livro intitulado “Independência do Brasil — As Mulheres que Estavam Lá”, organizado por Heloísa Starling e Antonia Pellegrin, diversas historiadoras apresentam em seus artigos as trajetórias de mulheres que atuaram nos processos de libertação nacional, desde as mais conhecidas do grande público até aquelas cujas histórias tem sido recentemente descobertas. Nomes como os de Hipólita Jacinta e Bárbara de Alencar que participaram ativamente de movimentos anticoloniais como a Inconfidência Mineira e a Revolução Pernambucana, não apenas apoiando seus maridos e filhos, mas arriscando suas reputações, seus bens e a própria liberdade, são exemplos evocados na obra. As organizadoras destacam que
Havia mulheres, contudo, decididas a governar as próprias vidas, que ameaçavam as convenções morais e sociais estabelecidas e estavam dispostas a desafiar as barreiras da participação política. E algumas delas levaram a sério um projeto de Independência para o Brasil. Vivenciaram esse projeto de maneiras diferentes, partindo de patamares sociais desiguais e atuando de forma diversa: empunharam armas, se engajaram no ativismo político, fizeram uso da palavra escrita no debate público. Comum a todas elas é a recusa ao lugar subalterno que lhes era reservado. Apesar disso, até hoje sabemos pouco – ou quase nada – sobre a história dessas mulheres pioneiras e o modo como se posicionaram no centro da cena pública durante o processo de Independência do Brasil. Seu protagonismo continua ignorado. (PELEGRINO; STARLING, 2022, n.p.).
Mesmo nos processos emancipatórios dos países vizinhos, cuja memória não nega a violência dos conflitos, a imagem das mulheres libertadoras foi invisibilizada, estereotipada ou associada unicamente ao de companheiras dos homens libertadores. Podemos, inclusive, estabelecer paralelos entre as atuações femininas nos territórios de colonização ibérica, a começar pelo papel das narradoras-personagens dos acontecimentos, mulheres letradas que produziram, para a sorte de nossa pesquisa documental, bastante material escrito (correspondências, diários de viagem, diários pessoais, panfletos). Mulheres como Maria Graham que, em sua condição privilegiada enquanto preceptora inglesa da princesa primogênita que viria a ser uma rainha portuguesa, não apenas testemunhou eventos marcantes da história política brasileira como atuou na diplomacia, mediando as negociações da Confederação do Equador. Em 1824, além de seu “Diário de uma viagem ao Brasil”, Graham publicou o “Diário de uma residência no Chile”, país no qual havia desembarcado recém-viúva e cuja recente emancipação política atiçava os interesses britânicos.
Assim, as mulheres do século XIX não eram apenas observadoras e sim personagens que protagonizaram diversas narrativas históricas e deixaram isso documentado em seus arquivos pessoais. Ao lado de um líder independentista com a notoriedade do venezuelano Simón Bolívar, a figura de Manuela Saeñz provoca inúmeros sentimentos. Tratada como amante do libertador e até mesmo objetificada em muitas representações visuais, a intrepidez de uma mulher que antes de abandonar um casamento arranjado e acompanhar a jornada bolivariana, já havia sido nomeada por San Martín como Caballera de la Orden del Sol, se imortalizou em suas cartas e diários, e em suas próprias palavras
Yo le di a ese ejército lo que necesitó; ¡valor a toda prueba! Y Simón igual. El hacía más por superarme. Yo no parecía una mujer. Era una loca por la Libertad, que era su doctrina. Iba armada hasta los dientes, entre choques de bayonetas, salpicaduras de sangre, gritos feroces de arremetidos, gritos con denuestos de los heridos y moribundos; silbidos de balas. Estruendo de cañones. Me maldecían pero me cuidaban, sólo verme entre el fragor de uma batalla les enervaba la sangre. Y triunfábamos (SÁENZ, 1846, p. 43-44).
Apesar das representações visuais que a retrataram como amante e cortesã, Manuelita foi uma soldada e se tornou uma comandante militar, “uma libertadora da América”. Como ela, outras mulheres latino-americanas vestiram fardas, empunharam armas e lideraram exércitos, perseguindo um sonho libertário, como as bolivianas Juana Azurduy, de ascendência indígena, e Manuela Eras Y Gandarillas, mulher cega que, aos sessenta anos, liderou outras trezentas mulheres contra as tropas espanholas em 1812 e teria proclamado “Si ya no hay hombres, aquí estamos nosotras para afrontar al enemigo y morir por la Patria”. Sobre essas americanas que atuaram na linha de frente das batalhas, Maria Ligia Prado afirma que
Há um número bastante expressivo de mulheres que se incorporaram ao exército, como soldados, todas defensoras da independência. Entretanto, se Maria Quitéria precisou disfarçar-se de homem, nos demais casos citados, as mulheres não foram obrigadas a esconder seu sexo para participarem da guerra (PRADO, 1999, p. 80).
Quem foi Maria Quitéria de Jesus? Em São José das Itapororocas (Feira de Santana-Bahia), em 1792, havia nascido uma mulher-soldado que fugiria da casa de seu pai para incorporar-se a um dos batalhões do Exército Pacificador que lutava contra as tropas portuguesas no território baiano. Desde cedo, a baiana dominava as habilidades de montaria e manejo de armas de fogo, não sendo afeita às “prendas domésticas” exigidas das mulheres na época. Quitéria recebera o apoio da irmã Teresa para o disfarce e, sob a alcunha de “soldado Medeiros”, com os cabelos cortados e as roupas do cunhado, se destacou nos combates que consolidaram a independência do Brasil na Bahia em 1823. Foi condecorada pelo imperador com o grau de cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro e em 1996, tornou-se patrona do quadro complementar de oficiais do Exército Brasileiro. Teve seu nome inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria em 2018.
Uma mulher-soldado das lutas pelas independências na América que enfrentou um silenciamento da história muito maior, não somente pela invisibilidade de gênero, mas também pela discriminação racial foi María Remedios del Valle. A capitã afro-argentina lutou nas guerras, perdeu o esposo e os filhos e morreu na pobreza, sem receber a pensão militar a que tinha direito. O processo de embranquecimento da história oficial da Argentina a partir do século XIX atingiu a memória de heroínas negras como María Remedios e, só bem recentemente, com a atuação de movimentos afro-argentinos, a “madre de la patria” foi reconhecida e homenageada publicamente. Entretanto, o racismo histórico ainda é um inimigo bem presente no país vizinho e o monumento em homenagem à María Remedios del Valle inaugurado em 2022 é constantemente atacado e vandalizado em Buenos Aires.
Assim, também a atuação das mulheres nos processos independentistas precisa ser analisada sob uma perspectiva interseccional das relações sociais, sobretudo, em nações que foram construídas a partir do genocídio, violência e escravização de povos indígenas e africanos. As dimensões de gênero e raça que atravessaram as experiências das mulheres negras latino-americanas e caribenhas complexificaram o caráter de suas atuações, sobretudo, diante de processos de independência política no continente que não incorporaram a extinção das relações escravistas (como o Brasil). Ao formular o categoria político-cultural da “amefricanidade”, a feminista negra brasileira Lélia Gonzalez destaca que “o caráter duplo de sua condição biológica — racial e/ou sexual — as torna as mulheres mais oprimidas e exploradas em uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente” (GONZALEZ, 2021).
Não se pode esquecer que a primeira experiência de libertação nacional da região ocorreu no Haiti, outrora colônia francesa que se tornou a primeira nação americana a abolir a escravidão de seu território. Uma independência feita por mãos negras não apenas com espadas, mas com tecidos, linhas e agulhas. Afinal foi uma mulher, Catherine Flon, quem costurou a primeira bandeira do Haiti e representou assim como outras soldadas, enfermeiras, mambos (sacerdotisas vodu) e espiãs, a união do povo preto haitiano pela revolução.
Na Bahia, a figura quase lendária de Maria Felipa de Oliveira provoca polêmicas e disputas acadêmicas e políticas, mas principalmente, descortina o papel de mulheres escravizadas, libertas e livres nas lutas contra os portugueses entre Salvador e o Recôncavo Baiano, desempenhando um papel fundamental em relação ao acesso e bloqueio do abastecimento das tropas. A marisqueira de origem sudanesa se manteve viva na memória do povo da Ilha de Itaparica apesar das tentativas de apagamento ao longo das décadas, inclusive, nas comemorações públicas do 02 de julho na Bahia. Afinal, a figura de uma heroína negra como símbolo de resistência em uma monarquia escravista e depois de uma república oligárquica não agradava as elites brasileiras. Todavia, com a ampliação dos acervos documentais em diálogo com a valorização da história oral, novas pesquisas estão sendo gestadas e já apontam para uma multiplicidade de Felipas, as vedetas, outras mulheres negras que atuaram nas guerras de independência da Bahia.
As imagens de mártires femininas na América Latina ainda povoam a imaginação popular, a devoção religiosa, os desfiles cívicos e até os livros didáticos. Muitas vezes, os suplícios da prisão ou momento trágico da morte de uma mulher acabam sobrepujando toda a sua biografia para torná-las vítimas, heroínas ou santas. É o caso de símbolos católicos como a freira baiana Joana Angélica, madre abadessa do Convento da Lapa em Salvador, morta a golpes de baioneta por tentar defender o local da invasão de soldados portugueses em fevereiro de 1822. Sua morte não apenas produziu um impacto simbólico muito forte no acirramento dos embates entre brasileiros e portugueses naquele momento, como se consolidou na memória oficial do evento, sendo comumente dramatizada, inclusive, em desfiles cívicos baianos. Por sua vez, uma mártir colombiana, Policarpa Salavarrieta, dedicou sua vida a causa da liberdade, sendo uma “costureira espiã” que se infiltrava nas casas das elites realistas. Apesar das diferenças evidentes em suas biografias, em algo se assemelham: o impacto de suas mortes violentas no ânimo de seus (e suas) compatriotas. Em seu fuzilamento, La Pola recusou as orações, mas protegeu com seu silêncio a vida de outros companheiros. A gravura com a representação do caminho para sua execução é, por incrível que pareça, uma das poucas imagens de mulheres nas independências de colônias hispânicas que aparece em livros didáticos brasileiros.
Na Bahia, no Brasil, por toda a América Latina, a participação das mulheres nas guerras de independência foi intensa e decisiva para a formação das nações latino-americanas, apesar dos apagamentos na memória oficial ou da estereotipização de seus papeis de gênero atravessados pelas hierarquias de raça e classe. Ainda há muito por ser revelado, sobretudo, acerca das mulheres indígenas que estiveram presentes na resistência contra sua reescravização, na defesa de seus territórios, nas negociações e nos ataques aos inimigos de ambos os lados. Nas celebrações baianas, as figuras do caboclo e da cabocla nos desfiles rememoram a presença mestiça e indígena para além da narrativa hegemônica do extermínio, mas ainda precisa avançar no reconhecimento da diversidade desses povos, cujas mulheres representam a resistência ancestral desta terra Pindorama e Abya Yala, que viria a se tornar Brasil e América.
REFERÊNCIAS:
DAMASCENO, Karine Teixeira. 200 anos da Independência do Brasil na Bahia: Maria Felipa de Oliveira e outras tantas “guerreiras brasileiras”. Revista Angelus Novus, n. 17, p. 211819-211819, 2021.
GOMES, Nathan Yuri. Teatro da memória, teatro da guerra: Maria Quitéria de Jesus na formação do imaginário nacional (1823-1979). Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2022.
GONZALEZ, Lélia. 2020. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano: Ensaios, Intervenções e Diálogos. Rio Janeiro: Zahar, 2021.
PRADO, Maria Ligia Coelho. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Paulo: Edusp, 1999.
PELLEGRINO, Antonia. STARLING, Heloísa. Independência do Brasil: As mulheres que estavam lá. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.
SAÉNZ, Manuela. Diario de Paita, Álvarez Saá, Manuela: sus diários, 1846.
Créditos na imagem: Reprodução: Quadro Alegoria ao 7 de Janeiro, de Mike Sam Chagas (2019), retrata batalha no Rio Paraguaçu: Maria Felipa aparece com uma tocha na mão.
Miléia Santos Almeida
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