Mãe vem!

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Caracas, 13 de dezembro de 18:

– Mãe! Vem! –. Escutava-se no fundo da casa, lá no quarto do Aquiles. E o meu sorriso foi imediato.

Meu Deus! Quantas saudades dessa exclamação matutina do meu filho! É das coisas mais presentes e mais queridas na minha maternidade toda.

No entanto, eu fiquei um pouco estranha com essa exclamação do Aquiles. É porque ele ultimamente acorda tarde (acho que pela sua idade adolescente) e ainda estava cedo quando ele me chamou. O que aconteceu foi que ele dormiu um pouco ansioso e queria saber se íamos esperar ao Juan Pablo, um dos seus amigos, para irmos trabalhar no arquivo. No dia anterior eu havia pedido para o Aquiles me acompanhar e ajudar coletando algumas fontes para minha pesquisa; então o Juan Pablo animou-se para ir conosco. Se não fosse por ele, o meu filho não teria tido vontade de ir e, na verdade, eu precisava muito do apoio dos meninos.

Eu devo aproveitar o máximo do tempo possível para mapear fontes, mas infelizmente, pelos problemas de transporte e pelas datas de Natal, a Biblioteca Nacional e o Arquivo da Revolução estão fechando muito cedo e só vão trabalhar até 15 de dezembro. Hoje, por exemplo, fecharam ao meio-dia.

No entanto, e apesar dos inconvenientes com o horário de serviço nos arquivos, eu tenho tido sorte neste processo de busca das fontes. Há pessoas amigas – minhas ou do meu pai – trabalhando no Centro Nacional da História (CNH) e no Arquivo da Revolução, e aí eles têm me ajudado a acessar os lugares em que estão localizadas alguns dos materiais que preciso. Aliás, o pessoal da Hemeroteca Nacional – que faz parte da Biblioteca Nacional –, tem sido muito prestativo comigo, acredito que isso se deve ao tema de minha pesquisa. Como eu sempre falo, sou uma privilegiada na vida!

A mãe do Juan Pablo me ligou e aí combinamos de nos encontrarmos na própria Biblioteca Nacional. Eles moram pertinho dali. Então Aquiles relaxou um pouco, foi dar o passeio matutino com nossa cachorrinha, preparou junto comigo o café da manhã e as merendas e logo saímos para pegar o metrô e subir até o Foro Libertador, onde fica a Biblioteca Nacional, o Centro Nacional de História e o Panteão Nacional, um dos patrimônios históricos mais importantes do país porque acolhe os restos mortais das nossas principais figuras históricas e culturais, o Libertador Simon Bolívar entre elas.

No Foro Libertador esperavam-nos Juan Pablo e a mãe e a avó dele. Elas estavam contentes de eu dar um passeio com os meninos. Entre papeis, jornais e magazines, Aquiles, Juan Pablo e eu estivemos a manhã toda trabalhando na Hemeroteca; os meninos brincando e explorando os magazines e o scanner do celular e eu revisando e selecionando informação nos jornais, sem chance de ficar lendo muita coisa. O Juan Pablo, curioso pelo que estávamos fazendo, perguntou:

– Mamãe do Aquiles, você é científica?

Sorri. Eu adorei a pergunta dele! Foi tão ingênua e tão franca! Mas a pergunta mexeu comigo: “Como é que ele associa o que a gente está fazendo no arquivo com a atividade científica?”. Adorei!

– Então, Juan Pablo, eu sou pesquisadora e o que nós estamos fazendo aqui é tentando pegar registros que possam nos aproximar ao que aconteceu no Caracaço, um evento do passado recente no nosso país. Você sabe o que se passou no Caracaço?

–Sei não… Mamãe do Aquiles, você é muito “pana[1]!

Eu sorri e perguntei para ele:

– Você acha Juan Pablo? Por que você fala isso?

– É porque eu gosto muito de você.

Sorri de novo e fiquei feliz pela sorte de gerar confiança nos amigos do meu filho.

No meio-dia os funcionários da Hemeroteca deram o aviso do fim do serviço. Acabamos de tirar as fotos das fontes que conseguimos recolher e fomos embora para pegar o metrô até a casa.

Por sorte, o metrô não estava lotado e conseguimos ir sentadxs! Enquanto viajamos até a estação em que tínhamos que descer, eu fiquei com a vista fixa no chão do trem. A maioria das pessoas levavam os sapatos surrados. Se o salário mal dá para as pessoas comprarem algum alimento proteico, calçar sapatos em bom estado tem se convertido num luxo.

Numa das estações entrou um senhor. Ele parecia esgotado. Usava sapatos desiguais, um verde e o outro preto. Em outro momento, isso seria uma coisa muito esquisita…

 


 

NOTAS

[1] “Pana” é uma expressão venezuelana equivalente à expressão “legal” ou “bacana”.

 

 

SOBRE A AUTORA

Livia Vargas González

Venezuelana, militante feminista-marxista, filósofa e mestra em Filosofia e Ciências Humanas pela Universidade Central da Venezuela (UCV), é professora na Escola de Sociologia nessa mesma casa de estudos e, além disso, editora, formando parte do equipe editorial da Biblioteca Ayacucho, uma das mais importantes editoras da América Latina, bem como de El Perro y la Rana e Amalivaca Ediciones. O pensamento de Karl Marx, Jean Paul Sartre, Walter Benjamin e Daniel Bensaïd, fazem parte do seu repertório teórico fundamental, visando a construção de uma proposta teórico política que permita compreender e afrontar os desafios de nosso tempo. É autora do livro Entre libertad e historicidad. Sartre y el compromiso literario (Caracas, 2008), e de vários artigos acadêmicos e de divulgação.

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