Nos últimos dois meses, para cozinhar, criei o hábito de ouvir discos de samba. Gosto muito de cozinhar ouvindo música, e o tipo musical varia conforme o meu humor. Entre janeiro e fevereiro, no entanto, o samba ganhou uma atenção especial durante o meu ritual diário de fazer almoço. O batuque na minha cozinha seguiu a levada de sambistas como Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Aniceto do Império, Fundo de Quintal, entre outros. Só gente fina. Ou, para usar uma analogia gastronômica – só a nata do samba.
O interesse de ouvir essa turma partiu de uma questão que me acompanha há um tempo, antes mesmo de começar a pesquisar alimentação, das lembranças que tenho de ouvir um partido alto que, no improviso, coloca uma feijoada no meio da letra ou conta causos envolvendo comida. O tema da reunião mediada por bebidas e comidas, que expressa formas de sociabilidade, adianto, é comum nesse tipo de música. Coisas que falam muito da cultura popular carioca sobre a qual, via de regra, tenho interesse. Recorri à discografia desses artistas para ver quais representações sobre comida e o ato de comer são mobilizadas em suas letras.
Samba e comida, na cidade do Rio de Janeiro, têm uma história entrelaçada. O ritmo, como manifestação cultural, foi ganhando corpo em festejos e reuniões que aconteciam nas casas das tias baianas, reduto negro carioca, no início do século XX. Essas casas, situadas na região batizada por Heitor dos Prazeres como “Pequena África”, formavam uma territorialidade negra no Rio, do Cais do Porto à Cidade Nova, na Praça Onze, no interstício entre o Centro e a Zona Norte da cidade.
O Rio de Janeiro, africanizado desde o século XVI, foi se reafricanizando ao longo dos séculos. Com o infame título de principal porto atlântico e maior cidade escravista das Américas, por aqui se formou, assim como em Salvador (BA) e Recife (PE), um ambiente multicultural africano, segundo Marcos J. M de Carvalho (2018, p. 157). O Rio de Janeiro se torna uma cidade negra.
No final do século XIX, com a Abolição e República, aumenta o fluxo de imigrantes baianos para cá, em busca de melhores condições de vida na capital do país. O artigo de Mônica Velloso (1990) trata desse processo, mostrando que essa imigração estava associada com uma ampla rede de solidariedade e parentesco na capital. A autora mostra, também, o papel preponderante que as mulheres tiveram, as chamadas “tias”, categoria que ressalta o parentesco ampliado, cujas casas funcionavam como reduto e referência para os recém-chegados. Pessoas como Tia Davina, Sadata, Perpétua, Veridiana, Calu Boneca, Maria Amélia, Rosa Olé, Gracinda, Ciata, Perciliana, entre outras. Mônica Velloso diz que a casa das tias era um polo aglutinador e de socialização da comunidade negra, espaço onde era possível se atualizar das novidades, além de comer, sambar, criar, casar e tudo mais que a sociabilidade construída nesses espaços permitia.
Comida aparece como elemento agregador em diversos contextos culturais. Receber alguém em casa sem oferecer o que comer e beber pode dar o que falar. Os festejos e reuniões são sempre acompanhados de alimentos, que de acordo com a ocasião, pode assumir a forma de “comida típica”. O trabalho de Mônica Velloso é importante porque mostra como, afinal, a “baianada” da Pequena África, introduzindo novos hábitos, costumes e valores, influenciou a cultura carioca. E foi nesse microcosmo político-cultural que se formou o samba carioca. Ao longo do século XX, o samba foi ganhando novos formatos e público; foi marginalizado e depois incorporado pelas políticas de Estado; agonizou em alguns momentos, mas jamais se entregou ao suspiro derradeiro, como cantou Beth Carvalho.
A história é longa, e não faltam referências sobre o assunto. De todas as suas facetas, o que interessa aqui é pensar o samba como uma forma expressiva das coisas do cotidiano, como uma crônica que fala de experiências de pessoas e lugares. Que fala de personagens, situações, de comida como sociabilidade, como história, como prazer, como subversão de uma vida pensada e regulada pelo e para o trabalho. Como lembra o historiador Luiz Antonio Simas:
Nos sambas vivem saberes que circulam; formas de apropriação do mundo; construção de identidades comunitárias dos que tiveram seus laços associativos quebrados pela escravidão; hábitos cotidianos; jeitos de comer, beber, vestir, enterrar os mortos, amar, matar, celebrar os deuses e louvar os ancestrais. (SIMAS, 2019, p. 114)
Montei uma playlist que tem, atualmente, 20 sambas. Está aberta e em construção, podendo ser ouvida e acrescentada na minha conta no Spotify. Fica o convite. Aqui, pelo tamanho do texto, me limito a comentar apenas alguns sambas. O interesse é ver os significados mobilizados sobre alimentos e formas de fazer. Vamos ver o que o samba ensina sobre comida e a coisa boa que é comer.
Comida e trabalho
Nos sambas ouvidos, comida e trabalho aparecem associados à hora do almoço. Nas músicas “Quiabo bom”, “Feijão da dona Neném” e “Torresmo à milanesa”, cantadas respectivamente por Leci Brandão, Zeca Pagodinho e Clementina de Jesus, as narrativas apresentadas tratam de comida como prazer, como solidariedade e como expressão da “dureza” da vida.
Em “Quiabo bom”, Leci Brandão fala de um trabalhador que em certa terça-feira de trabalho, com pouco dinheiro, foi almoçar na pensão da Iáiá, que oferece comida caseira a preço popular. Sem conhecer o espaço, teve que se arriscar e, para sua surpresa, provou um “quiabo bom” que não podia imaginar. Daí em diante, seu encanto com o quiabo da Iáiá é tamanho que, na hora do almoço, quando a “fome é de arrasar”, causa alvoroço e conflito com o patrão, que fica irritado com o funcionário que sai às pressas sem marcar ponto ou recolher as ferramentas espalhadas. O prazer é tanto que virou “mania o tempero da Iáiá”, no almoço e na janta, onde ganha destaque o quiabo, “verdinho e saboroso”, que é “pra comer sem lambuzar”. A música apresenta, além da relação cômica do trabalhador com o quiabo de Iáiá, algumas possibilidades de uso desse ingrediente: frango com quiabo, prato característico da culinária mineira; fala do caruru, comida baiana e votiva, oferecida às crianças no dia de Ibeji.
Se na música de Leci tem estabelecida uma relação entre patrão e empregado, que é conflituosa a partir da comida, em “Feijão da dona Neném”, de Zeca Pagodinho, a coisa é um pouco diferente. O primeiro ponto é que, nesse “partido de malandro” que canta Zeca, “feijão” não é o ingrediente propriamente dito, como o quiabo da primeira música. Na linguagem popular carioca, “feijão” é sinônimo de feijoada. Quando se diz “vou fazer um feijão” para contexto de reuniões e festejos, entende-se que o prato principal será feijoada. E o feijão da Dona Neném é feito no fogo de lenha, que assim “tem bom paladar”, conforme ela aprendeu com Penha, segundo Zeca.
O enredo da letra aparece em seguida quando Zeca diz que, certo dia de Agosto, foi na favela do Rato Molhado (Zona Norte) como convidado de Dona Neném. Chegando lá, “entre a cana e o tira-gosto”, começou a estranhar o movimento, e após tropeçar num tijolo, percebeu que o convite era malandragem, “era pilantragem, era tudo armação” quando pediram sua ajuda e lhe deram “a bermuda, a pá, a enxada e o carrinho de mão, onde se lia a mensagem primeiro a laje, depois o feijão”. Em tom de galhofa, Zeca narra o mutirão que é uma prática muito comum entre as classes populares no Rio. Assim, a obra de uma casa – bater uma laje, por exemplo – é um evento que reforça laços de solidariedade pelo trabalho empregado por amigos e parentes, sem remuneração, com a oferta, por parte dos beneficiários, de comida e bebida para os trabalhadores.
Ao contrário do prazer narrado por Leci Brandão e da comida como recompensa por Zeca, em “Torresmo à Milanesa”, Clementina de Jesus trata de uma vida que “é dureza”, representada pela escassa comida na marmita. Na forma de diálogo, trabalhadores de obra param às 11 horas para almoçar e conversar. Quando Dito é indagado sobre o que trouxe na marmita, responde “trouxe ovo frito, trouxe ovo frito”; Beleza, respondendo à mesma pergunta, diz que em sua marmita trazia arroz com feijão e um “torresmo à milanesa”. Torresmo à milanesa projeta uma imagem estranha no diálogo. Sentados na calçada, conversam “sobre isso e aquilo, coisas que nóis não entende nada”. Andam, puxam uma “páia” (cigarro de palha) e constatam a vida dura: “é dureza, João”. Por fim, comentam que o “mestre” disse que não teria vale, que parece que “ele esqueceu que lá em casa não sou só eu”.
Comida e sociabilidade
Em geral, a maior parte dos sambas da playlist falam de reuniões, expressando o caráter socializante da comida. Músicas como “Feijoada completa” (Chico Buarque), “No pagode do Vavá” (Paulinho da Viola), “Boca miúda” (Fundo de Quintal), “Deixa Clarear” (Zeca Pagodinho) e “Saideira” (Martinho da Vila), os encontros acontecem no espaço doméstico ou no botequim, na rua.
Quando falam de encontros em casa, as letras reforçam os estereótipos da cozinha como um ambiente genuinamente feminino, cabendo à “mulher” os preparos da feijoada completa (Chico Buarque) e à “nega velha” o improviso de alimentos para suprir a falta momentânea de um churrasco que recebeu mais gente do que o previsto (Fundo de Quintal). Às mulheres cabem os serviços da cozinha, enquanto aos homens cabem os trabalhos de organizar o pagode e a recepção dos convidados. A “Feijoada completa” de Chico Buarque não tem sofisticação, é representada como simplicidade popular, comida para um batalhão de amigos que lhe visitam com fome e sede, sendo necessário colocar água no feijão. Alerta à “mulher” que não precisa de afobação, pois não carece de “pôr a mesa, nem dar lugar”, cabendo apenas pôr os pratos no chão – “e o chão tá posto”.
Em “Boca miúda”, pelo contrário, o que deveria ser simples abriu espaço para fartura. Fundo de Quintal narra uma reunião que deveria ser para poucos – uma boca miúda – e com a chegada de “convidados de convidados”, o improviso da festa fez dela um banquete. O que começou com falta de alimentos e pessoas reclamando com fome, foi amenizado pelos improvisos alimentícios da “nega velha” (“enquanto isso a nega velha faz salgadinho, bate um queijinho, um salaminho, arranca fruta madura do pé”) e pelo pagode firmado, enquanto corria o “rateio” para compra dos ingredientes para o churrasco. Tudo é improvisado, e por isso funciona. Se antes o excesso de pessoas era um problema, deixa de ser e começa a agregar pessoas como um ato de solidariedade: “não tem nada não?, pode chegar, com fome ninguém vai ficar”, diz a música, exigindo dos conviva apenas que se bata palma, para firmar o pagode. O que era para ser uma “boca miúda” passou a reunir inúmeras pessoas, recebendo gente de “Copacabana, Bangu, Realengo, Pavuna e Irajá”; o que era escassez, virou fartura: “o negão comeu tanta picanha que até pulou do oitavo andar”.
Paulinho da Viola, em “pagode do Vavá”, fala da Tia Vicentina (1914-1987), personagem icônica da Portela. Embora a música fale do “tremendo pagode” que ocorreu no domingo na casa do Vavá, o destaque é dado ao “famoso feijão da Vicentina” que “só quem é da Portela é que sabe que a coisa é divina”. Lá, no pagode do Vavá, havia gente de todo lugar, que ficava à vontade, tirando o sapato e comendo com a mão. É um samba importante que resguarda a memória da Tia Vicentina e o seu feijão, que fez muito sucesso no Rio de Janeiro nos anos 1970.
Na rua, o espaço do botequim é construído como um ambiente masculino. Em “Deixa clarear”, Zeca Pagodinho fala da tendinha que tem “caninha da boa”, onde se pode comer angu com rabada, jogar um carteado e sinuca madrugada adentro, onde tem vitrola de ficha e “rabo de saia” para dançar. Já Martinho da Vila em “saideira”, fala do copo de cana, de um Rio boêmio, também fala do “rabo de saia” e lembra o angu à baiana de Dona Lindaura. A sociabilidade da rua, do encontro no botequim, é representada como uma oportunidade masculina para beber, comer e jogar.
Outros temas aparecem nos sambas da playlist, que tratam de ingredientes, pratos tradicionais e formas de preparo. Zeca Pagodinho fala da caxanga de Dona Isabel, por exemplo, uma preta baiana “que toda semana arma um rango maneiro” com comidas típicas da Bahia (caruru, vatapá, moqueca de xaréu) preparadas no fogão de lenha, onde “a rapaziada se sente amarrada com a batuca e o sabor do tempero”. Na caxanga de Dona Isabel, além de comida, tem “chorinho, forró, capoeira”, local de “preservação das raízes” (negras). Zeca, em outra música (“Colher de pau”), fala da “Vovó” que traz sabedorias e memórias do cativeiro, compartilhadas com os demais enquanto o fogo a lenha se encarrega do cozimento. É nesse momento que Vovó “conta histórias da sua vida do tempo da escravidão”, memórias tristes, que fazem “seus olhos vertem lágrimas, ela lembra da senzala, o seu corpo arrepia, sua voz se cala”. Vovó, que não desapega do que é tradicional para ela (sua colher de pau e vestes), traz consigo “as nuances africanas” que a mantém de pé, e traz também, como herança, seus orixás do candomblé.
O tema da tradição x modernidade aparece também em Beth Carvalho em “Goiabada Cascão”, cuja letra trata de coisas raras “que ninguém mais acha”. Entre as coisas que se lamenta a perda, Beth fala que na tradicional festa da Penha já não se acha mais “rango de fogão de lenha” que era comido com a mão. Agora, só misto-quente e milk-shake, “só tapeação”.
Por fim, outro tema que aparece é a comida de sustança na letra de “Mocotó com pimenta”, de Almir Guineto. É verdade que feijoada também se enquadra nessa categoria, mas como o “feijão” aparece nas situações narradas pelas músicas, não se dá destaque aos seus efeitos no corpo de quem consome. É nesse sentido que o samba de Almir Guineto merece destaque. Nesse samba, a comida não está situada em um ambiente ou mediando relações. Almir Guineto alerta para os efeitos de comer mocotó com pimenta, que além de fazer suar, “dá moleza no corpo e faz deitar”. Dá lombeira, como se diz. E pode representar perigo para quem está “muito fraco”, pois não é aconselhável comer a iguaria. Para provar do mocotó, alerta Guineto, tem que estar preparado: “Quem não tava preparado pra comer do mocotó, comeu muito, encheu a pança e fechou o paletó”. Ou seja, morreu.
Muitas expressões artísticas, da música ao cinema, criam representações sobre comida e o ato de comer. O ato de se alimentar é universal. Afinal, “não há nada no mundo que se mantenha vivo, sem comer”, como citou Vilson Caetano de Sousa Júnior em seu artigo Comida de santo e comida de branco (2014, p. 128). Os significados atribuídos aos alimentos, o preparo e como se come, é o que expressa a cultura de comer, que circunscreve contextos culturais. A partir de uma lista de samba, mostrei como as letras mobilizam imaginários sociais sobre comida e sobre o comer, definem espaços por gênero, referenciam personagens, formas de sociabilidade e de alimentos que sustentam. Se essas letras falam histórias reais ou não, isso parece pouco importar. Elas ganham sentido porque, dentro da cultura expressiva do samba, esses causos tratam de experiências próximas e que estão sempre em devir. Esses sambas nos lembram que em uma refeição há mais cultura do que nutrientes.
REFERÊNCIAS
SIMAS, Luiz Antonio. O samba é um desconforto potente. In: ______. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. p. 113-115.
CARVALHO, Marcos J. M. de. (2018). Cidades escravistas. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flavio (orgs.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. P. 156-162.
VELLOSO, Mônica. As tias baianas tomam conta do pedaço: Espaço e identidade cultural no Rio de Janeiro. Estudos Históricos, v. 3, n. 6, p. 207-243, 1990.
DE SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano. Comida de santo e comida de branco. Revista pós ciências sociais, v. 11, n. 21, p. 127-142, 2014.
Créditos na imagem: Heitor dos Prazeres, Sarau, óleo sobre tela.
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Rodolfo Teixeira Alves
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