Trago, por meio deste ensaio, uma reflexão muito comum entre pessoas indígenas; um incômodo cotidiano, sobre o qual traçarei uma discussão em dois tópicos que se encaminham com a história dos últimos séculos do território que hoje conhecemos por Brasil.

 

A afirmação da identidade indígena parece assustar.

O imaginário das pessoas, mesmo entre as que se dizem instruídas, ainda é marcado por representações anacrônicas e preconceituosas sobre quem e como deve ser “índio” no Brasil. O termo “índio”, entretanto, já é um problema. Ele parte de um erro histórico e coloca de forma única os diversos e distintos povos que habitavam e habitam estas terras antigas. Embora o termo possa ser utilizado por alguns parentes, é importante que se tenha em mente que ele ganha um significado distinto do que foi historicamente apregoado. Talvez o susto que cruza a muitos, além do racismo consolidado pelas estruturas de nossa sociedade, consista no choque entre o que se projeta e a realidade. Pois estamos nas cidades, no campo, nas universidades, escolas indígenas e dos rayon[1], falamos português e tantas outras línguas, usamos smartphones e temos nossos costumes, nossas crenças, nossos sagrados e nossas histórias – ainda que muitos destes elementos tenham sido impactados em dimensões diferentes, a depender dos contextos específicos de cada pessoa e dos respectivos povos.

A própria ideia de que possuímos histórias para alguns pode ainda ser estranha, pois esta ciência, como outras, não considerava isso, tampouco nossos conhecimentos. Segundo a professora Linda Tuhiwai Smith, estudiosa da Educação e indígena Māori (Ngāti Awa e Ngāti Porou), a investigação científica constituiu-se como um dos braços do imperialismo e colonialismo europeus (SMITH, 2017) e a produção de conhecimento sobre pessoas e povos indígenas inscreve-se num longo processo empreendido pelo Ocidente, em que a instituição de um “discurso ocidental sobre o Outro” (SAID, 2007) esteve relacionada ao padrão de poder mundial que se desenvolveu na América, sendo esta “a primeira id-entidade da modernidade” (QUIJANO, 2005, p. 117), por reunir em um espaço/tempo a nova configuração cultural, intelectual e intersubjetiva articulada em torno da hegemonia e do etnocentrismo europeus.  A História das Américas e do Brasil ensinadas nas escolas e a que tive conhecimento ao longo de minha formação se distanciam e dialogam no que tange as histórias e culturas indígenas, mesmo após a Lei nº 11.645/08, que tem por objetivo o ensino da temática na educação básica, além de uma grande demanda por um ensino superior que se funde sobre a ideia de uma pluriversidade. Embora discussões em universidades possa ser uma realidade, as representações ainda podem evocar a manutenção de traços e epistemologias que reforçam um imaginário a respeito dos sujeitos em questão. E é nesse sentido que considero que a afirmação da identidade assusta, pois a todo instante temos acesso a reproduções sobre os indígenas e pouco sobre o que estes mesmos têm dito. E temos dito, escrito e feito muito. Oscilo, pois, entre “eles” e “nós” como uma forma de demarcar inclusive os reflexos de alguns problemas históricos de nossa sociedade sobre aqueles que também vivenciam isso, principalmente entre pessoas que descendem de povos indígenas em retomada identitária. Muitos destes, como eu e minha família, cresceram com o silêncio e só vieram a ter conhecimento de algumas questões ao encontrar outros parentes indígenas e o próprio povo. É destoante ver que num momento de circulação de tantas informações as pessoas ainda se assustam ao encontrar, por exemplo, um indígena de cabelos cacheados ou crespos, de pele mais escura ou mais clara, que não cresceu numa aldeia e que não se encontra portando trajes e adornos tradicionais. A anti-historicidade que nos é cotidiana é um dos reflexos da sub-representatividade de nossas histórias, narrativas e consequentemente de questões políticas e sociais, o que não exige muita alteridade a quem está realmente disposto a compreender, quando tratamos de direitos básicos dos seres humanos. Portanto, a Educação está no centro de tudo…

A afirmação da identidade indígena é quase sempre acompanhada pela deslegitimação de nosso ser.

É comum ouvirmos que o Brasil é um país onde a população é “misturada” e que “todos têm sangue indígena”. Este é o ponto chave da presente reflexão: a afirmação de nossa identidade é quase sempre acompanhada por alguma forma de sua negação. Vivenciei uma situação dessas poucos dias antes da escrita deste ensaio e no mesmo dia que eu li numa rede social uma publicação[2] do professor Daniel Munduruku sobre o assunto, em que este traz o seguinte relato:

São atitudes muito simbólicas para nós; especialmente para pessoas em retomada, como o meu povo, os Puri. As tantas e terríveis histórias de mulheres violentadas, de antepassados que deixaram a floresta, seus parentes, suas terras, de avôs e avós envoltos de um intragável e triste silêncio… Mas não se engane! O silêncio neste caso é uma ensurdecedora voz. As afirmações romantizadas sobre a miscigenação nos trazem, portanto, uma grande melancolia, pois o Brasil não se conhece.

Lembro-me do dia que li pela primeira vez Eliane Potiguara e que me encontrei em prantos, pois como a escritora e educadora afirma em seu livro Metade cara, metade máscara,

A diferença é que, aqui, está tendo visibilidade, quando a esmagadora maioria de famílias indígenas violentadas, que continua em aldeias indígenas ou que faz parte das famílias desaldeadas ou desestruturadas, permanece calada, enferma, enlouquecida, isolada na sociedade envolvente. Famílias caladas pela pressão política, social e econômica ou por desconhecerem os seus direitos ou, até mesmo, por vergonha. A vergonha é o resultado do estigma. (POTIGUARA, 2018, p. 29)

 

Emoção semelhante experienciei ao ouvir[3] e ler os relatos da querida sate[4] Raial Orutu Puri (Andréia Baia Prestes), advogada e antropóloga. Histórias que vão somando-se a outras, num grafismo que atravessa nosso corpo de dentro para fora: nossa identidade. Como afirma Raial,

Os produtos dessa história são os Puri de hoje, que guardam em suas peles, cabelos e memórias, os ecos da violência imposta pela “colonização”, mas que ousam fazer disso a sua marca de resistência, a persistência em dizer que permanecem vivos, que são sim, e continuam sendo, Puri, porque assim se reconhecem e se reivindicam, porque é assim, e somente assim, que a vida encontra sentido. (PRESTES, 2017, A)

 

A vasta literatura indígena possui uma potencia que ultrapassa os limites deste ensaio. Porém, o que pretendo expor é que não há beleza na dor de nossos antepassados que tiveram suas vidas marcadas pela colonização, assim como não há beleza em trazer o estupro e o rapto de mulheres e crianças para a afirmação de um “sangue indígena”, sem a sensibilidade de que eram pessoas humanas. Pois, se a afirmação de nossa identidade é sempre acompanhada de alguma forma de negação, o que não ocorre quando alguém indica ou “oficializa” suas origens europeias (ou orientais), pressupõe-se que não temos história e não temos um passado, que nossas memórias são apenas mitos e que como cidadãos desta nação, onde “todos são iguais”, ser “índio” é se vestir para rayon ver. Entretanto, como ressalta Raial, também afirmo: longe de querer “tornar” todos indígenas, que as pessoas tenham o conhecimento real de suas origens e histórias, porque isso diz muito sobre a forma a qual nossa sociedade se relaciona com os indígenas do presente e do passado.

Um dos símbolos de meu povo é xamum (serpente) – presente em grafismos corporais (pirirema imih) femininos e em alguns registros – e há uma história que conta que um dia uma serpente gigante virá do útero da terra para vingar o sangue de nossos parentes cruelmente derramado sobre nosso território, abalando as estruturas do mundo construído pelos brancos. Desse modo, penso que não à toa as mulheres foram e são protagonistas na história de resistência de nosso povo. Talvez nossas mulheres carreguem a força de xamum e o eco de suas histórias no coração de cada parente Puri seja, como ilustrado pela serpente de sangue, o prelúdio do fim do mundo dos rayon-beorona[5], que, conforme temos visto, coloca em risco não apenas as humanidades que habitam a Terra como a própria vida do planeta (CHAKRABARTY, 2013; KRENAK, 2019, 2020). Concluo, entretanto, com as poéticas palavras de Raial que confirmam o que outra querida sate, Tuschahi, educadora e artesã, costuma dizer: que “Puri e poeta é redundância”.

E sim, o que temos é pouco, se precisarmos fazer comparações. Mas o que temos também é muito, quando a opção seria o nada, quando a alternativa seria assumir um não-ser que nos é imposto pelos e odiosos ditos ‘não é mais índio’, ‘não existe mais’, ‘está extinto’. O problema, senhoras e senhores, é que há alguns anos atrás eu descobri que o ‘não é mais índio’ significa não é mais nada. E, não ser nada, é uma aridez impossível. É morte certa. Mas nós escolhemos viver. E insistimos nisso, com toda a teima e tenacidade que faz de nós, originários, o povo mais condenado e resistente em toda a terra. Povo que se adapta, se reinventa, revive, fecunda terras áridas e avisa sempre: não vamos desistir, inclusive porque essa palavra não está em nosso vocabulário. Pelo contrário, pó de estrelas, cerne de diamantes, crias das explosões e do fogo, se refazendo de si mesmos, renascidos e sempre vivos. (PRESTES, 2017, B)

 

 

 

 


REFERÊNCIAS

CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. Sopro 91, jul. 2013, p. 3-22.

 

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras, 2019.

_______________. O amanhã não está à venda. Companhia das letras, 2020.

LEMOS, Marcelo Sant’ana. Notas sobre a cultura Puri. Rio de Janeiro. Edições do autor, 2015.

PRESTES, A. B. Raial Orotu: Sobre minha avó, eu mesma, e o orgulho de ser Puri. Xapuri Sociambiental, 2017. Disponível em: https://www.xapuri.info/povos-da-floresta/raial-orotu-sobre-minha-avo-eu-mesma-e-o-orgulho-de-ser-puri/. Acesso em: 15/09/2021.

_______. Chúri, Uk´hua, Sanná: Sobre os Puri, Museus, a Exposição do MAR e a resistência. Xapuri Sociambiental, 2017. Disponível em: https://www.xapuri.info/home/existencias-indigenas-contemporaneas/. Acesso em: 15/09/2021.

POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade máscara. Metade cara, metade máscara. 3ª edição – Grumin, 2018 [2004].

PURI, T. X. (2021). O sangue Puri da terra: Axe Krim Puri. NJINGA E SEPÉ: Revista Internacional De Culturas, Línguas Africanas E Brasileiras, 1(2), 436–437.

PURI, Txâma Xambé; PURI, Tutushamum; PURI, Xindêda. Kwaytikindo: retomada linguística Puri. Revista Brasileira de Línguas Indígenas, v. 3, n. 2, p. 77-101, 2021.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Editora Companhia das Letras, 2007.

SMITH, Linda Tuhiwai. A descolonizar las metodologías: investigación y pueblos indígenas. Txalaparta, 2017.

 

 

 


NOTAS

[1] Do kwaytikindo, língua Puri, “não indígena”. Kaxate, palavra presente no título do texto, significa “escutar”.

[2] Disponível em https://twitter.com/DMunduruku/status/1435768696560136193. Acesso em 15/09/2021.

[3] Disponível em: https://www.ted.com/talks/raial_orutu_puri_andreia_baia_prestes_avos_alem_do_laco. Acesso em 15/09/2021.

[4] Do kwaytikindo, “irmão, irmã”.

[5] Do kwaytikindo , “não-indígena branco”.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Arte Kusiwa, dos Wajãpi. Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.

 

 

 

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