Texto dedicado ao professor Robert Harrison como agradecimento pelas aulas sobre Dante.
meu bem
sensual maquinário crepuscular
perdi a chance dalgum punhal
de amor traído, de susto, de bala
ou vício. nada é divino e arde
o fogo de conhecê-la. tome um
gole de cerveja no copo em que
outros cantores chamam baby
você precisa saber, sou a piscina
Adriano Menezes para Belchior enquanto ele morria.
No Canto V Dante caminha ao lado de Virgílio pelo segundo círculo do Inferno. O círculo dos amantes condenados a permanecerem juntos. Sem autonomia sobre seus destinos, os amantes são arrebatados e tragados por um vento forte, como o desejo que os condenou àquele martírio. [Uma breve pausa. Sempre achei curioso que o sofrimento dos amantes em Dante tivesse a ventania como condição. Nas tradições Iorubá, Iansã, deusa das tempestades e dos relâmpagos que rege os ventos, o fogo e as paixões arrebatadoras é a orixá que pode descer aos infernos e enfrentar e dominar os Eguns, o espírito dos mortos]. Dante em seu caminho encontra com Francesca de Rimini e ela lhe conta sua história de amor triste:
“Amor, que amado algum amar perdoa,
tomou-me, pelo seu querer, tão forte,
que como vês ainda me agrilhoa.
Amor nos conduziu a uma só morte;
Caína terá quem deliu nosso alento”
Co’estas palavras resumiu sua sorte.[1]
Francesca induzida pela leitura de Galeoto, apaixonou-se por Paolo. Quando descobertos, foram assassinados por seu marido. Dante se entristece ao ouvir aquela história triste determinada pela arte e cai de pena e dor como quem se esvai em morte.
*
Após largar o mosteiro de frades capuchinhos na serra de Guaramiranga, Belchior retornava para rever os amigos. Em uma dessas visitas compartilhou com um dos colegas o desejo de “se isolar para traduzir em linguagem popular, a Divina Comédia de Dante Alighieri”.[2] A presença (recorrente) do poeta florentino em suas canções nunca foi apenas uma casualidade.
Em sua Divina Comédia Humana, ele canta um amor fruto de um encontro casual. Um amigo psicanalista, contudo, o avisa: desse jeito não é possível ser feliz porque o amor é uma coisa mais profunda que uma transa sensual. Belchior não se importa. Deixa a profundidade de lado. É na pele dela, no seu céu e no seu inferno que quer habitar. Ela canta a efemeridade da existência. Ele tem pressa, tem urgência e qualquer espaço, corpo, tempo ou forma de dizer não é um motivo pelo qual existe. Sua negação ao conselho do amigo psicanalista evoca e defende o amor como uma perdição necessária.[3] Um amor de perdição, que dá nome a uma de suas canções.[4] Como em Dante – “amor nos conduziu a uma só morte” – Belchior canta o amor que não pode ser menor do que uma experiência de morte e descida aos infernos. Amor é obra de arte.
O corpo, o risco, a fúria e a proximidade com a morte são as condições fundamentais do seu Coração Selvagem. Em um de seus maiores sucessos ele grita: meu bem, vem morrer comigo![5] Ele não quer o que a cabeça pensa. Ele quer corpo e tem pressa. Mas no momento em que encontra o corpo se demora e se apaixona devagar no abraço e no beijo ao som da música que toca no rádio do carro (é Baby, a obra-prima da Tropicália, que embala o momento).[6] É assim que o seu bem, “que outros cantores chamam baby,” o vê de perto e compartilha da sua solidão.
Em Brasileiramente Linda, Belchior explicita melhor de qual amor fala. O amor seria banal. Ele buscaria a “paixão fundamental, (edípica vulgar) de inventar [s]eu próprio ser”.[7] A substância dessa paixão que canta é humana naquilo que pode compartilhar com a intensidade do animal – um quase esquecimento da idealização do outro. Um gesto quase antropofágico de devorar o outro o máximo que puder sem pudor.
Apesar de Belchior ter sido um dos cantores brasileiros mais universais no que tange, especialmente, a sua poética, essa paixão que evoca a morte se canta a partir de uma Retórica Sentimental do encontro feito de três raças tristes. Essa paixão tem seu lugar atado aos tristes trópicos brasileiros. Nessa terra que ele ironicamente expõe em Jornal Blues, o bispo e o governante, velhos católicos, políticos jovens, senhoras de idade média não se seduzem pelo “bem comum”. Esses cidadãos respeitáveis fariam mesmo era falta e inveja ao inferno de Dante.[8]
[Outra pausa. Se Iansã, a Orixá das paixões que tomam os homens como relâmpago e como um furacão e os suspendem do chão, é a mesma que desce aos infernos e controla os Eguns, essa descida ao submundo pode ser alegoricamente associada à perda de controle do ego. Trata-se de certo colapso da harmonização dos desejos com a realidade. Mas que após o confronto com os instintos, é possível dominá-los e sair do inferno.]
“No começo era o amor”. É do amor enquanto o oferecimento de uma falta que nasce a psicanálise para Lacan.[9] Se o amor é a reunião do desejo (capacidade de imaginação infinita) e do componente físico (ato sexual), que não pode realizar tudo aquilo que o desejo projeta, a psicanálise tem o objetivo de fazer o homem aceitar a sua miséria cotidiana: todo sofrimento emana da capacidade infinita do desejo produzir expectativas que não podem se realizar pelo ato sexual, pela materialidade do amor. Se a satisfação pertence à ordem do impossível e precisamos de psicanálise para lidar com isso, Belchior, ao rejeitar o conselho do analista na canção Divina Comédia Humana, acolhe o angustiante contrassenso do amor, sem que ele se torne condicionante ou um problema grave. Aqui, não importa o que o amor é enquanto “expectativa”, mas o que ele é capaz de produzir, sua concretude imperfeita e limitada. É se abrigando na realidade que ele caminha [como Dante] para o Paraíso. Afinal, Deus, essa “coisa brasileira, nordestinamente paciente” não habita o Inferno.[10]
*
Na canção Que tudo o mais vá para o céu, parceria com Jorge Mautner, que abre o disco Paraíso, segue-se uma cena na qual o eu lírico se recorda com detalhes de uma conversa com a mulher sobre Andaluzia e Valladolid durante uma refeição. Falam sobre coisas do cotidiano. Ela dizia que Granada fica além-mar na Espanha. Molhando o seu pão no vinho dele, falava também de coisas do Brasil, do FMI, e de Guernica, o quadro de Picasso que remete à Guerra Civil Espanhola, responsável pela execução do poeta Lorca mediante o fascismo de Franco. É sobre o Poeta de Andaluzia que conversam.[11]
Vai embora poeta maldito! Seu tempo maldito também já terminou! O encontro, ao que parece, foi interrompido com insultos pelo “homem da máquina”. Os versos continuam uma alusão ao extermínio de Lorca, mas também do próprio Belchior que sentia a derrocada do sucesso que fizera nos anos 70. Contudo, ele foi embora sorrindo sem ligar para nada. E o segredo que o fazia ignorar o insulto era ter a alma apaixonada. Esse estado de satisfação não dura muito, contudo. Percebe-se sozinho. Os cabelos negros dela, mais negro que o negro da asa da graúna o faz mergulhar na realidade, ele sente o peso da noite e tenta escapar da solidão que o invadiu. Entra em um cinema Tecnicolor e Pana Vision, mas vem a pergunta de que vale a minha boa vida de playboy?
O verso acima é uma referência imediata à música de Roberto e Erasmo Carlos, Quero que vá tudo para o inferno.[12] Trata-se também de uma provocação a Roberto. Na canção do ícone da Jovem Guarda, o eu lírico sofre a ausência da mulher que ama e sua “vida de playboy” não é capaz de preencher a solidão e a dor que essa ausência produz. Tudo o mais se tornava irrelevante. Tudo o mais podia ir para o inferno. A provocação de Belchior recai em elementos e disputas em torno da indústria fonográfica do Brasil que não vem o caso aqui.[13] Meu interesse é a provocação no que tange à forma do amor que a música evoca. Na canção de Roberto e Erasmo o que importa é que o eu lírico tenha a amada, “o que de mais existe” não interessa. Já em Belchior, a amada é um espaço para a experimentação também de um algo mais. Aquilo que está a sua volta, a angústia que sente, importa, e ele quer, a despeito e junto à sua dor, que tudo o mais vá para o céu.
A provocação de Belchior ao tipo de amor presente na música de Roberto é também uma crítica a certo ethos cordial pautado pelo egoísmo. Em Meu Cordial Brasileiro, parceria com Toquinho, ele confessa a pouca paciência para habitar a versão tropical do inferno de Dante: O Senhor não me perdoa eu não entrar numa boa e perder sempre a esportiva, frente a esta gente indecente, que come, drome e consente; que cala, logo está viva.[14] Belchior quando falava de amor, de paixão e de sexo casual não deixou de presentificar criticamente os colegas desaparecidos, os exilados, o perigo da esquina colocados pela condição política ditatorial. Sua experiência do amor não o coloca alheio à realidade. O “eu e o você” se faz junto ao mundo, nunca a despeito dele. É com a mulher que ama que lembra o poeta executado.
Mas não é apenas a Roberto que Belchior responde no seu caminho para o Paraíso. De modo mais radical é com Caetano Veloso com quem dialoga. O antigo compositor baiano era a referência da juventude errante à qual pertencia e ainda buscava. Sobreponho aqui (livremente) versos das canções de Caetano e Belchior que retomam também, Beatles e Rolling Stones, a partir dos quais o diálogo pode ser visualizado. É Caetano quem começa:
– Baby, você precisa saber da piscina. Baby, você precisa ouvir aquela canção do Roberto. Baby, você precisa aprender inglês. Baby, você precisa saber de mim. Você precisa aprender o que eu sei e o que eu não sei mais.
– Sorry sorry sorry sorry, baby! Desculpe o inglês que aprendi nos almanaques de música do mês. Mas você precisa saber, because you told me once… Tudo é perigoso. Tudo é divino maravilhoso. Sorry sorry sorry sorry, baby, because you told me once… Here comes the sun. I need you because you told me once: todo prazer provém do corpo.
– Leia na minha camisa!
– I can’t get no satisfaction.
– Baby, eu sei que é assim.[15]
A paixão de Belchior é uma herança crítica e melancólica da Tropicália. Foi mais acima da Bahia que ela produziu ambições à sua altura. Como sugere Claudio Coração, “Belchior, especificamente, e outros tantos artistas nos anos 1970, parece herdar, de maneira inconveniente, essas aspirações [tropicalistas] estéticas e políticas, num sempre desconfortável jogo de assimilação artística: negando e afirmando suas principais balizas”[16]. A produção do artista foi narrando os sonhos do garoto “nordestino” (nordeste é uma ficção, nordeste nunca houve) numa tensa incorporação e confronto com os sonhos tropicais.[17] Belchior chega ao limite dessa tensão se dissipando literalmente no caminho, tendo abandonado o mastreiam e vivido como nômade e errante, deixando filhos e dívidas pelo trajeto, (mas, claro, a paixao ao lado).
Ele não quis mais falar das coisas que aprendeu nos discos. Foi nos discos (tropicalistas) que ouviu: Atenção! Ao dobrar uma esquina, uma alegria.[18] Belchior, apesar de ter empenhado sua energia na tentativa de uma nova vanguarda, preferiu, ao fim ir viver o que cantou. Ele sabia que o amor era uma coisa boa, mas decidiu que o canto vale menos do que a vida de qualquer pessoa.[19] Eles, os cordiais brasileiros, haviam vencido já na sua partida para o futuro. Cuidado, meu bem, há perigo na esquina. Como era possível, que depois de 1968, depois de terem feito tudo o que fizeram, ainda eram os mesmos e amavam como seus pais? Como era possível que amassem como Roberto?
Mas Belchior, como Dante, buscou o Paraíso. No detalhe e na alucinação da realidade. Ora (direis) ouvir estrelas! Certo/ Perdeste o senso![20] E foi lá no último círculo do céu que teve a visão do “l’amor che move il sole e l’altre stelle”[21], aquela estrela que era dela, Vida, vento, vela leva-me daqui.[22]
Ainda ponho a camisa
Que avisa, precisa:
“I can’t get no satisfaction!”
Oh! Oh! Bad bed times!
Onde os puros saberes?
Onde a fúria de seres humanos
Contra a ira dos deuses?
Oh! Que cena obscena!
Pedir: “Por favor, nada de amor!”
“I can’t get no satisfaction!”
Belchior – Elegia obscena
***
A trilha sonora deste texto pode ser acessada no Spotify:
NOTAS
[1] ALIGHIERI, Dante. Canto V Inferno. Divina Comédia. São Paulo: Editora 34, 3ed., 2016, p. 63.
[2] MEDEIROS, Jotabé. Belchior. Apenas um rapaz latino-americano. São Paulo: Todavia, 2017, p. 19.
[3] Belchior. Divina Comédia Humana. Todos os sentidos. Warner, 1978.
[4] Belchior. Amor de perdição. Elogio da Loucura. Poligram, 1988.
[5] Belchior. Coração Selvagem. Coração Selvagem. Warner, 1977.
[6] Caetano Veloso; Gal Costa (intérprete). Baby. Tropicália ou Panis et Circencis. Philips Records, 1968.
[7] Belchior. Brasileiramente Linda. Era uma Vez um Homem e Seu Tempo. Warner, 1979.
[8] Belchior. Retórica Sentimental. Era uma Vez um Homem e Seu Tempo. Warner, 1979.
[9] LACAN, J. O seminário, livro 8 – A transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1992.
[10] Belchior. Retórica Sentimental. Era uma Vez um Homem e Seu Tempo. Warner, 1979.
[11] Belchior; Jorge Mautner. Que tudo o mais vá para o céu. Paraíso. Warner, 1982.
[12] Erasmo Carlos; Roberto Carlos. Quero que vá tudo para o inferno. Jovem Guarda. CBS, 1965. Roberto Carlos. CBS, 1975.
[13] SANCHES, Pedro Alexandre. Como dois e dois são cinco. Op. cit., p. 231-243.
[14] Belchior; Toquinho. Meu Cordial Brasileiro. Era uma Vez um Homem e Seu Tempo. Warner, 1979.
[15] Caetano Veloso e Gilberto Gil. Divino maravilhoso. Gal Costa. Phonogram/Philips, 1968. Belchior. Sorry, Baby. Single. Chantecler, 1973. George Harrison. Here comes the sun. Abbey Road. The Beatles. Apple Records, 1969. Mick Jagger; Keith Richards. (I can’t get no) satisfaction. Out of Our Heads. The Rolling Stones. London Records, Decca Records, 1965. Belchior. Elegia obscena. Elogio da Loucura. Poligram, 1988.
[16] RODRIGUES, Cláudio. A crítica e o novo: o semblante melancólico em Alucinação, de Belchior. Rumores, número 25, volume 13, janeiro – junho, 2019, p. 25.
[17] Belchior. Conheço meu lugar. Era uma Vez um Homem e Seu Tempo. Warner, 1979.
[18] Caetano Veloso e Gilberto Gil. Divino maravilhoso. Gal Costa. Phonogram/Philips, 1968.
[19] Belchior. Como nossos pais. Alucinação. Phonogram, 1976.
[20] Belchior. Divina Comédia Humana. Todos os sentidos. Warner, 1978.
[21] O amor que move o sol e as mais estrelas. ALIGHIERI, Dante. Canto XXXIII Paraíso. Divina Comédia. São Paulo: Editora 34, 3ed., 2016, p. 731.
[22] Belchior e Fagner. Mucuripe. Elis, Elis Regina. Phonogram, 1972.
Crédito da Imagem: Belchior Foto: 27/10/1983 / Sílvio Correa
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Thamara Rodrigues
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