Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) foi um literato e jornalista carioca que apresenta uma produção escrita fabulosa para pensarmos diferentes temas que ainda hoje conseguem nos provocar questionamentos e tocar nossas emoções. Tanto pelo modo visceral que chegou a se colocar diante das situações e das coisas, quanto pela atualidade de seus escritos, carregados de sensibilidades e daquele bom humor e acidez que consegue arrancar sorrisos de canto de boca.

Nessas linhas pretendo mostrar um pouco do lado barretiano enquanto um interprete do direito. Ou de alguém que esteve numa posição estratégica no cenário da cultura que ao articular um pensamento crítico sobre a política e a estrutura democrática do país em seu tempo, no contexto espacial da cidade do Rio de Janeiro da Primeira República brasileira (1889-1930), criou virtualidade sobre o fenômeno jurídico (suas práticas, instituições, discursos, etc.).

Quando o nosso autor desnudou uma série de assuntos relacionados a burocracia nacional, direta e indiretamente, nos apresenta questões que possibilitam a problemática do direito. Um desses casos pode ser avaliado nos escritos sobre o Legislativo brasileiro, onde as imagens dos indivíduos que compuseram esse espaço, a título dos Senadores e Deputados, reservam uma série de relatos com animosidade e desencanto.

Ponto este, geralmente, salientado pela falta de compostura e objetividade daqueles malabaristas da norma com a coisa pública, ao colocarem a pessoalidade a frente de todas as decisões que tomaram, mantendo um perfil desconexo com a ética e a moral. Situação incômoda que fez somatório a certa destreza e capacidade que tiveram de enfadar o país com a produção de leis sem sentido, sem finalidade e propósito aparente.

Antes, serviram mais para alçar interesses pessoais e familiares, e tornar mais sofrida e burocrática a vida dos pobres-diabos, daqueles indivíduos que estiveram à margem da sociedade e sempre na mira do poder persecutório. Agindo contra o preceito fundamental da boa política, já recitado por Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), qual seja, fazer os povos felizes.

Importa situar que Barreto não manteve um perfil avessos a esse universo da legalidade. Antes, exigiu o seu cumprimento, e quando estas fossem organizadas que tivessem em vista a finalidade social. Em alguns de seus protestos feitos em contribuições a imprensa periódica do Rio de Janeiro, cotejadas em artigos e crônicas, são recorrentes essas tomadas de posição, principalmente em diálogo crítico com a primeira constituinte do período republicana (1891).

Ao trazer a Constituição em baixo do braço o nosso autor demonstrou ter afinidades com a lei e o espaço do jurídico, ao esboçar a figura do cidadão consciente de seus direitos, deveres e obrigações. Mais ainda conhecedor do papel de seus representantes eleitos que, certamente, possibilitou uma atenção maior as suas ações, atos e desarranjos na arena política.

Lima Barreto nunca escondeu as antipatias que teve com a burocracia, menos ainda quando foi amanuense na Secretaria da Guerra. Em seus escritos, como no Diário íntimo, correspondências e em produções romanescas, é possível verificar como se sentiu nesse ambiente. O enfado, a dor, o cansaço e o tédio são algumas das sensações corpóreas mais recorrentes em seus relatos. Todavia, apesar dessa aversão, não se pode olvidar que o nosso autor nunca deixou de ser aquilo que mais detestava: um burocrata.

Os seus biógrafos, tanto Francisco de Assis Barbosa (1988) como Lilia Moritz Schwarcz (2017), tornaram sugestivo essa questão ao observarem, por exemplo, que o literato alimentou presunções por ser um empregado público. O que, certamente, lhe reservou certa distinção. Contudo, não podemos qualificar o autor de Policarpo Quaresma como um tipo de burocrata puro ou ligado as imagens de uma autoridade legal, no dizer weberiano (1978).

Antes é interessante a sua identificação como um tipo de poeta-burocrata, qualificação provisória que não busca sua identificação aos formalistas, a trupe dos gramáticos ou aos mandarins da literatura. Quando coloco a figura do poeta reforço que as corporeidades do homem de letras nunca se dissociaram, por completa, do burocrata, mesmo quando tentou construir as fachadas do literato. De certo estavam sempre ali juntas, pois quando Barreto discutiu o direito, sempre colocou à disposição a imagem do escritor militante que teve o dever a pena de combater todas as opressões impostas a população subalterna.

Apesar disso, o escrito de Clara dos Anjos não nos ofereceu uma definição expressa e fechada do que compreendeu por direito. Esse entendimento é fragmentário e perpassa preocupações sobre a ideia de justiça, igualdade, liberdade e solidariedade. Certo é que seu letramento com o direito veio junto a função que ocupou na Secretaria da Guerra, ao lidar diariamente com o jurídico se transformando e agindo em sua frente.

As leituras dos jornais também foram essenciais nessa formação, e percepção crítica do direito. Na crônica Pela sessão livre, publicado em 1919, na Revista Contemporânea, encontramos os rastros dessa consideração quando o literato desprende algumas notas sobre a famosa sessão “apedidos” do Jornal do Comércio. Considerada como uma das instituições genuinamente nacionais, prestígio que foi se firmando desde a data de sua criação no ano de 1860, nessas colunas foi possível encontrar as espacializações da linguagem jurídica, ou suas manifestações na forma de infra-direito, lembrando aqui a ideia de um direito para além de suas formas instituídas, como advogou François Ost (2007).

A referida coluna, lembra o nosso cronista, tornou-se um local de deleite para Advogados e Políticos de toda ordem, por ser comum o aprendizado do Direito Público, Civil, Internacional, Comercial, Penal, além de negócios Ministeriais, finanças e outras “malandragens bancárias”. Certo que foi um espaço igualmente apreciado por Barreto, que também observou a troca de farpas, pilhérias, intrigas e todo aquele jogo de acusações políticas que animavam as páginas desse impresso, que chegou a ser identificado como um exemplo de neutralidade (SILVA, 2017).

Por fim, importa anotar que Barreto ao demonstrar essas afinidades com o direito, ora discutindo seus temas, problematizando o papel da justiça e de suas instituições, e muitas vezes colocando em questão os valores democráticos da sociedade de direito e as constantes flutuações da cidadania, acaba por cumprir o papel de mediador intelectual, (GOMES; HANSEN, 2016). Isto é, do indivíduo que se valendo de sua posição, seja nas letras, no jornalismo ou mesmo na burocracia, foi capaz de criar, transmitir, decodificar uma mensagem ou produto cultural, de um lugar para o outro.  Quando essa particularidade ocorreu em relação ao direito, ao trazer o texto da lei e seus dispositivos de modo expresso ou não, torna familiar um debate que, talvez, já fosse agitado nas camadas populares por sua dualidade, em considerações mais gerais do que poderia ser certo e errado, justo e injusto.

Mais do que isso, corrobora com entendimentos que o saber direito ainda que tenha as suas complicações, selecione e reconheça seus pares pelo formalismo, seus códigos não foram indecifráveis. Prova disso é a constante espacialização de sua linguagem nos jornais, que não foi uma particularidade barretiana em trazer esse debate, porém este contribuiu de modo expressivo para que esse assunto fosse dito, visto e lido de diferentes maneiras, particularmente, em artigos e crônica, e não menos importante ao longo de sua fortuna crítica. Fato que fez com que atravessasse constantemente as fronteiras do direito.

 

 

 


REFERÊNCIAS

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 7.ed. São Paulo: EdUSP, 1988.

BARRETO, Afonso H. de Lima. Toda crônica (1890-1919). Apresentação e notas: Beatriz Resende. Organização: Rachel Valença. Rio de Janeiro: Agir, 2004.v.1.

GOMES, Angela de; HANSEN, Patricia Santos. Apresentação. In: ______. GOMES, Angela Maria de; HANSEN, Patricia Santos (Org.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, p. 7-37.

OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. Tradução de Paulo Neves. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2007.

SCHWARCZ, Lilia Moritz: Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017

SILVA, Roger Anibal Lambert da. Em nome da ordem: o jornal do Commercio e as batalhas da abolição. Tese (Doutorado em História). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2017.

WEBER, Max. Os fundamentos da organização burocrática: uma construção do tipo ideal. In: CAMPOS, Edmundo (Organização e tradução). Sociologia da burocracia. 4ed. Rio de Janeiro: Zahar: 1978.

 

 

 


Créditos na imagem: Lima Barreto – Divulgação / Arquivo.

 

 

 

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