Jorge Amado, Oswald de Andrade: um inimigo em comum

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Em uma oportunidade recente e por esse mesmo portal da HH Magazine, tive a oportunidade de explorar rapidamente, em um ensaio, as relações de amizade e as desavenças que marcaram as trajetórias dos escritores e intelectuais Oswald de Andrade e Jorge Amado, entre os anos 1920 e 1940.[1] Nele, havia ficado claro que questões do campo político, como uma disputa eleitoral em 1945, teriam sido mais importante para demarcar um cisma na amizade entre os dois escritores, em que pese os elogios trocados entre ambos, no que diz respeito as suas produções literárias.

 

Neste ensaio, contudo, vamos mudar um pouco o foco do nosso interesse e mirar nos posicionamentos de ambos em relação a um inimigo comum: o fascismo (e sua tradução nacional, o integralismo). Para isso, vamos analisar algumas passagens encontradas em suas obras, publicadas em livros, em que eles se posicionaram em relação a essa questão, cada um a sua forma. Ao mesmo tempo, também esperamos mostrar que, diferente de algumas afirmações de que os intelectuais dos anos 1930 e 1940 teriam subestimado o poder de agrupamento, alcance e destruição do integralismo, Andrade e Amado tinham uma boa noção do perigo que ele representava e contra a sua perpetuação na sociedade se manifestaram. Nesse sentido, encontramos dois intelectuais comprometidos e (pre)ocupados com o aparecimento, crescimento e ameaças que esse movimento de extrema direita representava desde de sua criação. Dito isso, vamos ouvir, novamente, os nossos escritores. Comecemos, então, pelo escritor paulista.

 

No ano de 1943, em um artigo jornalístico escrito com o propósito de analisar a montagem para o teatro da peça Auto da Barca, do escritor português Gil Vicente, apresentado em São Paulo, Oswald de Andrade aproveitou-se da empreitada para mencionar Plínio Salgado em sua reflexão sobre a importância do evento para a vida cultural paulista naquele contexto. Vale relembrar que o líder integralista encontrava-se, nesse período, até o ano de 1946, exilado exatamente em Portugal. Assim sendo, Oswald não o poupou, dado o contexto de guerra em que o mundo se via inserido.

 

Em meio a um mundo em convulsão política, Oswald se apropriou do enredo da peça de Gil Vicente e construiu uma narrativa imersa em uma perspectiva quase cinematográfica a fim de dramatizar um cenário em que se encontrava presente, de um lado, a coragem de um povo e, de outro, a miséria e a promiscuidade de pescadores. No meio desse caldo, entre aqueles que não mais acreditavam nas promessas da Revolução Russa de 1917, representados pela imagem dos “descrentes de Stalin”, e os que vibravam pelo avanço da extrema direita fascista, entendidos como “os torcedores de Munique”, encontrava-se exatamente Plínio Salgado, de prontidão à espera das “legiões blindadas” do exército de Hitler. A passagem, com suas imagens fortes, sugerem, ao mesmo tempo, uma postura amorfa, sem ação, típico de quem espera, do líder integralista, que estaria ali apenas de prontidão, em um hotel, aguardando o desenrolar dos acontecimentos. Ao aproximá-lo do “quintacolunismo”, uma expressão considerada sinônimo de traição, que geralmente é usada para caracterizar a reunião de um grupo de pessoas que atuam quase sempre de forma  clandestina com o objetivo de trair os seus companheiros, a sua pátria ou sua organização, Oswald também associa Plínio Salgado a um traidor.

 

Em 1944, em um depoimento dado por Oswald de Andrade e incluído no livro Testamento de uma geração, de Edgard Cavalheiro, o escritor se referiu a Plínio Salgado como alguém desprovido de capacidade de desenvolver uma análise histórica sobre os ciclos do progresso humano e dos significados que a revolução da “era da máquina” teria trazido e imposto como um sentido para a história. Ao ser questionado por Cavalheiro sobre como se processariam o que Oswald considerou como os “ciclos históricos” e, especialmente, se eles teriam fim, o escritor se aproveitou da questão para, por um lado, reatualizar a sua fé na ideia de antropofagia, de outro, atacar o líder integralista e alguns dos pontos por ele defendido desde os anos 1920.

 

O quadro pintado sobre Plínio Salgado não deixa de ter um tom cubista e risível: um líder militante de orientação política de direita vestido com uma “camisola verde”, portador de um “insondável humorismo” e um “espírito reacionário e obtuso” com um “cacetão” na mão ameaçando descer sobre as cidades conclamando seus signatários para praticar alguma coisa como uma “devoração pela devoração”. Seria essa, portanto, a imagem da barbárie tropical que estaria sendo pensado ou mesmo promovida pela versão verde-amarelo do fascismo europeu? Por mais que estivesse na forma de pensar de Oswald ideias como a de progresso, seu raciocínio não se resumia a uma simplificação dicotômica. Se, de certa forma, Salgado e o que ele representava naquele contexto dos anos 1940 era tomado como sinônimo de atraso e do arcaico, o que parecia de fato despertar o ataque do escritor era o seu superficial embasamento. Para Oswald, seria a “dialética hegeliana” que elucidaria melhor a questão, uma vez que “o progresso humano se processa por contradições e não caminha numa reta ascensional” (ANDRADE, 1990, p. 57).

 

Não muito diferente de Oswald de Andrade, Plínio Salgado também era um personagem conhecido de Jorge Amado, que, como fez o escritor paulista, foi alvo de algumas críticas do escritor baiano. No livro O cavaleiro da esperança, publicado no ano de 1942 e que nos conta a trajetória do Luís Carlos Prestes, Jorge Amado se serviu de uma longa descrição e encadeamento de eventos históricos e atuações dos principais escritores que povoaram e agiram na história do país desde o final dos século XIX até as primeiras décadas do século seguinte. Lançando mão de uma prosa poética, encontramos também, em várias passagens, o tom áspero e incisivo de um intelectual que, naquele início dos anos 1940, não poupou adjetivos para desqualificar desafetos ou inimigos políticos.

 

Para Amado, o surgimento de “escritores-policiais” teria sido gestada na esteira de literatos como ligados ao pensamento conservador brasileiro ou, de outra forma, a escritores de afinidade política à direita no espectro das divisões partidárias. Nesse sentido, não somente o líder integralista é considerado um “psicopata” como é associado a uma tradição, poderíamos dizer, ou a uma possível cultura intelectual brasileira que seriam, segundo Amado, representantes de um grupo de escritores imbuídos na tarefa de despertar risos da sociedade subservientes e disponíveis para oferecer as classes dirigentes um modelo de “escritor-policial”. De certa forma, é o próprio Amado que se ocupou da tarefa de dividir os grupos, colocando na turma dos que tinham disposição para a luta e partidários de uma literatura interessada pelo real, pela vida do proletariado e pelas greves, o escritor Lima Barreto. Na outra equipe, Jackson de Figueiredo, bajulador, “precursor da polícia política” e, também, péssimo escritor. Vale ressaltar que o ataque do escritor baiano à figura de Figueiredo esteve seguramente  ligada a identificação do escritor às ideias  consideradas conservadoras como, por exemplo, a reunião de leigos e de religiosos que se dedicassem aos estudos da doutrina católica, e o seu papel na introdução dessa tradição no Brasil.

 

Para além das disputas simbólicas e dos ataques, brigas, associações e intrigas movimentadas pelos intelectuais em seu campo de atuação, Amado chama a atenção para os embates que também eram travados no campo da política propriamente dito e onde se encontravam, novamente, a figura de Plínio Salgado, lugar onde talvez seja possível afirmar que passou a concentrar a maior parte, senão totalmente, os seus esforços de atuação intelectual.

 

Para Amado, parecia muito claro que houve uma forte reação popular na passagem dos anos 1920 para a década de 1930 e que uma parte da intelectualidade entendeu a necessidade da mudança de perspectiva histórica e de atuação, sendo essa associada ao apoio às movimentações do proletariado, mesmo que boa parte de seus representantes tenham saído exatamente das fileiras da burguesia cafeeira. Nesse polo, estariam os intelectuais progressistas ou engajados. Em um polo oposto, encontraríamos aqueles que encontraram no seio da reação conservadora um lugar para atuarem e, de certa forma, serem seus representantes.

 

Como desdobramento dos posicionamentos e escolhas feitas por esses intelectuais, os principais acontecimentos que tiveram lugar no desenrolar dos anos 1930 contaram com a presença cada vez mais ativa de figuras que optaram por se adentrarem nas principais disputas que povoaram aquele contexto.

 

Enfim, tanto para Andrade quanto para Amado, seja como literato, parte de um movimento cultural como foi o Verde-amarelismo dos anos 1920, líder de uma agremiação ou partido político, a exemplo do Integralismo, como articulador de levantes contra o poder estabelecido, como em 1939, ou mesmo como articulador ou participante da vida política por meio de um processo de constituinte, Plínio Salgado foi duramente criticado e alvo, em alguns momentos, também de zombaria e escárnio. Independente de por quais estratégias argumentativas, provocações ou ensaios, ou formatos, se em uma biografia de um líder comunista, uma conferência em um evento de arte ou num texto de jornal, ambos os escritores, ao que nos parece, mantiveram em guarda contra o perigo verde-amarelo.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

AMADO, Jorge. O cavaleiro da esperança. Rio de Janeiro: Record, 1979.

ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo S/A: Secretaria da Cultura, 1990.

CUNHA, Valdeci da Silva. Oswald de Andrade, Jorge Amado: amigos em tempos obscuros, desafetos em tempos democráticos, 2020. Disponível em: https://hhmagazine.com.br/oswald-de-andrade-jorge-amado-amigos-em-tempos-obscuros-desafetos-em-tempos-democraticos/ (Acesso: nov. 2020).

 

 

 


NOTAS:

[1] CUNHA, 2020. Disponível em: https://hhmagazine.com.br/oswald-de-andrade-jorge-amado-amigos-em-tempos-obscuros-desafetos-em-tempos-democraticos/ (Acesso: nov. 2020).

 

 

 


Créditos na imagem: Felipe Pessanha (ilustração e montagem). Disponível em: http://www.semanaon.com.br/conteudo/10746/o-integralismo-brasileiro-nunca-deixou-de-existir

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Valdeci da Silva Cunha

Professor de História dos anos finais do Ensino Fundamental da rede municipal de Contagem. Doutor em História Social da Cultura (UFMG) e mestre em História e Cultura Políticas (UFMG). Atualmente, divide o tempo, o que dele sobra, entre ser pai de duas meninas, Ana e Sofia, a sala de aula e a vontade de fazer um pós-doutorado.

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