Para sair do transe

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O bem-te-vi que canta aqui não canta como o de lá. Isso é poeta romântico, eu sei. Quando estive lá o bem-te-vi de lá não cantava como o de cá. Muito menos como os bem-te-vis de Peruíbe. Esses não contam nessa parelha aqui, neste paragon que não é uma comparação propriamente.

No Anhangabaú, nos buracos do Ademar, do Jânio, da Erundina e às imediações da ponte da Santa Ifigênia, eu estava em casa já. Em Santana, nem se fale. Na sala de estar.

Quando abri a porta de casa, entraram comigo Tatiana e Henrique (e seus alunos), Bia, Cris Brasil, Kléber Mendonça Filho, seu filme Retratos Fantasmas, Daniele, Glória e Rebeca. Vieram Ana Lúcia Oliveira (e seus alunos), Ana Chiara (seus netos) e a frase mais espetacular: cala a boca!

Dita assim, parece grosseria, autoritarismo. Não é não. Foi o modo divertido de Neu dizer: ih, nem me fala. Ou, nem me diga, estou sofrendo com isso. Cala a boca. Não toque no assunto.

Entrou o sorriso largo e auditivo de Ana Chiara de quando eu contei a ela a frase da Neu. Perdeu? Perdeu, cala a boca!

Entraram também cheiros, cores do CCBB, do Museu do Pontal. Azul de mar. Azul de céu. Azul de Biblioteca Nacional. E a promessa de voltar o mais rápido possível.

Sobre o mais recente longa metragem de Mendonça, entraram as poucas anotações que fiz na sala de projeção ainda. E a vontade de assistir ao filme em minha cama em modo Dorival Caymmi, em frente ao ventilador.

Era para ser sobre as anotações este texto. Sobre a crítica às igrejas evangélicas, aos estacionamentos e aos shoppings. Outras notações extrapolam, como o café com Leonardo Bruno, a estratégia para chegar ao Santos Dummond em tempo.

Quando estava para chegar na Rua Júlio Otoni do café Capitu, tive o estalo: posso redirecionar o aplicativo para o aeroporto? Assim, não preciso pedir depois outro carro.

O motorista topou. Era eu pegar mochila e bolsa, descer e subir a escadaria do Henrique. Esquecer a rede, a nécessaire, meu casaco vermelho e deixar minhas saudades. Com isso ganhar tempo. Com isso chegar a tempo. Foi feito. Deu certo. Cheguei no laço. Cheguei vertendo água. Cheguei molhado.

Em Congonhas estava seco. Trazendo sobre o filme a vontade de assisti-lo de novo, trazendo poucos, mas significativos, sobrescritos. Da trilha sonora Happy End, com Tom Zé, É de Amargar, com e de Capiba.

Ao pé do ouvido, num saguão de cinema uma personagem de Mendonça diz: “os filmes de ficção são os melhores documentários”.

Este foi o gatilho para que sacasse o celular na sala do Cine Santa Teresa e anotasse que Retratos Fantasmas é um filme belíssimo. Feito de melancolia e beleza; memória e destruição. Inicia como o particular, o singular das casas e moradores que não existem mais e em suas relações com a cidade. Extrapola para a cidade. Chega a sítios arruinados, tendo partido de casas arruinadas, de histórias arruinadas.

Entrei no sobrado onde moro em Santana ainda comovido e atualizando a comoção do dia anterior de quando assisti aos Retratos Fantasmas para, como diz Mendonça, “sair do transe”.

Entraram comigo as salas de projeção do Recife, mas os cinemas do centro de São Paulo também. Os Marabás e Cines Ipirangas da vida. A sofisticação, agora arqueológica de Mendonça, de anos 40/50 e o declínio dos 60/70, à derrocada com os estacionamentos e igrejas.

A convivência dos fantasmas, dos letreiros, dos edifícios, nas e com as camadas do tempo, os deslocamentos de lugar do dinheiro. E Kléber Mendonça Filho ator e narrador de seu filme, investigador reflexivo. Homem político.

A cena final no UBER e a trilha sonora, coisa que invariavelmente me comove, são de uma agudeza daquelas que doem mais que a verdade.  Doem de beleza, de prazer de felicidade. O cinema, um abraço justo de quase duas horas, ouvi um pouco de música.

Sim, eu revisitei o passado, estive no presente e quando entrei em casa, projetando futuro, veio tudo junto. Veio o abraço inicial (e de despedida) em Leonardo Bruno com o desejo de continuidade. Abraço de quem se protege da (e na) chuva.

Os bem-te-vis daqui salvam os bem-te-vis de lá.

Entre cá é lá, passeios no Capibaribe. Febre do Rato, Aquarius, Som ao Redor, Bacurau. E o cangaço lírico a guardar em mim a peixeira do afeto. Meu amor mais arquivista.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: Sala de cinema da Cinesystem Morumbi Town, eleita a mais mais confortável.  Adriano Vizoni/Folhapress, 2023.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Eduardo Sinkevisque

Eduardo Sinkevisque é doutor em Letras: Literatura Brasileira (FFLCH/USP). É sócio-fundador da Sociedade Brasileira de Retórica. Publicou o e-book Mar dos Dias (Árvore Digital, 2018). Publicou o livro Tratado Político (1715) de Sebastião da Rocha Pita - Estudo Introdutório, transcrição, índices, notas e estabelecimento do texto por Eduardo Sinkevisque (EDUSP, 2014). Foi pesquisador Residente na Fundação Biblioteca Nacional, cuja pesquisa foi em diários. Eduardo publica textos em seu blog, o blogmenos (www.blogmenos.tumblr.com) e colabora em várias revistas acadêmicas e literárias. Trabalha em consultoria de texto e de pesquisa na área de Humanas. Para contactá-lo: instagram @dudasinke e email esinkevisque@hotmail.com.

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