Entrevistei Elizabeth Dorazio[1] por vídeo conferência no final do ano passado. Elizabeth Dorazio é uma artista brasileira, natural de Minas Gerais, com aproximadamente 30 anos de carreira. Estudou na Escola Guignard, homônima a seu idealizador, fundador e principal mestre, Alberto da Veiga Guignard. Essa instituição é uma escola de artes sediada em Belo Horizonte. Formou artistas importantes no circuito mineiro, nacional e internacional. Depois da promulgação da Constituição do Estado de Minas Gerais, em 1989, passou a ser uma unidade acadêmica da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).
Elizabeth Dorazio foi aluna da principal discípula de Guignard, Solange Santos Botelho que nasceu em Além Paraíba MG (1924). Solange Santos Botelho foi desenhista, pintora e professora. Estudou, de 1945 a 1948, desenho e pintura com Guignard e Edith Behring, que era assistente de Guignard. Em 1965, a professora Solange Santos Botelho foi nomeada professora catedrática de desenho da Escola, lecionando desenho de modelo vivo até 1993.
Segue a entrevista.
ES: Qual sua mais remota memória de sua relação com materiais de desenho, pintura etc.?
ED: É uma memória muito primitiva, muito longeva mesmo. Fui envenenada quando bebê. Sou mineira, você sabe. Tinha muitas fragilidades de saúde, desde criança tive dificuldades de compreender a escola. O desenho foi uma maneira de eu me expressar, ao invés de falar, coisa que aliás eu demorei a fazer. Tinha preguiça para falar (risos). Eu sinto que sempre desenhei. Então, eu desenhava como forma de fala. Sou “terapizada”, fiz psicanálise. Hoje isso tudo está resolvido em mim, isso está pacificado. Minha mãe sempre me chamou de desenhista, desde que eu era criança.
ES: Quando, ou com que idade, você pensou que poderia (ou deveria) se dedicar às artes (plásticas, visuais …)?
ED: Foi um processo natural. Fui para a Escola de Arte com 17/18 anos, vinte e poucos, acho. É, com 20 e poucos anos. Na Escola Guignard defini minha profissão. Aliás, na Escola Guignard se premiava o melhor desenho. Isso era um estímulo. Aliás, a escola de desenho de Guignard é minha filiação artística, meu lugar de origem em termos de arte.
ES: Quais seus artistas e/ou suas artistas de admiração mais remotos em termos de sua vivência e idade? Ou seja, desde o início de sua atividade artística até hoje?
ED: Ah, os grandes, Leonardo da Vinci (pelo desenho), Michelangelo (também pelo desenho), os do Renascimento, mas também Rembrant, pelo desenho; Gauguin (e Tarcila), Matisse, pela pintura.
ES: Como foram seus primeiros aprendizados em arte? Pergunto mesmo quando começou a “pôr a mão na massa”?
ED: Foi no dia-a-dia, full time.
ES: Dedica quantas horas por dia em seu trabalho em arte? Todo dia?
ED: Dedico todas as horas do dia. Sou obsessiva. Não é apenas um trabalho para mim. É a minha vida. Sou observadora. Uso da observação, mas ao mesmo tempo sou distraída. Tenho fascínio por instabilidades. Eu tento entender como as coisas funcionam. Isso me deixa intrigada. Aprendi na Escola Guignard uma certa rigidez, porque a gente não podia usar borracha, então o resultado era também, putz grila (sic), o fazer, uma ação, a gente tinha que incorporar o suposto “erro”, o acaso.
ES: Ouve música trabalhando? Ou prefere o silêncio?
ED: Ah, tenho fases, épocas em que ouço muito. Ultimamente não tenho ouvido música ao trabalhar. Mas quando ouço geralmente são coisas como Chopin, canto lírico, música popular brasileira.
ES: Como é sua relação com o silêncio?
ED: Ah, varia, é inconstante. Como disse há momentos que prefiro o silêncio e momentos em que não.
ES: Conversa com seus trabalhos durante o processo?
ED: Nossa, não tinha pensado nisso, mas agora você perguntando: sim! Converso, dialogo, mas desse meu jeito de me expressar quase sem palavras, mas por meio de sentenças que são pinturas. (Nesse momento Elizabeth Dorazio ficou pensativa, seu olhar vagou, parece ter ido longe e voltado. Deu pra inferir uma centelha de surpresa, de descoberta). Pô (sic), sento em frente do trabalho e ele diz coisas.
ES: Pode esmiuçar essa ideia de “reverência à Natureza” que parece dar sentido a seu ato criativo? O aleatório pode estar na Natureza e no olhar sobre a Natureza? Neste sentido, qual o lugar do olhar para seu trabalho? Filtro? Peneira? Inclusão? Em que medida a observação como método de trabalho é significativa (ou importante) para você?
ED: Sim, é importante. Acho que essa coisa da reverência à Natureza me vem de referências à pintura da Idade Média e começo do Renascimento. A Natureza me emociona por sua grandeza. Acho que a reverência que faço se dá na proporção das representações da Natureza. Eu se não fosse artista, seria bióloga marinha, ou gostaria de mexer com plantas. O olhar para a Natureza, acho o olhar importante. Tem uma coisa do micro ampliado. Do meu interesse pelo macro no micro, essas dimensões, como visão cósmica. É um olhar para trás também. Eu sempre fui apaixonada por papéis artesanais, por materiais artesanais. Tem a ver sim com peneira, filtro. Eu seleciono, filtro dentro de parâmetros estéticos muito particulares, pessoais, subjetivos mesmo. Mas, há rigor em meu trabalho, porque me preocupo com o acabamento, penso em como a obra sobreviverá. Imagino, sinto, desejo que a obra seja mais duradoura que eu mesma. Reverencio a Natureza porque para mim ela é sagrada. Eu tento formular um entendimento sobre a Natureza, o Mundo, o Cosmo. Faço um banco de imagens recortando papéis, folhas, entre muitos outros matérias artesanais etc. Sempre de modo livre, associativo, como se fosse imagem gera imagem, me leva à outra imagem e a outra, outra … A livre-associação gera um efeito borboleta, convida o olhar a voar, a viajar sobre as peças artísticas, os objetos compostos. Assim, recorto, desenhando, colando, compondo. A ideia, penso, é diminuir, na representação do humano frente ao Universo, o Cosmo, a Natureza, o humano, a posição do ser humano no Mundo.
ES: Para você o que a música da Natureza diz? O que diz a você, se é que diz, se é que você acha haver música na Natureza ou produzida por Ela?
ED: Diz da relação da imensidão com a pequenez humana. Do infinito no finito. Sons da própria natureza e dos causos contados da e na roça.
ES: Você poderia lembrar para a gente alguns dos povos antigos que registraram (desenharam, grafaram) imagens visuais em suportes de madeira? Digo de alguns que têm a ver com sua poética. Como se deu esse conhecimento para você?
ED: Quando criança tive contato com aquela coleção de livros, “Os Gênios da Pintura”. Penso que vem de lá o conhecimento que adquiri. E também aquelas imagens de carrancas sempre me impressionaram. Não é uma coisa inconsciente. Tem também “O Elo Perdido”, “João e o pé-de-feijão”, uma coisa lúdica.
ES: Você pensa que seu trabalho tem relação com o trabalho de Frans Krajcbrg? Se sim, em que medida? Se não por quê?
ED: Eu admiro ele, o trabalho dele, mas somos diferentes e temos trabalhos e propostas diferentes, embora haja semelhança com relação ao material usado. A nova vida à árvore, que tem muito em espaços urbanos, nas cidades, muita raiz, assim como árvores escultóricas.
ES: Como você pensa a inserção de imagens em suas obras? Como funciona (ou não funciona, pois não é para funcionar que você as dispõem, as compõem? De onde pensa vir esta sua atitude, este seu gesto criativo? Isso é forte em I went on a trip, não acha? E em suas maquetes de modo em geral, não? Mas, não apenas nessas obras, não é?
ED: Como figuras de um cenário, de instalação. Pelo trabalho com as escalas, na construção de certa narrativa que componho, das minhas composições. Isso começou como fantasia. Acho que tem a ver com o cinema de Hitchcock, na posição que ele se coloca em muitos de seus filmes, como aparição, surpresa, seja passando apenas em cena ou estando num frame rápido. Talvez seja nesse sentido que em escala menor haja figurações de humanos, a minha inclusive, inserida na obra, mas em posição de quem é menor do que a Natureza, de quem a reverencia. Mas, acho que há motivações que colho de elementos que, no meu desenho com tesoura, ficam fantásticos, fica fantasioso em termos de Realismo Mágico. Pode ser que livros como o Elo Perdido (O mundo Perdido), Alice no País das Maravilhas, etc. tenham eco no meu fazer artístico.
ES: Sobre Escada de Jacó/Babel, o fato disso não ter agradado o Deus dos católicos (no limite de cristãos), ou seja do Monoteísmo cristão. Sua leitura disso não é sacra, nem religiosa, nem mística, até porque seu trabalho tem um aspecto fortemente polifônico e politeísta, se a gente quiser interpretar assim. Tem Deus em suas obras, mediando-as? Como é sua relação com o Divino?
ED: Polifônico sim, politeista também. Não faço arte com relação à mística, nem à religião. Minha arte é polifônica , porque tem relação com a música, muita vez. Exemplo: “Xilofone”. Desato a misturar coro de vozes no que faço. Deus para mim é a Natureza.
ES: Em suas obras há alguma relação e / ou tensão com o chamado Tradicional, o chamado Primitivo ou Tecnológico?
ED: Nada tecnológico. Totalmente analógico, manual, artesanal. Às vezes, quase anacrônico. Não há tensão. Quase tradicional, uma escolha.
ES: Com relação à sua poética como também sendo de um certo tipo de figuração do Caos, você pensa em criação de Universo por meio desse Caos ou de Universos, recriação? Reorganização? Esse aspecto de Caos me parece fundamental em suas obras, em sua poética, chave mesmo em seu fazer artístico, sua prática. Você diria que descontrói a paisagem? Quais artistas de paisagem te interessaram e/ou ainda interessam do ponto de vista de um diálogo entre eles e você?
ED: Não tem nada de desconstruir ou destruir, mas o movimento inverso, reconstruir, recuperar, aproveitar sem desperdício, ao máximo! Sou gregária, tento harmonizar, ajuntar o que estava separado, reviver o que estava desenganado. Para mim, a paisagem é uma forma simplificada de paisagem, tem aspecto recortado feita por meio de imagens justaposta com inspiração em Gauguin ou tendo ele como referência. A paisagem em minha poética é anti-paisagem. Não tem hierarquia entre figura/fundo.
ES: Em sua poética há lugar de e para Memória, não há? Do Permanente? Talvez do imanente, do subjacente. Que acha? Lugar do subjetivo, da subjetividade certamente há. Suas obras me parecem mostrar um certo estado de coisas, um registro de matérias, sensações, visões e relações de coisas em trânsito, não? Em movimento? Movimento que começa na recolha, no armazenamento de imagens que você com seu gesto, sua sensibilidade e visão acurada e técnica compõem.
ED: Memória de quando eu crescia; muito próximo da natureza, e aprendi a observar os diferentes tons dos verdes, das formas onduladas do relevo, das nuvens, os sons da natureza, os tipos de árvores, de pássaros, a pinta na pele de um animal, as minhocas e o cheiro da chuva. E a noite, observar o céu gigante, estrelado ou escutar os “causos” fantasiosos, do povo da roça. Acho que tem influência na minha forma de ver as coisas do mundo natural sim.
ES: Em média quanto tempo você necessita para execução de suas obras?
ED: Tento um equilíbrio entre o desejado e possível. Entre 3 e 5 meses para realizar os trabalhos grandes, de escalas maiores, de proporções quase gigantesca. Alguns trabalhos eu preciso de menos tempo. Em até um dia às vezes.
ES: Faltou algo a perguntar? Algo que você gostaria de incluir para finalizar esta entrevista?
ED: Ah sim. É sobre a minha postura. Acho que o ser humano tem uma variedade de prismas para ver e lidar com o mundo. Eu sempre tendo utilizar o meu lado mais saudável!
Fim da entrevista.
NOTAS:
[1] ES: Eduardo Sinkevisque. ED: Elizabeth Dorazio. Para mais informações e amostra de obras de Elizabeth Doraszio, cf. https://elizabethdorazio.com/ O leitor pode também navegar pelo Youtube que encontrará vídeos sobre exposições e obras de Elizabeth Dorazio.
Créditos na imagem: Reprodução: Foto da artista Elizabeth Dorazio, representada pela Dan Galeria Contemporânea, no Museu do Louvre de Abu Dhabi, 2023.
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Eduardo Sinkevisque
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