Finalmente conseguir ver o filme “Mariguella” no cinema. Já havia recebido cópias pirateadas para ver em casa, mas, essa era a minha opinião até hoje, esse era um filme que merece a experiência única da sala de cinema.

E lá fui eu num shopping center da provinciana cidade onde vivo para prestigiar uma obra em torno desta importante figura do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que, em 1967, rompe com as diretrizes do Partidão, decidindo-se pelo combate armado contra a ditadura militar e criando a Aliança Libertadora Nacional.

Mesmo tais informações básicas não são tratadas de maneira clara no filme. Este se desenrola em tomadas de close, focando ora os rostos dos personagens, ora as reuniões em grupo, mas sempre num registro que eu imagino o diretor pensou ser intimista. Lembra muito um filme controverso, pra se dizer o mínimo, de temática semelhante produzido há algumas décadas o “O que é isso companheiro?” (1997, dir. Bruno Barreto).

Quer dizer, não se trata de uma biografia de Marighella, nada se sabe de sua atuação como deputado, de suas três décadas de militância no PCB até o golpe militar. Aliás, nem se fala em PCB, PC do B, PDT e outros partidos e movimentos que engrossavam a esquerda até o golpe e depois dele. O filme gira em torno de um grupo, sempre assim, num personalismo que parece desprezar, justamente, a história.

O espectador que quiser saber qual era o nome do ditador que estava à frente do poder no Brasil na época do filme, não o saberá pela película de Wagner Moura. Não há contexto histórico. Não há informações sobre a ditadura no país. Há uma repetição nauseante de tomadas de feições, rostos, uma ou outra ação armada, conversas entre o grupo e algumas situações familiares envolvendo violência e tortura, já no final da obra.

O filme esconde nomes, esconde eventos, esconde tudo! O delegado Fleury vira Lúcio. Não há DEOPS, DOPS, SNI, Arapongagem, não há imprensa alternativa, não há governadores de estado, não há políticos, não há militares de alta e média patente e, principalmente, não há empresários. Os Estados Unidos aparecem caricaturados na figura do diplomata cruel e não na forma mais presente que os EUA sempre se fazem presente no mundo: com suas multinacionais, com seu capital empregado, com seu dinheiro financiando os governos através de políticas de parceria em troca de abertura econômica.

A ditadura é a mesma coisa. Um fantasma incorporado na figura de um delegado malvado. Uma sombra, não há cidadãos de bem que defendem a ditadura, não há empresários que a bancam, não há coisas já trabalhadas desde os livros didáticos, como o uso do futebol e das grandes festas como celebração do nacionalismo ditatorial.

Não há os órgãos que apoiaram a ditadura, como a Folha de São Paulo, que colaborou com infraestrutura às ações militares. Esta aí vira uma “Tribuna do Sudeste”, cujo nome e existência, eu desconhecia até então. Também poderiam ser os periódicos “O Globo” ou “O Estado de São Paulo” e outros. Mas o diretor preferiu esconder isso também.

Mesmo no caso emblemático do sequestro do embaixador americano, Charles Burke Elbrik, e a leitura em rede nacional da carta escrita pelos militantes do MR8 e da ALN, o diretor inventou uma TVJ, que eu também desconhecia até então. Seria a Rede Globo de televisão? Pergunto, a quem interessa esse jogo de esconde/esconde, a essa altura do campeonato?

Seguramente, uma pessoa muito bem informada sobre a história da ditadura no país, talvez, visse algum valor em ficar duas horas e meia envolto em dramatismos pessoais imaginados pelo diretor e daí tirar talvez algum sentimentalismo convencional.

Como a história é, mais do que nunca, um campo de batalha na realidade brasileira, e tal pessoa bem informada sobre a história da ditadura no país é coisa muito rara e eu me incluo fora desses, o filme é um desastre. As fotos do assassinato de Marighella foram divulgadas na capa da revista Veja. Por que não utilizar todo esse material riquíssimo e pouco divulgado? O realismo de Wagner Moura é irrealista, tem fobia dos fragmentos de realidade que nos chegaram. Que não são poucos, aliás.

Todos esses personagens, nomes, empresas, canais que estruturaram a ditadura ainda estão aí. Dão concretude à continuidade da ditadura, fazem parte da história e precisam ser colocados e tematizados em um filme dessa magnitude.

Seria o claudicante Wagner Moura preocupado em acender uma vela para o diabo e outra para o santo, como dizia a voz popular? Quer dizer, não quer se comprometer com essa gente poderosa que pode lhe abrir os caminhos ou lhe fechar as portas.? Ora, o preço disso é uma obra insossa e que se passa em qualquer lugar, menos no Brasil.

E aí chegamos em outro ponto. Wagner Moura é um excelente ator que se notabilizou por um filme que, este sim, conseguiu realizar algo muito significativo na história do Brasil: a euforia fascista em torno do capitão Nascimento. Sucesso total. Sua linguagem foi empregada nos vários campos da cultura, seus valores da tortura e violência celebrados, esse filme conseguiu muito. E o bolsonarismo não deixa de ter nele uma de suas fontes estéticas, por assim dizer.

Sem chance de isso acontecer com o “Marighella” no mesmo sentido para a esquerda. Wagner Moura constrangido quer fazer a esquerda cantar o hino nacional. Numa solução patética de querer reivindicar os símbolos do fascismo atual numa espécie de nacionalismo sobranceiro para “nós” também. Ora, Wagner, os símbolos nacionais sempre serão idolatrados pelos nacionalistas, pelos homens do poder. Podemos até nos comover, vendo uma bandeira ali, especialmente em situações de disputas, jogos, olimpíadas etc. Mas a coisa para por aí. No Ocidente e no Oriente, onde houve movimentos de contestação, de lutas, de esquerda ou não, mas com ímpetos libertários, sempre houve uma profusão de canções, cânticos, hinos, ritmos e músicas que entoaram as lutas libertárias.

Essas canções podem vir de vários lugares, terem vários estilos, várias línguas. A esquerda é internacionalista. Não será cantando o hino nacional que iremos combater o bolsonarismo. Precisamos de Racionais MC’s, de Fela Kuti, de Rage Against the Machine, dos Chico Buarque que rasgam os corações e mais um milhão de artistas.

“O patriotismo é o último refúgio do Canalha”, já dizia o dr Johson há séculos. Isso significa que quando o sujeito não tem mais nenhum argumento, ele apela para o nacionalismo, para o patriotismo. Por exemplo, nosso governo não tem nada a defender de positivo em seu governo então ele se esconde no “Brasil acima de Tudo”. Não precisamos disso. Marighella aguarda uma obra a sua altura e principalmente à altura de sua coragem.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Capa da revista Veja, 1969.

 

 

 

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