1.

O avô, dois anos a mais do que eu, cuida do neto enquanto a filha dele, mãe do menino, faz exames de imagem. O neto engatinha pelo recinto sorrindo para tudo e para todos. O avô é um tipo contemporâneo, de calça jeans, sapatênis e braços tatuados. A filha usa calças rasgadas, aquelas que parecem trapos. É magra, bela, jovem de tudo. O menino anda com ajuda de outrem, mas se levanta sozinho, escorando-se[1].

Observo como é próprio aos narradores. O menino tem uma marca vermelha bem no centro alto da testa. Presumo ser um galo. A mãe dele me diz ser uma picada de pernilongo.

Observam meus órgãos localizados no abdômen. Tenho a bexiga não muito cheia. Conduzem-me ao cardiologista para exames no coração. Eu fico a imaginar se num desses exames, surrealmente, não encontram em mim um dos órgãos a serem investigados.

– Senhor, seu problema não é nenhuma doença. Falta-lhe o órgão X, ou o Y.

Convenço-me ser bobagem pensar isso. Mas, sigo aterrorizando-me. Vai que o cardiologista não encontra meu coração. Em silêncio, cutuca-me.

De repente, começo a ouvir meus batimentos cardíacos emitidos numa caixa de som de computador. É simples isso, mas fico aflito. Quer saber? Não me agrada ser investigado a esse nível, nem ouvir meu coração bater. Prefiro o horror de faltar-me um órgão do que escutá-lo. Ainda mais amplificado.

Nessa altura, minha bexiga já se encheu dos muitos copos de água que bebi. A vontade de urinar chega. Finalizam os exames no coração. Sou conduzido a verificarem minha bexiga. É rápido e indolor.

Quando saí, o menino desbravador do chão do recinto onde fiz exames estava no colo do avô. Eles sorriram. A mãe do menino chega. Pergunto ao avô, tipo contemporâneo:

– Ela é sua filha?

Ele diz que sim e me pergunta:

– Feia ela, não?

Surpreso com a ironia, digo:

– Horrível. E seu neto também. Não dá nem para ficar olhando.

No café, minimizando o jejum de mais de oito horas, vejo uma filha acompanhar seu pai. Deles nada sei. Nada pergunto, nada descubro. Evidente é a mangueira no pátio da clínica. Carregada dará frutos amadurecidos em dezembro, no máximo em janeiro.

Vou embora carregando meus órgãos examinados e os outros que a médica não teve interesse em examinar, ou não viu necessidade. Vou embora, mas a mangueira carregada e o som de meus batimentos cardíacos parecem pegar táxi comigo.

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2.

Fui fazer um eletrocardiograma e uma ecocardiografia de fluxo colorido. Adivinhem o nome do médico que me atendeu para esses exames? Ovídio. Tem coisas que fazem bem ao coração. Tem coisas que só cronistas vivem. Ser examinado por Ovídio não é para muitos, não acham?

 

3.

Fiz algum comentário estranho enquanto a médica fazia o laudo do mapeamento de retina que me submeti hoje. Como resposta ela disse:

– É poético, mas é estranho.

Era algo do tipo a gente não foi feito para durar ou a gente foi feito para acabar.

Em seguida ela diz:

– A gente foi feito pra durar no máximo 35 anos. A gente é que tem prolongado.

Ela era elegante, esbelta e jovem. Usava botas bem bacanas e uma calça justa, disfarçada pelo jaleco.

Juro que me comportei com decoro. Juro que foi prazeroso ficar com meus olhos às mãos dela. Entregues totalmente.

O excesso de luz cega. Sabia isso, mas empiricamente vivi isso hoje.

 

4.

Drummond tinha retinas cansadas. As minhas, segundo o oftalmologista, estão um pouco finas. Ao Bandeira não valia a pena tentar o pneumotórax. A mim me foi indicado dois exames nas vistas. Um mapeamento de retina e uma retinografia simples. Vou lá fazer. Volto num piscar de olhos.

 

 

5.

Cedo minha mãe me educou em certa lei da compensação. Não sei se consciente ou não da parte dela.

Mais tarde entendi isso.

Quando criança durante alguns anos, por questão de saúde, eu tive que fazer exame de sangue mensalmente. Na época não se usavam seringas descartáveis, nem de plástico. Eram umas de vidro, cuja agulha a mim parecia muito grossa.

Saídos eu e minha mãe do laboratório, ela me levava para comer hambúrguer com molho tártaro, meu preferido.

Hoje, saído do dentista, como tinha que comprar pó de café e erva-mate, comprei também uma lata daquelas batatas fritas que não são batatas, mas sabem bem ao paladar por comida lixo.

Pela lei da compensação, depois de sofrer por dois dias seguidos na cadeira do dentista, eu me dei batatas industrializadas. Fui minha mãe internalizada em mim.

 

6.

Coisas que se fazem por desencargo de consciência: exames oftalmológicos que o médico quando prescreve diz que será apenas preventivo. Não vai pegar nada. Diferenças de cavidade entre um olho e outro podem ser congênitas.

Daqui um ano repete-se o exame e, se a diferença estiver maior, mais acentuada, daí há que ser corrigida a laser. Se a diferença permanecer igual é porque é congênita.

O médico disse congênito tantas vezes que fez me lembrar de Luiz Melodia da canção homônima. Tá na cara que o jovem tem seu automóvel. Subi da Olavo Egídio até a Conselheiro Saraiva a pé. Peguei um ônibus ajudado por lentes corretivas que me fizeram enxergar o Jardim Pery. Para além de carregar a mim, meu peso excessivo, carreguei pequenas compras que aproveitei para fazer. Coisas de freezer e coisas de lavanderia. O tudo que se tem não representa tudo. O puro conteúdo é consideração.

Em mim já há verão, embora a primavera seja fria. Se a gente falasse menos, talvez compreendesse mais. Meus olhos seguiram sadios. Nas lentes novas a luz do hemisfério Sul já é outra. Há mais claridade do que há um mês. Ou será que a claridade estava nas lentes novas de meu hemisfério? Dos meus óculos de olhos cujas cavidades são desiguais?

De todo modo, ter olhos sadios, ainda que desiguais, já é um passo a mais. Quem não vê não goza de consideração.

7.

Por que dentistas gostam de conversar com a gente quando a gente está de boca aberta, sem poder falar?

Por que dermatologistas gostam de mostrar o tamanho e extensão da pinta que retiram de seu corpo antes de encaminhar para exame?

Por que tanto susto?

Quando leio o diário alheio, esqueço-me do meu. Quando leio o alheio, esqueço-me de mim.

Preferia dentistas de pouca conversa. E dermatos menos invasivos.

A tarde não tem a menor chance de ser azul, mas aqui dentro o sabor de chocolate é um sabor de vidro e corte. Vou tomar um café. Não vou tentar o pneumotórax, nem tocar um tango argentino.

 

8.

Comigo acontecem coisas curiosas em ambulatórios, salas de exames, consultórios médicos. Já colheu sangue de meu corpo um enfermeiro chamado Jeová. Já me atendeu para exames cardiológicos um médico chamado Ovídio. Hoje, para retirada de pontos de uma costura pós retirada de uma pinta, quem me atendeu foi uma técnica em enfermagem chamada Iara.

Será que isso acontece porque sou um cronista ou porque em mim a linguagem é diabólica? É o demo no meio do redemunho?

 

9.

Pense num poeta sendo examinado pela cardiologista. Ela diz:

– Em repouso seu coração passa bem.

Ele retruca:

– Mas em repouso, doutora? Em repouso há quem viva?

Ela acrescenta:

– Esse é o som das suas batidas. Seu coração bate bem.

Ele não fala mais nada, porque sabe quem bate bem. E à Mangueira e à escola de samba Padre Miguel ele vai, embora do laboratório ele saia somente depois do exame finalizado.

 

 

10.

Então, ao fazer ecocardiograma, quase cantei a cardiologista. Não o fiz. Achei desnecessário. Afinal, para investigar meu coração ela não necessitava de nenhuma de minhas manifestações amorosas.

Ela me disse ser descendente de espanhóis, que se chamava Andréa. Perguntei se ela sabia que Andréa é nome masculino. Ela me disse que sabia. E se chamava assim por causa de seu padrinho que é grego. Ele a chama de Andreinha, feminino de Andréa. Não sei se foi a situação vulnerável ou o lirismo naquilo tudo contido, mas pela cardiologista me apaixonaria.

 

11.

Então, durante o ecocardiograma, pergunto à médica se ela é cardiologista. Ela me responde que é. Silencio, pois imagino que o exame não pode revelar lirismo nenhum em mim para além daquele que componho em alguns dos meus poemas. Para a médica minha poesia era irrelevante. Para mim um alívio que dela, da poesia, a cardiologista nada soubesse. Em repouso meu coração passa bem. Resta saber ao escrever, andar, correr. Então fiz radiografia completa de tórax como quem faz abreugrafia. E não é? Então, o profissional da saúde que colheu meu sangue para uma bateria de exames elogia meu anel no dedo mindinho da mão direita. Enquanto assino a autorização, confirmo ser bonito o anel. Ele tem pulseira. Não anel. Diz já ter gostado de usar anéis. Lembro-me do tempo em que as seringas eram de vidro, não descartáveis. A picada não doeu. Difícil foi ter permanecido em jejum por tantas horas. Então, durante a ultrassonografia total de abdômen e pelve masculina imagino o sexo do bebê. Teria um Alien ou o quê? O cheiro do gel me enjoa. O médico repete respira, prende, solta, comigo de barriga para cima e deitado de lado por incontáveis vezes. Bexiga cheia e vazia, a imagem fica perfeita. Mas o bebê tinha as pernas cruzadas. Não deu para saber se é menino ou menina. Eu troquei de roupas no vestiário masculino, é bom que se diga.

 

 

 


NOTAS

[1] Esta crônica foi escrita, em sua primeira, versão, quando era possível ir a clínicas fazer exames de saúde e se tratar de problemas de saúde, para além da infecção de Corona Vírus. Era um tempo em que um bebê podia engatinhar no chão de um ambiente onde todo tipo de pessoas anda e carrega comorbidades, para usar um termo da moda hoje.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Disponível em: http://www.eyecolors.com.br.

 

 

 

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