Filosofia e Teologia de Alexandre Cabral com Mestre Malandrinho da Umbanda

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O livro Teologia da malandragem: a arte de viver segundo Mestre Malandrinho da Umbanda foi publicado no final do ano de 2019. Nele, a partir de entrevistas com o guia espiritual Mestre Malandrinho da Estrada que se manifesta através da Mãe de Santo Viviane de Oxum, o autor apresenta e analisa a biografia e os ensinamentos dessa entidade, assim como algumas das principais características da Umbanda e as diferentes relações que as demais religiões mais populares do Brasil estabelecem com a vida, a morte e os valores morais. A obra foi escrita por Alexandre Marques Cabral, professor de filosofia da UERJ e do Colégio Pedro II, doutor em teologia pela PUC-RJ, doutor em filosofia pela UERJ e também pastor presbiteriano da Igreja Reformada Ecumênica.

“Toda religião só tem sentido porque produz sentido para a existência humana”, afirma o autor no começo do livro. No entanto, o sentido produzido nem sempre é benéfico para o devoto e para aqueles que convivem com ele. Muitas vezes a religiosidade acaba servindo como fuga de problemas que precisam ser enfrentados, como meio de alienação da vida de modo geral ou cerceando liberdades e prazeres necessários para a saúde física, mental e emocional. O fiel incauto pode vir a se tornar dependente de lideranças religiosas desonestas e escravo de regras inflexíveis que sequer possuem justificativas minimamente satisfatórias. Muito embora observadores externos possam considerar a Umbanda necessariamente transcendente por lidar com crenças no além-túmulo e valores morais absolutos, Cabral procura mostrar que a arte de viver professada por ela é imanente, voltada para “o aqui e o agora” e para a harmonia das relações interpessoais, tendo a prática do amor e da caridade como fins em si mesmos e não como meios oportunistas para obtenção de pretensas recompensas futuras.

Alexandre Marques Cabral apresenta a instigante teoria de que a Umbanda pode ser encarada como um “teatro religioso do oprimido”. Não devido a qualquer tipo de simulação ou fingimento, mas pelo embate pedagógico que enseja. Como se sabe, o Teatro do Oprimido foi criado por Augusto Boal em sintonia com a proposta educacional de Paulo Freire e tem por objetivo possibilitar transformações sociais e práticas libertadoras protagonizadas por classes sociais oprimidas. E praticamente todas as entidades de Umbanda se apresentam como personagens oprimidos da história brasileira: negros escravizados, indígenas, ciganos, marujos, boiadeiros, malandros, crianças, mulheres independentes e de personalidade forte, etc. Ou seja, personagens socialmente silenciados e invisibilizados tem protagonismo. Adquirem voz ativa, aconselham, se expressam livremente e conduzem o ritual. Neste sentido pode-se dizer que diversas dessas cenas religiosas dos “oprimidos desencarnados” com os “opressores encarnados”, durante os rituais e consultas, adquirem contornos pedagógicos enquanto fonte de conscientização libertadora, o que contribui para explicitar e desconstruir preconceitos seculares.

Mestre Malandrinho da Estrada trabalha na linha espiritual do Orixá Exu. Ainda hoje há muita incompreensão e prejulgamento ao se relacionar Exu a demônios do cristianismo. Isso ocorre até mesmo em alguns cultos afro-brasileiros que agregaram a doutrina de Allan Kardec e o catolicismo às suas práticas espirituais, por exemplo. No entanto, Umbanda, Espiritismo e Catolicismo propiciam experiências com o sagrado distintas entre si. O deus africano Exu não se pauta pelo maniqueísmo judaico-cristão de religiões europeias nem pelos nossos referenciais de lógica e temporalidade ocidental moderna. “Exu faz o erro virar acerto e o acerto virar erro”; “matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”; “sentado, sua cabeça bate no teto; de pé, não atinge nem mesmo a altura do fogareiro”; “transporta o azeite em uma peneira e ele não escorre”, são alguns dos ditos populares a respeito desse controverso Orixá. Aos nossos olhos colonizados Exu aparenta ser paradoxal, ambíguo, imoral, inconsequente, zombeteiro e tendemos a tomar tais características como incompatíveis com elevação espiritual e, portanto, negativas em contextos religiosos. Alexandre Cabral enfatiza, no entanto, que as casas espirituais dirigidas por Mãe Viviane de Oxum são bastante conscientes e respeitosas com relação à herança africana de sua tradição religiosa. Exu é cultuado como movimento, comunicação, ânimo, criatividade, alegria, prazer, fonte de vida. E tais atributos do Orixá Exu guardam estreita relação com o trabalho desenvolvido por Malandrinho da Estrada e com a história de sua vida quando encarnado.

José Miguel teria nascido no Rio de Janeiro do fim do século XIX. Filho de uma prostituta negra, pobre e ex-escrava com um de seus clientes branco e de boa condição financeira que se recusou a assumir sua paternidade. Sua mãe morreu no parto e José Miguel foi adotado pela dona do cabaré onde ela trabalhava. Quando cresceu se tornou discípulo do famoso capoeirista Prata Preta e passou a usar golpes de capoeira para cometer crimes diversos, até que foi assassinado por uma ex-amante branca de família rica e tradicional, revoltada pelo fim do relacionamento entre eles. Mestre Malandrinho da Estrada afirma que quando viveu sob o nome de José Miguel praticou muita “malandragem desonesta” através de trambiques, roubos e assassinatos. Depois do desencarne sofreu bastante até que se decidiu a praticar “malandragem honesta” como guia espiritual. E ao menos desde 2006 uma de suas principais parceiras nessa tarefa é a Mãe de Santo Viviane de Oxum.

Viviane de Oliveira dos Santos é filha, neta e sobrinha-neta de Mães de Santo. Desde que nasceu foi criada na Umbanda e no Candomblé. Por influência de seu marido da época, passou a frequentar cultos evangélicos e veio a se tornar pastora neopentecostal. Acabou se desiludindo com essa religião principalmente pela falta de compaixão da maioria das lideranças evangélicas com as quais conviveu que pareciam mais interessadas em cobrar dízimos do que em zelar pelo bem estar de suas comunidades que passavam por sérias dificuldades financeiras. Depois de alguns anos acabou retomando sua trajetória ancestral nos cultos afro-brasileiros e, com o passar do tempo, se tornou Mãe de Santo de uma casa de Umbanda (Centro Espírita Vovó Cambinda do Cruzeiro das Almas) e de uma casa de Candomblé (Ègbé Awó Omo Òsún) na cidade do Rio de Janeiro. Desde a inauguração de seu Centro de Umbanda, em 2006, Viviane incorpora o Mestre Malandrinho da Estrada. Através do corpo dela, ele periodicamente volta à Terra para sambar, gingar capoeira, beber, fumar, comer petiscos, seduzir e, sobretudo, aconselhar, orientar, compartilhar suas experiências de vida e de morte e ensinar sua preciosa “Arte de Viver”.

O diminutivo “Malandrinho” do nome do Mestre indica humildade ao se colocar como aprendiz na difícil arte da malandragem honesta de que se fez porta-voz nos planos astral e físico. Sua fala é horizontal e não de cima pra baixo, sempre enfatiza que aprende tanto quanto ensina através de suas frequentes conversas com encarnados. Sua arte de viver consiste em uma proposta de espiritualidade para o cotidiano. É uma malandragem modesta que não se trata de passar a perna nos outros para “se dar bem”, como se os outros fossem otários e meros objetos para satisfação de seus desejos. Respeita as individualidades e vontades das outras pessoas, mas também não é otário nem admite ser tratado como objeto ou meio para outros fins. Não usa o outro nem se deixa usar, mas estabelece relações fraternas de amizade, camaradagem e parceria. Ensina que é preciso ginga e malandragem para driblar certos ataques, problemas e adversidades sem recorrer à vingança nem alimentar ressentimentos. Sua arte de viver também fala em amar a liberdade, não se deixar escravizar por nada nem ninguém, manter a cabeça erguida. Malandragem honesta para ele consiste em se autoconhecer e se autocriar como singularidade, em seguir o próprio caminho. Tornar a vida livre, autêntica, respeitosa, bela e única.

Teologia da malandragem: a arte de viver segundo Mestre Malandrinho da Umbanda é uma obra surpreendente. Livro escrito por um pastor presbiteriano e professor de filosofia a partir de entrevistas com um guia espiritual de Umbanda. Além das pesquisas que fez a respeito da religião, daquilo que aprendeu com lideranças espirituais, frequentadores e entidades da Umbanda, Alexandre Cabral também compartilha com os leitores muito de suas próprias vivências e referenciais teóricos. Martin Lutero, Márcio de Jagun, Michel Foucault, Paulo Freire, Pierre Hadot, Rubem Alves, Judith Butler, Leonardo Boff, Angela Davis, Pierre Verger, Sojourner Truth, Albert Camus, Grada Kilomba, Reginaldo Prandi, Joice Berth são alguns de seus interlocutores mais recorrentes ao longo desse livro. Trata-se de uma obra importante não apenas pelos registros históricos inéditos e pelo fértil debate filosófico e teológico que fomenta, mas também adquire grande relevância política por ter sido publicado neste triste momento da história brasileira em que tantos ataques verbais e físicos tem sido perpetrados contra as religiões de matriz africana.

Nas palavras de Viviane de Oxum, Mãe de Santo do Ègbé Awó Omo Òsún e do Centro Espírita Vovó Cambinda do Cruzeiro das Almas, em sua apresentação ao livro:

Por meio de várias entrevistas com Mestre Malandrinho e ampla pesquisa, Alexandre mostrou que, para esse guia de Umbanda, ser malandro não é “passar a perna nos outros”, mas ter ginga para derrubar desafios e adversidades, dores e injustiças, sem machucar pessoas. Além disso, ser malandro é ser capaz de respeitar os outros e a si mesmo, sabendo ser autentico, sem ser indiferente aos demais e sem ser escravo de ninguém. Onde há malandragem, a liberdade tem que ser plena. Disso surge a teologia da malandragem. Nela, a divindade aparece em toda forma de existência na qual a vida em sua integralidade é plenamente vivida. Mestre Malandrinho é mestre nessa arte: aquela que faz a vida valer a pena, ainda quando os sofrimentos e injustiças parecem impedir de celebrar a existência. Ele não é demônio, nem espírito involuído, mas um artista da existência, que nos excita e incita a viver a vida de modo belo. Salve a malandragem!

 

 

 

 


REFERÊNCIAS

CABRAL, Alexandre Marques. Teologia da Malandragem: a arte de viver segundo Mestre Malandrinho da Umbanda. Rio de Janeiro: Via Verita, 2019.

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação. Editora Viaverita.

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Tiago Barros

Doutor em Filosofia pela UERJ e professor de Filosofia do IFRJ.

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