Na ocasião da exposição das fotografias de Diane Arbus intitulada Revelations, exibida em 2004 no Museu de Arte Moderna de São Francisco, Judith Butler escreveu um pequeno artigo para a revista Artforum com considerações interessantes a respeito da obra da fotógrafa que, em certa medida, dialogam com as considerações feitas por Susan Sontag em seus ensaios sobre fotografia de 1977. Butler inicia sua reflexão contando que quando convidou alguns amigos para visitar a exposição, quase todos rejeitaram, pois tinham uma aversão de caráter político pelas fotos consideradas “objetivantes”. Para seus amigos, as imagens eram “deprimentes” e o olhar fotográfico de Arbus era tido como fascinado por distorções humanas, no pior dos sentidos, pois se divertia ao “espetacularizar” o que pode parecer aberrante, espiando os corpos e os invadindo. Ainda que essas críticas tivessem um fundo de verdade, Butler considerou que tais imagens não se limitavam ao mero retrato do grotesco, e que suas potências muitas vezes eram desconsideradas quando o espectador era levado por uma moralização cega.
Butler percebeu que a proibição contra a qual Arbus operou em seu tempo – as normas burguesas que fazem com que apenas certas imagens, ou superfícies, como diz Butler, apareçam – continua a operar de outra maneira. Há em Arbus – e no desconforto que seu trabalho causa – uma ambiguidade constante: um convite para ver o que não se deve ver. O início do século XXI segue muito semelhante aos anos 1950 e 1960 em certo sentido, quando Arbus criou a maioria de suas imagens, pois a proibição ainda opera em suas exibições. A potência dessas imagens, para Butler, se dá não necessariamente porque a foto é grotesca, mas porque a pessoa retratada não parece se envergonhar de sua enormidade, deformidade ou de sua plasticidade. Pelo contrário: posa orgulhosamente, se põe radiante em frente à câmera. Diante dessas imagens de corpos orgulhosamente grotescos, testemunhamos o traço visual de sua solicitação, e essa solicitação funciona também em nós espectadores: o que Arbus teria dito àquela pessoa? Como se relacionaram? Como foi montado o olhar, a postura, o prazer e a dor?
Sontag cita Arbus: “Sempre pensei em fotografia como uma maldade — e esse era um de seus pontos prediletos, para mim (…) e quando fotografei pela primeira vez, me senti muito perversa.” Sontag percebeu na fala de Arbus esse traço do fotógrafo profissional que pode ser tido como “maldoso”, principalmente se o fotógrafo visa criar imagens cuja temática envolva tabus, o vulgar, o marginal, etc. Mas a autora questiona: o que é esse aspecto cruel de tirar fotos? Para a autora, fotografar pessoas implica uma violação. O fotógrafo as vê como elas nunca se veem ou se viram antes, pois tem delas uma noção externa que elas jamais conseguem ter. O fotógrafo transforma as pessoas em objetos passíveis de serem possuídos a nível simbólico. Nesse sentido, a câmera seria uma sublimação da arma de fogo, e o ato de fotografar alguém é um assassinato sublimado — um assassinato supostamente amenizado, adequado aos diferentes tempos.
Em 1972, conta Sontag, a obra de Diane Arbus exibida no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque atraiu multidões. 112 fotos tiradas por uma só pessoa, e todas semelhantes, exibiam pessoas feias vivendo seus cotidianos e seus afazeres humanos em espaços desoladores. Pessoas que posaram e olharam com segurança para a câmera e para o espectador. Diferente de muitas obras de fotógrafos que adotam um tom mais humanista, a obra de Arbus não tem a intenção de fazer com que os espectadores criem uma relação de identificação com as pessoas miseráveis que ela fotografou, pois a humanidade não é homogênea.
Por isso que para Sontag a potência da obra de Arbus se dá justamente na contramão do que fizeram muitos outros artistas e fotógrafos. Ao se dedicar a uma das mais corriqueiras empreitadas da arte fotográfica — retratar vítimas, marginalizados —, Arbus não acionou o elemento da compaixão que geralmente acompanha tais projetos. Talvez por essa razão suas fotos receberam elogios em função de sua franqueza e por uma empatia não romantizada – e hipócrita – com as pessoas retratadas. Sua agressividade contra o público se dá justamente ao criar um sentimento de que aquilo que o espectador é convidado a ver é de fato outro, diferente de si em muitos aspectos. A cidade Nova Iorque, cenário da maioria das fotografias de Arbus, fornece um extenso material para fotografar o estranho, o outro, o diferente, como é corriqueiro em grandes metrópoles, ou megalópoles. Numa cidade grande, a câmera consegue capturar as mais ordinárias das pessoas normais de maneira que pareçam anormais.
Sotag cita Arbus mais uma vez: “Você vê uma pessoa na rua e, essencialmente, o que percebe nelas é o defeito.” A temática imutável da obra de Arbus revela sua sensibilidade que, armada de uma câmera, conseguia sugerir angústia, perversão e doença mental em qualquer pessoa, de forma que todas acabavam parecendo um tanto excêntricas. Eis o grande mérito da fotógrafa: o contraste entre o material de seu tema cruel e sua atenção cuidadosa. Atenção sensível que acaba por criar um teatro moral que não “espiona” gente bizarra e as pega desprevenidas, pelo contrário. Arbus teve de se aproximar de forma a conhecê-las, tornar-se familiar e deixa-las confortáveis para posarem tranquilas. É aí que reside a grande curiosidade dos bastidores das fotos de Arbus e nos faz perguntar se as pessoas se viam daquela maneira, se viam a si mesmas como pessoas desprovidas do que a norma chama de “beleza”.
A maioria das figuras de Arbus ignora sua feiura e sua dor, constata Sontag. Por isso o repertório de horror de Arbus também possui limites: ela não cria imagens de sofredores totalmente conscientes do seu sofrimento imediato, como as vítimas de acidentes, de guerras, de fome e de perseguição política. Arbus não fotografou acidentes ou qualquer tipo de evento violento que fazem sofrer de imediato, mas focou em sofrimentos de “longa duração” da vida privada, desde o nascimento da pessoa retratada. Muitas pessoas que se deparam com essas fotografias são impelidas, de alguma forma, a pensar que tais criaturas ordinárias, minorias de gênero, as deficientes, são infelizes. No entanto, são poucas as imagens no repertório de Arbus que mostram escancaradamente um sofrimento emocional perceptível.
Se Arbus foi acusada de objetificação, diz Butler, talvez seja porque ela opera com e contra a superfície. O fato de suas imagens permanecerem teimosas na superfície pode ser compreendido como uma resistência à captura, uma recusa à invasão. Nesse sentido, existem várias imagens em que as pessoas encaram a câmera de Arbus ainda que com os olhos fechados, como por exemplo Woman on the street with her eyes closed, N.Y.C., 1956, e A very young baby, NYC, 1968, e outras em que a pessoa parece direcionar olhar para além a câmera completamente (é o caso de Blonde girl with shiny lipstick, NYC, 1967). Nessas ocasiões, a câmera parece rejeitada as pessoas apresentam uma superfície obstinada, impenetrável e desconhecida. Já em algumas outras fotos, as pessoas direcionam para a câmera um olhar desconfiado ( Butler cita Seated transvestite with crossed ankles, NYC, 1966; Two girls on the beach, Coney Island, NY, 1958; A flower girl at a wedding, Connecticut, 1964; Boy in a man’s hat, Nova York, 1956), ou tristeza (Woman on the street with parcels, Nova York, 1956) ou ainda medo e desdém (como Puerto Rican woman with a beauty mark, Nova York, 1965; Two ladies walking in Central Park, NYC, 1963). Não se trata de pessoas tidas como “freaks” ou performers, mas são exemplos da obstinação das pessoas ordinárias. O corpo está protegido. O único indício que temos de que pode existir vida interior está nos olhos, triunfantes diante da câmera, testando seu olhar ou ainda evitando o contato.
Essa é a potência que tanto Butler quanto Sontag perceberam nos retratos de Arbus. É uma potência que atravessou a metade do século XX e chega até nós no século XXI como um lembrete que é possível criar imagens que não vitimizam ninguém, que não necessariamente impõem uma narrativa romantizada do sofrimento humano, como é corriqueiro nas narrativas religiosas, mas que, pelo contrário, nos torna cientes de que o sofrimento é humano e não demanda obrigatoriamente um olhar de empatia hipócrita. Esse estranhamento que nos causam as pessoas de Arbus é uma forma de constatar que somos muitos, somos diferentes, sofremos todos e lidamos com isso de maneiras diversas, encarando, evitando, teimando na superfície ao existir, mesmo que contra toda a vontade normalizadora.
REFERÊNCIAS:
BUTLER, Judith. Diane Arbus: surface tension. Art Forum, Nova Iorque, v. 42, n. 6, p. 119-119, fev. 2004.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Editora Companhia das Letras, 2004.
Créditos na imagem: The Cut / Disponível em: https://www.thecut.com/2016/07/diane-arbus-c-v-r.html
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