Como se sabe, nossa famigerada República nasceu às vésperas de um novo século, sob o signo do conflito e das contradições próprios a um acontecimento tão amplo e complexo, atingindo as mais diversas esferas da vida nacional. Assim, inenarráveis batalhas – que nem sempre se limitavam ao mero campo das ideias – eram travadas ora nos âmbitos político e cultural, ora nos âmbitos religioso e econômico, entre outros. Tais embates ganhavam relevância histórica ao colocarem em posição oposta tendências que, em momentos distintos, revelaram-se, do ponto de vista ideológico, divergentes, como é o caso do imponderável hiato que existia, na época, entre monarquistas e republicanos (FREYRE, 1944; ALVES, 1989).
Mesmo entre uma das duas instâncias, os conflitos eram de monta e generalizados. Entre os republicanos, por exemplo, é notória a existência de variadas tendências ideológicas que, inseridas num contexto mais pragmático, acabavam representando indisfarçáveis conflitos de interesses. Não nos causa espécie, portanto, a permanência – durante quase toda a chamada Primeira República, mas principalmente nos primeiros anos do novo regime – de embates que colocavam em rota de colisão civis e militares, cuja conciliação parecia só ser possível graças à atuação de Benjamim Constant; além disso, havia os chamados republicanos radicais, representados pela figura de Silva Jardim, e os moderados, entre os quais se destacava Quintino Bocaiúva; isso sem falar nas disputas – mais latentes do que patentes, mas não menos relevantes – travadas entre os republicanos históricos e os adesistas de última hora, o que nos revela um quadro bastante complexo no que concerne ao jogo de forças presente na República e em seus desdobramentos políticos (PENNA, 1994).
Afirmação semelhante pode ser feita em relação aos monarquistas, embora entre estes últimos pareça haver uma “homogeneidade” ideológica um pouco maior. Isso, evidentemente, não impedia que alguns monarquistas radicais, como Ouro Preto, adeptos de uma atuação mais pragmática no sentido da restauração monárquica, entrasse em conflito com posicionamentos mais contemporizadores, como o de um Antônio Prado (MORAES, s.d.; JANOTTI, 1986).
Entre os intelectuais do período, os conflitos de interesses não eram menores, colocando-se em posições contrárias monarquistas “passadistas” e apoiadores do novo regime (OLIVEIRA, 1990). Assim, se, de um lado, intelectuais como Rui Barbosa, Euclides da Cunha e Alberto Torres se identificavam, em maior ou menor grau, com os princípios republicanos, de outro lado, figuras como Eduardo Prado, Carlos de Laet e Afonso Celso mantinham-se fiéis à ideologia monarquista. Havia, logicamente, aqueles que ficavam num indefinível meio-termo, ora se colocando ao lado do velho regime imperial, ora cerrando fileira junto aos republicanos. É o caso, por exemplo, de José do Patrocínio, um dos entusiastas da Monarquia – pelo menos, na medida em que esta era representada pela possibilidade do Terceiro Reinado, na figura da Princesa Isabel –, que acabou proclamando oficiosamente a República, com o hasteamento da bandeira do Clube Lopes Trovão na Câmara Municipal, ao som da Marselhesa (JANOTTI, 1986); ou de Joaquim Nabuco, que, depois de escrever para O País combatendo os ideais revolucionários e republicanos de Silva Jardim, acabou passando para o lado dos republicanos, tornando-se uma das figuras mais proeminentes do novo regime, motivo pelo qual fora duramente atacado por Carlos de Laet, um ano após a morte do autor de Minha Formação (LIMA, 1987; BROCA, 1960).
Mas se, ainda que se situando numa posição que aqui chamamos de meio-termo, tais intelectuais acabavam assumindo – explícita ou implicitamente, com maior ou menor convicção partidária – um compromisso com um dos regimes que se digladiavam, o mesmo não se pode afirmar daqueles que, durante toda sua vida, jamais se definiram por nenhum dos dois lados, optando antes por uma terceira via radical ou moderada. É o caso, entre tantos outros conhecidos, do célebre romancista carioca Lima Barreto, figura instigante e controversa, que se colocava na indefinida posição intermediária entre os dois regimes políticos.
Embora nascido sob o regime monárquico, Lima Barreto parece ter-se formado pela cartilha dos republicanos, já que fora profundamente influenciado pelo positivismo de Teixeira Mendes e professara ideais caros aos entusiastas do novo regime, como a liberdade racial ou o direito ao voto livre. Formado sob os auspícios da ideologia republicana, contudo, não poucas vezes voltou os olhos para alguns princípios fundamentais da recém-derrubada Monarquia, sobretudo no que esta continha de simbólico e institucional (a figura intocável do imperador, as instâncias políticas imutáveis, o respeito inabalável à tradição), o que revela as contradições de um pensamento que possuía, a um só tempo, matizes anarquistas e feições conservadoras.
É exatamente essa aparente ambiguidade, capaz de colocar um dos principais romancistas do começo do século entre dois regimes antagônicos, que leva Lima Barreto a construir uma obra calcada numa ideologia particularmente instável, pois se é certo que o romancista carioca defendia de forma incontestável alguns direitos sociais mais prementes, não é menos verdade que manifestava posicionamentos políticos pouco liberais mesmo para sua época. É, aliás, essa mesma ambiguidade a responsável pela indefinição política de Lima Barreto frente aos regimes em que viveu, ora apoiando a Monarquia em detrimento da República, ora atuando de modo inverso.
Não há como negar, por exemplo, os vínculos evidentes de Lima Barreto com o regime monárquico, fruto de um saudosismo próprio de alguém que teve boa parte de sua vida familiar e afetiva ligada ao sistema político decaído. A própria biografia do romancista revela-nos episódios marcantes de sua formação, ligados direta ou indiretamente à Monarquia, o que teria contribuído consideravelmente para o processo de idealização do regime: monarquista convicto e trabalhando na Tribuna Liberal, seu pai perde o emprego e fica visado pelos republicanos após a implantação do novo regime, o que teria causado inúmeros transtornos à família; acrescente-se a isso, por exemplo, o fato de Lima Barreto ter tido como padrinho a figura de Afonso Celso, um dos mais renomados e enfáticos monarquistas (BARBOSA, 1981; MORAIS, 1983).
É sintomática, neste sentido, a descrição que o romancista procura fazer da Quinta Imperial, no seu Triste Fim de Policarpo Quaresma: ao situar dois personagens secundários – que, não por mera coincidência, formulavam uma comparação entre aspectos dos dois regimes políticos – numa ambientação particularmente vinculada à lembrança e à história da Monarquia, Lima Barreto parece querer, por contraste, elevar aos olhos do leitor a imagem ideal do regime deposto:
“Eles olharam um instante as velhas árvores da Quinta Imperial, por onde vinham atravessando. Nunca as tinham contemplado; e, agora parecia-lhes que jamais tinham pousado os olhos sobre árvores tão soberbas, tão belas, tão tranquilas e seguras de si, como aquelas que espalhavam sob os seus grandes ramos uma vasta sombra, deliciosa e macia. Pareciam que medravam sentindo-se em terra própria, delas, da qual nunca sairiam desalojadas a machado, para edificação de casebres; e esse sentimento lhes havia dado muita força de vegetar e uma ampla vontade de se expandirem. O solo sobre o qual cresciam, era delas e agradeciam à terra estendendo muito os seus ramos, cerrando e tecendo a folhagem, para dar à boa mãe, frescura e proteção contra a inclemência do sol (…) O velho edifício imperial se erguia sobre a pequena colina (…) todo ele, porém, tinha uma tal ou qual segurança de si, um ar de confiança pouco comum nas nossas habitações, uma certa dignidade, alguma cousa de quem se sente viver, não para um instante, mas para anos, para séculos” (BARRETO, 1987, p. 103).
Ora, é evidente a tentativa de passar uma imagem positiva do ambiente descrito, por meio de uma perspectiva particularmente idealizada. A noção de antiguidade, por exemplo, está presente em toda a descrição, sugerindo uma ideia de permanência e solidez, tal como Lima Barreto devia imaginar o antigo regime, em oposição àquele recém-instalado: antigos eram as árvores da Quinta e o edifício imperial, este último, além de tudo, construído com uma solidez feita para perdurar por séculos. Tal noção é complementada pela ideia de segurança: árvores seguras de si, que não se dobram ao machado e que sugerem, pela amplidão da copa, um real sentido de proteção; segurança de si e ar de confiança são também características do palácio imperial. Enfim, salta aos olhos a tentativa, por parte do romancista, de destacar os predicados estéticos e sensitivos de toda a ambientação descrita: as árvores da Quinta eram soberbas, belas e tranquilas, espalhando uma sombra deliciosa e macia; o edifício imperial era dotado de certa dignidade.
Representando, simbolicamente, o regime monárquico, a descrição de Lima Barreto ganha força e contornos ideológicos quando a comparamos com outra, feita um pouco mais adiante, mas agora do palácio do Catete, sede do governo republicano na época:
“O palácio tinha um ar de intimidade, de quase relaxamento, representativo e eloquente. Não era raro ver-se pelos divãs, em outras salas, ajudantes-de-ordens, ordenanças, contínuos, cochilando, meio deitados e desabotoados. Tudo nele era desleixo e moleza. Os cantos dos tetos tinham teias de aranha; dos tapetes, quando pisados com mais força, subia uma poeira de rua mal varrida” (BARRETO, 1987, p. 112).
Ao contrário do primeiro ambiente, este se destaca exatamente pelas características negativas que apresenta: o relaxamento generalizado, a falta de ordem, o clima de indolência, a falta de asseio e de limpeza; tudo muito diferente da segurança, da solidez e da dignidade presentes no primeiro local. O contraste revela-se bastante eloquente, na medida em que situa em pólos opostos dois ambientes singulares, simbolicamente representativos dos regimes antagônicos.
Outro exemplo do processo de idealização da Monarquia promovido por Lima Barreto pode ser tirado das referências feitas à figura do imperador D. Pedro II, alvo contínuo de ataques sem condescendência por parte dos intelectuais republicanos e de extremados elogios por parte do romancista carioca: em várias passagens de seus romances, Lima Barreto procura passar ao leitor uma imagem positiva do imperador, quase sempre qualificando-o de “bom homem” (Triste Fim de Policarpo Quaresma) ou, estendendo-se um pouco mais nos epítetos, de “homem bom, honesto, sábio” (Numa e a Ninfa). Novamente, em franco contraste com essas designações, temos a descrição de uma das mais representativas figuras do regime republicano, Floriano Peixoto, sugestivamente exposta por uma ótica invertida:
“[a figura de Floriano] era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se agarrava uma grande ‘mosca’; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso – parecia não ter nervos” (BARRETO, 1987, p. 114).
Para Lima Barreto, não bastava elevar a figura real do imperador para valorizar a Monarquia; era preciso, ainda, denegrir a imagem do regime republicano por meio de ataques à figura daquele que se tornou um de seus maiores ícones. Em franco contraste com tudo o que sua figura poderia sugerir (convém lembrar que Floriano Peixoto era também conhecido, por antonomásia, como o Marechal de Ferro), o romancista carioca o descreve a partir de uma perspectiva extremamente negativa e inclemente: trata-se, no seu ponto de vista, de uma figura vulgar, desoladora, destituída de superioridade, inexpressiva e gelatinosa – o contrário do que sugeria a imagem soberba do imperador e, por extensão, do regime monárquico.
Portanto, por meio de uma sistemática oposição entre alguns traços próprios de cada um dos regimes tratados, Lima Barreto busca, argutamente, convencer o leitor das qualidades do governo decaído, em detrimento da República, promovendo assim um deliberado processo de idealização da Monarquia.
De qualquer maneira e conclusivamente, entre Monarquia e República, Lima Barreto colocava-se, como já sugerimos, num meio-termo ideológico precariamente definível: não era um adepto fervoroso da primeira, já que preferia cobrir seus erros e acertos pelo manto diáfano da fantasia; não adotara o anti-republicanismo por convicção ideológica, preferindo antes atuar por meio de uma crítica pouco isenta, carregando invariavelmente nas tintas. Nos exemplos aqui apresentados por nós, contudo, fica evidente um leve pendor ao regime monárquico, o que se explica por vários motivos, desde sua formação e influência familiar até a indefectível desilusão com o regime novel.
REFERÊNCIAS
ALVES, Paulo. “Estado Liberal e Burguesia na Primeira República”. História, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, Vol. 08: 09-14, 1989.
BARBOSA, Francisco de Assis. A Vida de Lima Barreto (1881-1922). Rio de
BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo, Ática, 1987.
BROCA, Brito. A Vida Literária no Brasil. 1900. Rio de Janeiro, José Olympio, 1960.
FREYRE, Gilberto. “O Período Republicano”. Boletim Bibliográfico. Biblioteca Pública Municipal de S. Paulo, São Paulo, Vol. II: 61-72, Jan./Fev./Mar. 1944.
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os Subversivos da República. São Paulo, Brasiliense, 1986.
LIMA, Heitor Ferreira. Perfil Político de Silva Jardim. São Paulo/Brasília, Nacional/INL, 1987.
MORAES, Evaristo de. Da Monarchia para a Republica (1870-1889). Rio de Janeiro, Athena, s.d.
MORAIS, Regis de. Lima Barreto. O Elogio da Subversão. São Paulo, Brasiliense, 1983.
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A Questão Nacional na Primeira República. São Paulo, Brasiliense, 1990.
PENNA, Lincoln de Abreu. O Progresso da Ordem. O Florianismo e a Construção da República. São Paulo, FFLCH-USP, 1994 (Tese de Doutorado).
Crédito nas imagens: Reprodução/ Disponível em:https://oglobo.globo.com/cultura/livros/arquivo-de-lima-barreto-sera-incluido-em-programa-da-unesco-21989509
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