Ensino de história e produção audiovisual na quarentena

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Tem sido um grande desafio para os professores de forma geral realizar as atividades de ensino-aprendizagem durante o presente contexto de isolamento social. Inevitavelmente, as dificuldades aumentam de maneira exponencial quando as condições de trabalho do professor em questão são radicalmente precarizadas. Atualmente tenho lecionado na rede pública do Estado de Minas Gerais, após o término do meu contrato de professor substituto de Teoria e Metodologia da História na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM – Diamantina), instituição na qual lecionei por cerca de dois anos. Apesar de ter sido aprovado no último concurso da rede pública estadual dentro das vagas disponíveis para a cidade de Itabirito – MG, sendo neste momento o primeiro da lista, não fui nomeado para o cargo de professor de História e atualmente estou trabalhando com contrato temporário. A despeito da frustração em relação à situação da educação no país, tive a oportunidade de nas primeiras três semanas de aula usufruir de uma excelente interação com xs alunxs do ensino fundamental e médio, professores, supervisores, direção e auxiliares de serviços gerais da Escola Estadual Henrique Michel. Uma escola pequena, situada em uma região periférica da cidade, que desfruta de uma ótima reputação em meio a professores, alunxs e moradores da cidade.

Com a quarentena e o fim das aulas presenciais, o governo do Estado estabeleceu, sem a realização de um diálogo prévio com o público escolar, o teletrabalho docente, que para além da exigência de uma burocracia estéril, requer o acompanhamento dxs alunxs na realização do Plano de Estudo Tutorado (PET). Tenho acompanhado alunxs do 8º ano do ensino fundamental e do 1º e 2º anos do ensino médio na realização do PET. Até então, tive a oportunidade de acompanhar os PETs de número I, II e III de História das séries que mencionei. Infelizmente, o material é lamentável. Não falo nenhuma novidade, uma vez que sua precariedade já foi denunciada por professores da rede pública e divulgada em canal aberto de televisão. De toda forma, listo aqui alguns problemas recorrentes: 1) presença abundante de plágio nos textos e atividades, o que já era esperado em um primeiro contato com o material, visto que ninguém assume a responsabilidade autoral pelo mesmo. Não poderia deixar de fazer a ressalva para um potencial leitor menos inteirado com o ambiente acadêmico e escolar de que plágio é crime; 2) erros gramaticais crassos; 3) erros de formatação; 4) erros de datas históricas, como a da Independência do Brasil, que, segundo uma das atividades com a qual me deparei, aconteceu em 1922; 5) erros conceituais, como a permuta das definições de “colônia de exploração” e “colônia de povoamento”, que por si só merecem uma problematização historiográfica profunda, visando a desconstrução de preconceitos que subjazem a tais definições; 6) replicação de atividades que induzem xs alunxs a terem um entendimento superficial da escravidão na África, o que fatalmente leva a uma compreensão equivocada do tráfico transatlântico de escravizados e dos quatro séculos de escravidão moderna, ao sugerir a equivalência entre os fenômenos, potencializando negacionismos históricos e a perpetuação do racismo; 7) entendimento superficial da cidadania durante o Brasil Império e veiculação de uma perspectiva que supervaloriza a centralização monárquica no Segundo Reinado, em contraposição às revoltas de caráter popular do período regencial; 8) utilização equivocada de imagens, já que a maioria das ilustrações apresentadas não são abordadas como uma representação historicizada do real, produzida em contextos específicos e a partir de determinadas técnicas disponíveis, e sim como um mero espelhamento de eventos históricos.

De forma nenhuma a enumeração feita aqui é exaustiva. Apenas menciono algumas ocorrências deploráveis que encontrei ao longo dos PETs I, II e III de História relativos ao 8º, 1º e 2º ano que estão vivos na minha memória. Felizmente, os supervisores da escola reforçaram a autonomia dos professores na realização de adaptações necessárias no material. Para além de corrigir tais equívocos e adaptar atividades, tenho enviado periodicamente para xs alunxs material didático complementar de qualidade.

Em meio à frustração, cansaço e tédio do teletrabalho, tenho realizado outras atividades acadêmicas. Inclusive, comecei a minha coluna aqui na HH Magazine, o que me trouxe grande satisfação. A alta exigência de produtividade acadêmica, desconhecida daqueles comprometidos com a destruição da educação pública e da imagem dos professores e pesquisadores, foi decisiva para que me engajasse na finalização de trabalhos diversos, fruto de metas pessoais e coletivas, como traduções, biografias, capítulos de livro, artigos acadêmicos, pareceres para periódicos e participação em banca. Não porque estou com tempo sobrando ou por mera vaidade de engordar o meu currículo. Mas sim como uma forma de resistência e sobrevivência. Ademais, estou também especialmente feliz por ter tido meu projeto de pós-doutorado aprovado por uma instituição pública de ensino superior, após quatro meses de pesquisas preliminares, com a qual em breve formalizarei o vínculo.

Entretanto, a maior alegria da quarentena tem sido as trocas com a minha companheira, Júlia Arantes. E aqui temos a convergência entre a minha atividade docente atual, a quarentena e a produção audiovisual, que anima o presente ensaio. A Júlia realizou entre abril e junho deste ano, na modalidade on-line, o curso Curta Metragem: uma arte da colaboração, na Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP), ministrado pelo Prof. Ricardo Macêdo, o que oportunizou a realização de uma parceira nossa na produção de dois curtas-metragens. Desse modo, dada a limitação de atores e possíveis personagens, uma vez que estamos só nós dois isolados em casa, e levando-se em conta a relevância da temática neste momento, decidimos tematizar nos curtas as angústias da vida do professor em teletrabalho e do pesquisador em situação precarizada.

Primeiramente, realizamos em parceria o minidocumentário Vida de professor na quarentena [https://www.youtube.com/watch?v=wzK4HPCCRcw&feature=youtu.be], no qual misturamos ficção distópica e realidade para abordarmos aspectos do cotidiano dos professores da educação pública em um contexto de isolamento social, aprofundamento do negacionismo histórico e polarização política no Brasil. Nesse curta, optamos pela utilização de um pseudônimo e pelo incremento do enredo com elementos recorrentes que perpassam a vida pessoal e o cotidiano dos professores da rede pública. Além do link direto para o Youtube, o vídeo foi disponibilizado no site desenvolvido pelo professor Ricardo Macêdo [https://rmacedo72.wixsite.com/curtas], para divulgar os curtas-metragens produzidos na disciplina

O segundo curta, Bode Expiatório, foi classificado para exibição no festival Curta Quarentena [https://www.youtube.com/watch?v=A_ErdD-p5AA&feature=youtu.be]. Nele procuramos abordar como em meio a telas, janelas, links, redes sociais e memes se constitui a nossa experiência de tempo contemporânea e as expectativas a respeito da educação pública e do trabalho dos professores. Buscamos evocar o clima de redução de horizontes de expectativas relativos às possibilidades de promoção da educação pública de qualidade em nossa contemporaneidade, tendo em vista a sedimentação de valores democráticos e o acolhimento da diferença e da vulnerabilidade. Entremeando cenas coloridas e em preto e branco, esfera pública e doméstica, trechos de filmes, entrevistas e diálogos rotineiros, o curta problematiza o agravamento da precarização da educação nos últimos anos devido ao aprofundamento da crise do neoliberalismo em escala global e os seus desdobramentos no Brasil com a eleição de um governo de extrema direita. A realidade opressiva atinge tanto os professores do ensino básico, quanto do ensino superior, que sofrem os efeitos da criminalização da sua profissão por ideólogos, políticos, imprensa e corporações comprometidos com o saqueamento do Estado democrático de direito. O pacote de humilhações cotidianas se manifesta através da escassez de concursos, da normalização do trabalho docente com vínculo temporário, do corte do financiamento de pesquisas, do atraso de salários e da disseminação massiva de fake news que promovem a difamação da realidade escolar e universitária.

Para além da produção desses dois curtas-metragens em parceria comigo, a Júlia tem produzido material audiovisual de qualidade, apesar da escassez de recursos dada a necessidade de isolamento social, tendo três outros curtas contemplados em editais recentes. Segue a lista abaixo:

 

Até que a morte os separe: https://www.youtube.com/watch?v=A-gCD0xlCKQ

– I Mostra Multi Interações da UFOP, on-line, de 8 a 26 de julho de 2020

– 15ª Mostra de Cinema de Ouro Preto (CineOP), on-line, de 3 a 7 de setembro de 2020

 

Óculos sob medida: https://www.youtube.com/watch?v=UP3jeahh35A

– I Mostra Multi Interações da UFOP, on-line, de 8 a 26 de julho de 2020

 

Isolamento poético: https://www.youtube.com/watch?v=sUBdqzuF-hg

– 15ª Mostra de Cinema de Ouro Preto (CineOP), on-line, de 3 a 7 de setembro de 2020

– Curta Quarentena, on-line, de 22 de julho a 19 de setembro de 2020

 

À despeito do sofrimento e da tristeza provocados pela catástrofe inesperada da pandemia e pelas catástrofes prometidas e cumpridas por Bolsonaro e Zema, inimigos declarados da educação pública, trabalho e luto para a emergência de futuros acolhedores da diferença neste país. Felizmente bem acompanhado: sem a Júlia seria muito mais difícil. Sigamos com determinação e amor na busca por dias melhores.

 

 

 


Créditos na imagem: Cena do documentário Vida de professor na quarentena.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

André da Silva Ramos

Professor de Teoria da História e História da Historiografia da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Doutor em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Realizou estágios de pesquisa na Universidade de Lisboa, na Stanford University e na Wesleyan University. Teve pesquisas financiadas pela Capes, Cátedra Jaime Cortesão (USP) e Fulbright. É autor do livro "Robert Southey e a experiência da história: conceitos, linguagens, narrativas e metáforas cosmopolitas" (2019), publicado pela parceria editorial entre a Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH) e a editora Milfontes.

2 comments

  1. Luíza Moreira Miranda 18 setembro, 2020 at 17:47 Responder

    Achei interessante o texto. Minha irmã é professora de literatura e de redação da rede estadual e me relatou problemas parecidos, bem como com seus filhos, que também os dois estudam na rede estadual. Único ponto que tenho de crítica é o uso dos “x”. Além de deixar o texto incompreensível para quem precisa fazer uso de leitor de tela, seja por razões de deficiência visual ou porque quer (o leitor de tela não identifica o x e as palavras e frases ficam bizarras), também visualmente há um tumulto visual. Fora que para o caso de “os alunos”, esse termo é neutro, não masculino.

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