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Literatura de Informação no Brasil: uma produção entre a história e a literatura (II)
Encontros de História e Literatura

Literatura de Informação no Brasil: uma produção entre a história e a literatura (II) 

Entre as diversas obras importantes escritas no século XVI, no Brasil, pelo menos duas merecem destaque no nosso cenário cultural, já por seu valor documental, já pelo caráter de “vanguarda” que possuem, uma vez que retratam, com a fidelidade possível, aspectos da nova realidade com que se deparavam os portugueses: trata-se da Carta, de Pero Vaz de Caminha, e do Tratado Descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Souza. Ambas compartilham, conforme buscamos demonstrar em texto anterior, o estatuto de obra historiográfica e literária, com as devidas ressalvas para ambos os casos.

Com efeito, a célebre Carta redigida pelo escrivão da armada portuguesa, Pero Vaz de Caminha, pode ser considerado nosso primeiro documento “histórico” e, ao mesmo tempo, nossa primeira manifestação “literária”, possuindo, neste sentido, o mérito – embora apenas cronológico – de inaugurar a literatura brasileira de expressão portuguesa. Contudo, sua classificação dentro da tradição cultural literária especificamente brasileira não é de forma alguma consensual, já que ela parece filiar-se, antes, a uma sólida tradição portuguesa, a da chamada literatura de viagens. Decorre desse fato a própria dificuldade de sua classificação como texto literário propriamente dito, uma vez que a intenção estética – um dos fundamento principais de toda obra literária – foi deliberadamente substituída pela intenção de informar à Coroa Portuguesa sobre o novo achado. Diante dessas evidências, duas posturas que podem ser adotadas do ponto de vista historiográfico:

 

  1. A classificação da Carta de Caminha como um autêntico documento histórico-etnológico, em vez de insistir na classificação puramente literária. Pela intenção que o próprio autor manifesta ao escrevê-la, pela maneira como os fatos, eventos e personagens preenchem essa intenção, é que podemos afirmar não se tratar absolutamente de uma produção literária, no sentido mais estrito desse termo. Cumpre lembrar que o grande etnólogo Herbert Baldus (1998) chega a classificar a Carta de Caminha como sendo a primeira obra etnológica da América Latina.

 

  1. A consideração da obra em tela como uma produção de natureza literária em sentido amplo, isto é, uma obra que, apesar de não revelar um pressuposto estético deliberado, apresenta alguns aspectos estéticos dignos de nota, como sugerem Alfredo Bosi (1988) e José Aderaldo Castelo (1972).

 

A questão da “nacionalidade” da Carta é, neste sentido, particularmente relevante, embora suscite menos “problemas” que aqueles relacionados a sua classificação: é que, no contexto citado, torna-se mais fácil escapar por uma tangente que tem na ideia da presença tácita de uma expressão luso-brasileira sua principal representante, com o que se pode considerar a Carta, a um só tempo, uma obra brasileira – pelo que contém de temática nativista, abordada sob o impacto da descoberta – e portuguesa – pelo fato de ter sido escrita por uma autor português, de língua e cultura lusitanas, conforme salienta Antonio Soares Amora, em sua História da Literatura Brasileira (1955).

De qualquer maneira, os antecedentes da Carta de Caminha são “puramente” históricos, já que, do ponto de vista estético, ela se afasta consideravelmente de quase toda produção literária do século XV e XVI. Ainda assim, é possível, contudo, proceder a uma espécie de análise de seus componentes estéticos mais relevantes. Neste sentido, poder-se-iam destacar seu apego ao detalhe, à descrição objetiva, à exposição direta e clara, além de uma tendência ao deslumbramento e ao uso de elementos próprios de um estilo figurativo (ironia, metáfora, comparação etc.).

Curiosa, mas compreensivelmente, é com olhos de um agente lusitano, de sólida cultura europeia, que Caminha procura desvendar os segredos e os achados da terra recém-“descoberta”. Atua no sentido explícito de revelar, expor e informar sobre tudo o que lhe parecesse mais relevante, agindo como uma espécie de repórter (MENEZES, 1954). A perplexidade diante do universo exótico, o espanto com que o missivista defronta a natureza alienígena, o deslumbramento para com um mundo totalmente desconhecido e virtualmente surpreendente, tudo isso faz com que a Carta possa ser considerada uma significativa expressão do sentimento edênico (CASTELLO, 1972). Finamente, embora esta não seja a intenção do autor, a perspectiva da idealização é francamente adotada por Caminha, o que acaba dando à sua obra um fugaz sentido de artificialidade: “as águas são muitas e infindas. E em tal maneira é grandiosa que, querendo aproveitá-la, tudo dará nela…” (CAMINHA, 1999, p. 22).

Mais do que a idealização, é a hipérbole que emerge como recurso estilístico por excelência de Caminha: não nos podemos furtar, por exemplo, à lembrança de que as principais intenções de Caminha, ao redigir sua Carta, relacionavam-se à difusão do Cristianismo e à exploração comercial da “nova” terra, interesses que persistem, no plano estilístico, em toda a narrativa, por meio de um estilo francamente hiperbólico.

Tão importante quanto a epístola de Caminha, o Tratado Descritivo do Brasil de 1587, de Gabriel Soares de Souza, ocupa um lugar relevante na nossa tradição cultural. Também aí não podemos desconsiderar o valor documental – e, mais uma vez, etnográfico (BALDUS, 1998) – da obra, já que seu autor procura – a exemplo de Caminha – detalhar aspectos que considera importantes da realidade brasileira, além das intenções latentes, como o desejo de angariar recursos para uma expedição em busca de metais preciosos.

E, o que mais nos interessa aqui, tudo isso expresso no plano estético-estilístico do texto…

Assim como acontece com a Carta de Caminha, também o Tratado de Gabriel Soares padece de uma melhor classificação no âmbito da cultura brasileira, já que, apesar de sua natureza evidentemente documental e etnológica, críticos da literatura não hesitaram em considerá-lo uma obra “literária”. Para Veríssimo (1977), por exemplo, o Tratado pode ser considerado “o mais eminente documento (da) literatura de informação” (p. 27). Se observações como essas não resolvem o problema da classificação da obra em causa, pelo menos serve como evidência de sua importância para a nossa tradição cultural e literária.

Embora pareça haver uma deliberada intenção antiestética por parte de seu autor – que privilegia demasiadamente o descritivismo etnológico, marcado por repetições enfadonhas, linearidade estilística ou o emprego exagerado de termos técnicos (náuticos, geográficos, militares etc) – destaca-se a utilização de certos recursos linguísticos, como a própria hipérbole, a revelar um feitio claramente exagerado de sua visão da terra brasileira: “pelo rio dos Ilhéus trouxe a cheia um pau de cedro ao mar tamanho que se tirou dele a madeira e tabuado com que se madeirou e forrou a igreja da Misericórdia, e sobejou madeira” (SOUZA, 1971, p. 75).

Além do caráter etnológico e da natureza encomiástica do Tratado, pode-se também destacar seu compromisso para com a história local (trata-se, vez por outra, de uma autêntica história da província baiana) e com a corografia, como se percebe neste trecho de exagerado descritivismo: “atrás fica dito como a ponta de sueste do rio Maranhão, que se chama esparcelada, está em dois graus e 3/4. Desta ponta à baía dos Santos, são treze léguas, a qual está na mesma altura, e esta baía é muito suja e tem alguns ilhéus (…) Desta baía dos Santos ao rio de João de Lisboa são quatro léguas, a qual está na mesma altura, e esta baía é muito suja e tem alguns ilhéus (…) Desta baía dos Santos ao rio de João de Lisboa são quatro léguas, o qual está na mesma altura (…) Do rio de João de Lisboa à baía dos Reis são nove léguas, a qual está em dois graus”. (SOUZA, 1971, p. 59).

Tanto o Tratado Descritivo do Brasil em 1587 quanto a Carta do escrivão da armada portuguesa são obras múltiplas, de muitas facetas, apresentando, apesar das observações aqui feitas, uma pálida vertente literária. Nem por isso deixaram de ser abordadas pelos mais empenhados historiadores de nossa produção literária.

 


REFERÊNCIAS

AMORA, Antônio Soares. História da Literatura Brasileira. Séculos XVI – XX. São Paulo, Saraiva, 1955.

BALDUS, Herbert. “Etnologia”. In: MORAES, Rubens Borba de & BERRIEN, William. Manual Bibliográfico de Estudos Brasileiros. Brasília, Senado Federal/Secretaria Especial de Editoração e Publicação, 1998.

BOSI, Alfredo. História Concisa  da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1988.

CAMINHA, Pero Vaz de. Carta. In: PEREIRA, Paulo Roberto (org.). Os Três Únicos Testemunhos do Descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro, Lacerda, 1999.

CARPENTIER, Alejo. Ensayos. México, Siglo Veintiuno, 1990.

CASTELLO, José Aderaldo. Manifestações Literárias do Período Colonial. São Paulo, Cultrix, 1972.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal. Rio de Janeiro, José Olympio, 1987.

Gandavo, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil. História da província de Santa Cruz. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980.

Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Río de Janeiro, José Olympio, 1976.

MENEZES, Djacir. Evolução do Pensamento Literário no Brasil. Rio de Janeiro, Simões, 1954.

SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. São Paulo, Companhia Editora Nacional / Edusp, 1971.

VERÍSSIMO, José. Estudos de Literatura Brasileira. Sétima Série. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1977.

 

 

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