Autos de Labuta

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Eu era juiz de paz, de uma pequena cidade do interior de Minas Gerais. Toda sexta-feira, no cartório, realizava pelo menos três casórios. Era considerado pelos meus amigos pessoa estável, “na dele” – eles diziam, meio calado mas querido pelos mais próximos. Não casei, embora tivesse realizado muitos casamentos, gostava desse meu ofício no Registo Civil. Era bonito ver o amor das pessoas, sempre contavam com a previsão do tempo e escolhiam os dias mais ensolarados para as celebrações matrimoniais.

Os regimes de comunhão de bens cresciam ainda mais no mês de maio, sucessivamente,  todos os anos, afinal, – mês das noivas – diziam e acreditavam os conterrâneos daquela cidade de Minas Gerais. Eu que sempre realizava por volta de quatro casamentos às sexta-feiras, em maio eram pelo menos seis.

Como disse, achava bonito tudo aquilo. Os noivos sempre apareciam trajando ternos e devidamente perfumados e as noivas enroupadas em vestidos longos, com suas unhas pintadas para assinarem o livro de pactos e trocarem as alianças. Me comovia marcar aqueles momentos através de fotografias que me pediam para registrar. Chegava a me emocionar, mas não ao ponto de querer casar também, casamentos me remetiam a divórcios.

O que eu estou prestes a contar e que mudou os rumos de meu ofício, aconteceu em uma sexta-feira, em outubro do ano de 2014. Eu nunca vou me esquecer e arrepio só de lembrar. Como de costume, já me encontrava emocionado com o segundo casamento daquela tarde e aguardei pelo próximo. Théo e Levi entraram pela sala, os noivos com seus ternos e devidamente perfumados, chegaram orgulhosos e visivelmente felizes. Logo após, chegaram as madrinhas e padrinhos, todos bem arrumados e animados com aquele dia. A celebração ocorreu, os apaixonados trocaram as alianças e como sempre, me emocionei com as fotos que me pediam para tirar no final.

Após os cumprimentos, os recém-casados saíram pela porta principal do cartório, provavelmente pensavam na lua de mel, só que os planos mudaram naquele minuto. O que esperavam por eles lá fora, ninguém ali imaginava. Um tiro na testa de cada um. Abraçados caíram juntos, deslizaram no sangue. Toda gente presente correu para socorrê-los, mas não deu tempo, o amor morto estava começando a feder na rua.

Aquele foi o dia mais marcante de toda minha vida. Théo e Levi registram seu pacto nupcial sob o regime de Comunhão Universal de Bens na sexta-feira, daquele ano de 2014. Na segunda-feira, da próxima semana, foram registrados seus respectivos óbitos. Livro C-10, fl. 239 e verso, sob os termos 2.345 / 2.346. Os autos correm até os dias de hoje. In memorian.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Alice Silveira da Silva

Graduanda do curso de Letras - Língua Portuguesa da Universidade Federal de Ouro Preto.

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