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Drummonds
Proust Suburbano

Drummonds 

 

Drummond, para mim, vai ser sempre / o poeta de Itabira. / O amigo do Mário. / Drummond, para mim, vai ser sempre / o poeta de Ipanema, / do Edifício Capanema. / Drummond, para mim, vai ser sempre / o poeta do Alcides. / Aquele para quem um dia, ainda garoto, / escrevi um artigo sobre a “Máquina do Mundo”. / Drummond, para mim, vai ser sempre / Claro Enigma. / Do escritório eu o observo. / Drummond que eu amo / e ao mesmo tempo digo para mim: / esquece Drummond, Eduardo. / Drummond não gosta da gente / (e nem precisa, e nem era para gostar). / Não há nenhum Drummond. / Há retratos dele / e como doem nas paredes.

 

1.

Quando Drummond morreu, eu estava muito ocupado com coisas do coração. Lembro-me que ele deu entrada no hospital, dias depois da morte da filha:

– Dr., receite-me uma parada cardíaca fulminante, sim?

Eu estava de coração parado, estacionado numa médica sanitarista. Ela era leitora de Drummond, mas não gostava de Clarice Lispector.

Nunca acoplei leituras a meus amores. Nunca cobrei, nem quis que lessem ou preferissem os meus autores.

Drummond morreu. Separei-me da médica. Vivi outros namoros com a medicina, com a química, com a argila modelada de outro artífice.

A médica especializou-se em psicanálise, largando a saúde pública. Ironia das ironias: bem provável ter tratado de muito resquício clariceano em consultório particular psicológico. A médica não-leitora de Lispector teve que lidar com Joanas, Macabéas e outras galinhas em pânico.

Passo muitas horas, em roda, à procura de livros de Drummond em sebos. Encontrei (e comprei), outro dia, um exemplar de edição novíssima (?) do Claro Enigma.

O divertido dessas compras não reside apenas no barato do preço dos livros, nem somente da procura, dos achados, dos acasos. O divertido é quando, no exemplar descartado, vendável, recuperado por quem o compra, há uma dedicatória de um anônimo assinado.

No Claro Enigma que comprei outro dia, há uma dessas dedicatórias. Palavras dedicadas, leitura oferecida, empenhada. Data-se de 2003, dia dos namorados.

Antes de ler a tal dedicatória aqui, digo que a passagem parece preceito predicável que se adapta às circunstâncias do tempo e da história: daqui três dias será dia dos namorados, seis anos passados da datação da dedicatória no livro-alfarrábio. Antes de ler a dedicatória, digo: a edição do livro foi organizada e prefaciada por Ítalo Moriconi. Não conheço este Sr., a não ser de nome. Uma vez, cruzei (quase esbarrei) corpo com ele (sem cruzamentos explícitos, sexuais, longe disso) numa universidade brasileira. Sei que perguntou a uma pessoa conhecida minha:

– Quem é aquele gringo?

E a pessoa:

– Não é gringo, não. É o Eduardo Sinkevisque.

Há um bico-de-pena que desenha Drummond na portada do livro. É uma ilustração de guarda, uma autocaricatura. Belíssimo desenho de anotação. Belíssima auto-ironia.

Na capa, uma fotografia em preto-e-branco de Drummond menos velho. Um retrato não de menino antigo, mas de homem moço, atrás dos óculos, mas sem bigodes. Boitempos, bons tempos.

O prefácio moriconense do meu (agora) exemplar está repleto de circunferências em certas palavras, repleto de exclamações e interrogações marginais  a lápis, que omito aqui por brevidade.

A dedicatória dedicada não poderia ser mais drummondiana. Mesmo em letra feminina muito redonda e caprichada, tem algo de gauche, tem algo que escapa, tem algo negado, algo recusado, tem algo invertido; afinal, o exemplar não durou muito tempo nas mãos namoradas.

Transcrevo aqui a tal, não para me fazer de tal, nem para fazer digressão besta, mas como prova de que de tudo fica um pouco. Transcrevo como se eu desse voz à pessoa dedicadora:

– “Tchelo, espero que tenha gostado do presente. A maior sabedoria de um casal é um saber compreender o outro e acho que aos poucos a gente está aprendendo a se entender, feliz dia dos namorados, Aline 12/06/03”.

Sobre Drummond poderia discorrer. Não discorro. Lição de coisas com as quais me calo.

A dedicatória estava em “versos”, mimetizando forma editada. Digo tão somente que eles (os namorados) deviam brigar bastante, uma vez que na tese está a antítese. O presente não devia ser bom, não devia estar bom àquela época. Se estavam aprendendo a se entender, é porque se desentendiam muito. O amor para eles devia ser: Carlos, um dia beija, outro não.

Tão claras as palavras dedicadas, tão claras quanto o enigma do livro. Terceiro Drummond nem piadista, nem marxista. Terceiro Drummond de mãos pensas em estrada pedregosa, não Drummond de “uma pedra no caminho”, nem da Rosa do Povo.

O namorado não deve ter lido o Claro Enigma. Se Tchelo leu, foi por isso que se separou de Aline. O livro não deveria ter sido dado no dia dos namorados. Aline e Tchelo eram pedras nos sapatos um do outro, para usar linguagem que eles, suponho, entendam.

Terceiro Drummond em minhas mãos. Primeiro dela, depois dele, depois meu, definitivamente. Aline e o livro foram recusados no amor que encruou.  Eu e a médica não encruamos, sucumbimos. Drummond está morto. Que mistérios tem Clarice?

 

2.

O homem que passa rastelo / na areia da praia / me aborda: / sr., o sr. conhece dólar? / Respondo afirmativamente. / Se lhe mostrar uma nota, / o sr. diz ser ou não ser? / Digo que sou e não sou. / Se me mostrasse um Drummond, / talvez falasse de que fase é. / Se for Drummond anos 80, / talvez seja erótico. / O dólar é furado. / Segundo o homem, tem inscrições / japonesas. / Drummond era Cruzados Novos. / Não tem valor de troca.

 

Preciso reformular uma história que envolve Drummond. Não ele propriamente. Leitura dele, leitora dele.

A médica sanitarista de Drummond, dos sebos, dedicatórias, da outra história, não virou psicanalista. Virou ginecologista. Outros plantões, sangramentos, ocasiões.

Aquele amor de certo sucumbiu no sentido de ter perdido as forças, se entregado, evaporado, voado, volátil que era.

Não foi assim se passaram 10 anos. Foram 26 anos.

Um dia, a médica enviou uma carta eletrônica ao leitor de Drummond, um e-mail, o outrora estacionado em seu coração. A carta pedia que ele a enviasse seu número de telefone, ao que ele respondeu:

– Que surpresa! Beleza!

E forneceu os dígitos.

Antes que o telefonema se desse, uma sorte de todo tipo de vai e vem, sobe e desce, derrapa e taquicardeia se acumulou nele, até que se perguntasse:

– Ela não pensou, e se sou cardiopata? Ou ao ver seu nome na carta, peço um enfarte como Drummond ao dar entrada no hospital dias depois da morte da filha?

Ela disse a ele que cardiopatas não morrem com cartas, nem com telefonemas.

Hoje, ela diz ler Clarice. Ter a clara noção do quanto eram crianças há quase trinta anos. Estão em cartas, em telefonemas, nos signos que os namoram por eles quando nas ausências. São presenças. Poema. Sexo explícito de beijo na boca. São as bocas.

Ela diz a ele:

– Me deixas louca.

Ele a ela:

– Seja minha eterna namorada.

Anos 80, anos 50, Bossa nova. Quando ele chega onde mora, já arruma as malas para voltar para ela. Ele é dela Ulisses, a viagem. À espera dele, ela é Penélope. Ele é o tapete de voar para ela. E lâmpada, e Aladim. O verde de olhar para ela, não o verde dos olhos dela.

O Drummond da biblioteca deles nunca foi vendido. Dois leitores, cujo projeto foi ler juntos até o infinito. Foi ser deles mesmos essa lua, esse conhaque, esse sentimento do mundo grande desse jeito até que se separaram de novo, definitivamente.

 

3.

Queria um poema doce. / Um pão doce, / uma broa, uma cuca / de goiabada. / Queria a panela de barro / toda suja de doce de leite / e o sorriso pós-coito, pós-gozo. / Tenho nas mãos apenas / os dedos / lambidos / depois de mostrá-los cheios de ódio. / Queria o cântico dos cânticos, / poema manso, não desespero. / A maçã, o pepino e a pera. / Apenas restos da feira. /Os olhos sujos / no relógio da torre. / Queria não ter mais que citar / Drummond, / nem o sentir. / Queria ser a pedra do isqueiro. / O amor prescindido.

Quando Drummond morreu novamente, o leitor de Drummond, Tchelo, Aline, e a médica sanitarista não estavam lá. Quando ele morreu de novo e é assim toda vez que se referem à morte dele, ele morre novamente. A médica não estava quando ontem aconteceu de novo.

Após a filha morrer de câncer e ele enfartar, a médica não estava lá. O leitor de Drummond estava sozinho, sem filho, nem neto, nem cão. Estava sozinho sem namorada, sem esposa, sem mão na mão.

Quando ontem morreu de novo Drummond, eu estava a assistir ao documentário O Poeta de 7 Faces. Era eu a assistir? Que coisa é assistir? Haverá mesmo o assistir ao?

Foi no verão de 1981 que comprei meu primeiro livro de poemas de Drummond. Tinha saído da praia de Ipanema, tomado banho e hidratado a pele. Tinha almoçado em família. Passeava quando me vi na frente de uma livraria. À mostra, em destaque, estava a Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade, da José Olympio.

Essa vivência está grafada em mim como uma cidade natal. É hoje uma memória. É uma experiência como um quadro na parede. E como dói.

 

 

 


Créditos na imagem: Da capa (e contracapa) das páginas do diário de Drummond, “Uma Forma de Saudade”, editado em 2017 pela Companhia das Letras.

 

 

 

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