Tive de pensar mais que o comum para “encerrar” o título desta coluna; oscilei entre utopia e ilusão, cheguei a crer que fantasia diria melhor a oleosidade que faz escorregar de nossas mãos qualquer definição formal de lados, de inimizades e alianças que percorrem o tempo de uma existência humana. E este é um dos problemas que tardaram o título em minha mente, a existência humana não tem um tempo, cada vida que se vai é uma vida que se vai, não importa a cronometria de sua duração. Mas os termos fantasia e utopia poderiam mascarar que se trata de dor, aqui: nunca a dor é ilusória, e poucas vezes as razões para a dor têm sido ilusórias agora, na convulsão que as coisas como nos acostumamos a elas sofrem. Não há ilusão, por exemplo, em afirmar que a cor da pele decreta a morte de tantas pessoas mais que outras, ainda em contexto de pandemia e de “democratização” dos males da doença. Assim como o gênero, a classe, o “lugar”.

Optei por ilusão, porque, enfim, esse termo me permite destacar melhor e sucintamente que, apesar de lados, alianças e inimizades serem realidades móveis, há sim uma força e uma firmeza que atravessam os tempos na expressão de solidariedades quando a ordem é a competição; de afirmação dos desejos humanos quando a ordem leva aos poderes instituídos muitos indivíduos que negam, sem pesares, muitas vidas humanas. Há ilusões até revolucionárias, enquanto também as há genocidas. E para quem afirma que a volta à normalidade depende de submetermos nossas alegrias e seguranças ao retorno imediato da plena circulação mercantil, de todas as lojas abertas, da exploração cotidiana que nos mete em conduções lotadas e em lugares de trabalho de que não gostamos muitas vezes – para quem canta esse canto de autodepreciação da humanidade, é preciso gritar, de alguma maneira, que só há política em razão da vida humana, não do “mercado”. Que essa é uma ilusão mais que reacionária, é violenta, que chacina vidas – e não só humanas – no planeta.

A ilusão, talvez, não seja a fonte principal de energia do lado de quem resgata a solidariedade – sem fins senão a afirmação de um desejo, bem humano, que nem precisa ser divinizado – como arma de resistência cotidiana, pois uma arma que funciona não é ilusória. Geralmente não há ilusão porque há a necessidade (e apenas uma parte dessa necessidade é de penúria, pois ela remete sempre a algo maior que sobreviver). Uma pesquisa rápida e se vê que a solidariedade (ações coletivas em bairros, entrega de alimentos e formação de redes comunicativas, e outras tantas atividades) tem mantido de pé quem precisa estar de pé, mais pelo menos do que ações governamentais ou empresariais de caridade publicitária. Então, se há lados, parte da fronteira é visível pelo contraste de sangue que a ilusão de que há um mercado que trabalha para nós causa, pois a continuidade em querer viver sob tal ilusão mata – e a culpa cristã, essencial ao que nos faz seres humanos “desde Adão”, é tudo menos culpa, é a arrogância mais encarnada que atravessa os tempos.

Quando corpos que expressam cores negras se levantam quando o medo se espalha junto ao vírus, não é para vingança, é porque já usamos muito esse instrumento – o medo – como arma de dominação e a resistência sempre foi real; só que talvez o pavor que talvez temos, muito misturado a privilégios, se o fazemos real solidariedade, desfaça a ilusão de que dominamos algo ou alguém na vida. Levantes como esses, que dos Estados Unidos ressoam – diferentemente modulados – em todas as partes do mundo alimentam redes vivas de solidariedade, pois são constituídos de corpos vivos e também ancestrais, reavivados para o combate e a festa. Há alguma ilusão em afirmar e defender que são as diferenças que garantem a comunidade? A essa altura, é declarar guerra à grande parte das populações defender que há alguma solução capitalista para o que rasga a pele do planeta, venha de onde venha tal defesa. Mas a guerra existe há tempos, e é quem as luta mais intensamente que descobre a legitimidade dos muitos meios que faz a liberdade resistir. Muitos meios.

 

 

 


Créditos na imagem: Kurt Schwitters. Merz Picture 32 A. The Cherry Picture. 1921.

 

 

 

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