Cinco artigos para pensar as figurações indígenas na história da historiografia

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No dia 19 de abril de 1940 representantes indígenas de várias etnias se reuniram em Pátzcuaro para discutir pautas a respeito da situação dos povos indígenas após séculos de colonização e da construção dos Estados Nacionais nas Américas. O evento ficou conhecido como o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano e, a partir do ano seguinte, vários países do continente americano passaram a incluir em seus calendários o 19 de abril como dia de homenagem aos povos nativos ou indígenas.

Com o objetivo de denunciar as violências sofridas diariamente e demarcar politicamente na história nacional a trajetória de resistência desde a colonização, o dia 19 de abril é conhecido hoje no Brasil como o “Dia da Resistência dos Povos Indígenas[1]. Essa é uma data na qual se luta pelo reconhecimento da diversidade cultural dos povos indígenas e pela garantia de direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988 e em tratados internacionais. Embora essas lutas tenham paulatinamente passado a assumir certa centralidade no cenário nacional, é importante ressaltarmos que ainda há uma enorme resistência em relação ao reconhecimento da diversidade e da importância destes povos.

Foi pensando nessas questões que preparamos uma lista com cinco artigos para pensar as figurações indígenas na história da historiografia. Nessa bibliografia comentada, trazemos indicações de artigos da revista História da Historiografia fundamentais para pensar a forma como os povos indígenas têm sido retratados pela historiografia, perpassando assim pelos debates, temporalidades e disputas de memória que acompanham o tema. Os artigos reunidos são leituras que enfatizam a necessidade de refletir sobre a atual situação dos povos indígenas e reivindicar o papel fundamental destes povos na formação cultural e étnica da população brasileira.

 

1) Eliminando manchas brancas: um desmonte da cartografia indigenista de Curt Nimuendajú

Lana Moraes
Carlos Carvalho
Manoel Rendeiro
Tiago Gil

O “Mapa Etno-histórico” de Curt Nimuendajú foi uma das representações cartográficas que buscou exaustivamente localizar os principais grupos nativos da América do Sul. É a partir dos usos dessa cartografia indigenista de Curt Nimuendajú que este artigo se propõe a discutir a representação cartográfica de grupos indígenas e seus usos pelos pesquisadores.

Os autores partem da ideia de que os mapas são constructos retóricos que devem ser lidos como textos, discutindo seus limites e possibilidades e se atentando para as opções teóricas e metodológicas envolvidas na sua elaboração. Nesse sentido, o artigo se vale da reconstrução cartográfica digital do “Mapa Etno-histórico” para fazer emergir as diferenças entre o projeto enunciado por Curt Nimuendajú e o que foi dito em termos cartográficos. O artigo perpassa, portanto, por uma descrição da obra e suas opções mais evidentes com o objetivo de alcançar o debate em torno dos procedimentos técnicos para interpretar os resultados e estabelecer um diálogo com a nova cartografia crítica e com a etnogeografia.

 

2) Interseção de subjetividades: a presença indígena na escrita afetada dos jesuítas

Guilherme Galhegos Felippe
Carlos Daniel Paz

A atuação catequética dos missionários da Companhia de Jesus na região do Gran Chaco, na época colonial, foi marcada por sucessivas tentativas de aproximação com os grupos indígenas. Com o objetivo de identificar o entrecruzar dessas relações, este artigo analisa as marcas de interseção de subjetividades na escrita desenvolvida pelos membros da Companhia de Jesus.

Para Guilherme Galhegos Felippe e Carlos Daniel Paz a compreensão de que esses registros compunham a interseção de subjetividades foi responsável por dar um novo fôlego de análise para a experiência reducional na América espanhola. O objetivo dos autores é demonstrar que a presença, a atuação e os saberes dos indígenas também provocaram perturbações nesses registros, gerando o que chamaram de uma “escrita afetada”. Ao evidenciar essas interseções o artigo desenvolve a hipótese de que esses registros são resultados da ponderação do missionário ou da influência direta ou indireta que os nativos exerceram a partir do contato e convívio reducional.

 

3) Passados que persistem na Amazônia peruana: disputas temporais e justiça entre os Ashaninka do rio Ene (1980-2017)

Guilherme Bianchi

Discutir os limites e potencialidades derivados da cosmologia indígena como um modo legítimo de ser e de relacionar com o tempo e a política é sem dúvidas um dos desafios às estruturas ontológicas e epistemológicas da história. É a fim de conceber a história como uma ferramenta ética que Guilherme Bianchi desenvolverá este artigo sobre as experiências diferenciadas de tempo da Amazônia peruana.

Com base em pesquisa etnográfica e revisão bibliográfica, Bianchi busca abordar a experiência histórica dos Ashaninka que habitam a bacia do rio Ene, na Amazônia central peruana. O objetivo principal do artigo é entender de que maneira a insistência ameríndia na persistência do passado é parte de uma estratégia política de não repetição. O argumento do autor é de que as discordâncias em relação aos entendimentos dos marcos temporais do “conflito armado interno” entre o discurso dos Ashaninka e o discurso do Estado peruano pode nos ajudar a tensionar e, assim, levar a sério as percepções não-Ocidentais de tempo e de justiça.

 

4) Quando a literatura fala à história: a ficção de Barbosa Lessa e a memória pública no Rio Grande do Sul

Jocelito Zalla

A incorporação da história das Missões Jesuítas ao patrimônio cultural do Rio Grande do Sul formou uma arena de disputas em torno das relações entre literatura e escrita da história. Buscando entender quais são os usos e as funções da literatura de imaginação nessas batalhas de memória, Jocelito Zalla se propõe a analisar as intervenções de Luiz Carlos Barbosa Lessa no debate público rio-grandense pela literatura de imaginação.

O artigo de Zalla parte do chamado “caso Sepé”, em torno do qual foi ponderada a conveniência ou inviabilidade de incorporar a experiência missioneira guarani na narração do passado gaúcho. O objetivo do artigo é analisar não apenas as posições de Lessa no debate, mas avaliar as possibilidades e escolhas formais de confronto, em especial a escrita literária como contraponto ao discurso histórico. Para o autor, a tomada de posição de Lessa sobre a questão indígena leva a críticas mais amplas ao modelo dominante de memória histórica no estado, orientando seu projeto literário para criações até então pouco comuns, como a figuração de grupos e segmentos tidos como marginais (indígenas, negros, mulheres), além da reafirmação do caráter popular do gaúcho rio-grandense.

 

5) Tópicas nos trópicos: o sublime em O Guarani (1857), de José de Alencar

Cleber Vinicius do Amaral Felipe

As descrições do cenário brasileiro e o dos costumes dos povos originários fez parte do gênio criativo e da escrita dos romancistas que buscavam encontrar a suposta origem de uma nação. Com base nesses imaginários, o texto de Cleber Vinicius do Amaral Felipe volta-se para um conjunto de lugares-comuns presentes no romance O Guarani (1857), de José de Alencar.

O autor busca historicizar o paradigma artístico que subsidiou sua escrita, analisar a construção do éthos indígena e mapear algumas figuras mobilizadas para descrever as florestas brasileiras e o cataclismo que encerra a narrativa. A proposta do artigo se atém a uma abordagem estética que não negligencia o caráter datado dos códigos linguísticos, ou seja, tópicas como originalidade e genialidade foram tomadas como convenções ou constructos que o romance alencariano buscou dissimular para atender aos protocolos literários de sua época.  O argumento do autor é de que, embora seja recorrente a negação dos artifícios retórico-poéticos, José de Alencar recorreu a novos recursos como, por exemplo, à concepção de sublime.

 

 

 


NOTAS

[1] Leia na íntegra sobre a modificação do “Dia do Índio” para o “Dia dos Povos Indígenas”. Cf.: ALMEIDA, Helena Azevedo Paulo de. 19 de abril: Vamos refletir sobre os povos indígenas?. IF Sudeste Mg, terça-feira, 19 de abril de 2022. Disponível em: https://www.ifsudestemg.edu.br/noticias/reitoria/19-de-abril-vamos-refletir-sobre-os-povos-indigenas. Acesso em: 20 abr. 2022.

 

 


Créditos na imagem de capa: Ilustração de Davis Sousa.

 

 

SOBRE A AUTORA

Ilda Renata Andreata Sesquim

Doutoranda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Participa do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM). Desenvolve pesquisa na área de Teoria da História e História da Historiografia Brasileira, onde tem como objeto a História das mulheres intelectuais no Brasil.

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