O Caderno de Memórias Coloniais foi lançado em Portugal em 2009 e foi recebido com elogio de crítica e acolhido por intelectuais como Mia Couto. A primeira edição brasileira foi publicada em 2018, pela Todavia. Retorno a esse poderoso livro agora, após algum tempo desde a primeira leitura, porque algo nele me remete fortemente ao nosso presente, algo sobre como a memória de processos traumáticos e a tomada de uma posição ética face aos acontecimentos da história se faz necessária para que possamos encontrar alguma reconciliação, nem que seja com nós mesmos.

Isabela Figueiredo, nascida, em 1963, em Moçambique e “retornada” a Portugal, em 1975, entrega nessas páginas uma história de amor e traição, de encontro e desacordo com aquele que era “corpo de seu corpo”, sua terra, seu pai. A Isabela autora e personagem é filha de colonos em território africano, onde a pequena teve acesso à “boa vida” que os portugueses desfrutavam em África e – como uma boa narradora-personagem que não faz rodeios em moldar-se a si mesma – se apresenta como uma criança de sensibilidade aguçada, que percebia que seu regalo era a outra face  da exploração e violência contra os negros, originais donos das terras que então eram o orgulho dos feitos portugueses.

Contudo, saber essa realidade e se reconhecer como parte dessa verdade chamada colonialismo não foi uma jornada pacífica. Ainda mais quando, no cerne dessa experiência, emerge o amor pueril, gratuito e indelével entre filha e pai. É o mesmo amor ao pai que exige essas memórias, para lembrá-lo, vivê-lo de novo e tornar a sentir sua presença. Mas a memória tem um preço. O pai, um eletricista que nunca desfrutou riqueza, mas como gostava de sublinhar, vivia com condições “remediadas”, era um colono português em Moçambique, a ganhar o sustento metido em obras e construções, liderando grupos de trabalhadores, explorando os pretos, colocando-os em seu devido lugar, superando dia e noite sua preguiça e lascívia, civilizando-os.

A autora, a dona de tais recordações, sabe bem os meandros da memória, reconhece que não existe lembrar que não se renda ao esquecer e compreende que, na tessitura da escrita, vida e narrativa se fundem em literatura.

Escrita de si, autobiografia, autoficção. A autora não se ocupa com rótulos. A nós também importam menos. Nos interessa, outrossim, o papel que a memória exerce nesse vir a ser da consciência de si, afinal, a memória – que é sua história de amor paternal – é também a sua traição. Pois o que a memória tem a contar sobre seus anos em Lourenço Marques não é a versão que seus pais e vizinhos lhe enviaram em bilhetes a Portugal, após sua escapada por causa da Guerra de Independência de Moçambique. Seu Caderno de Memórias Coloniais, escrito aos causos, assim como opera em liberdade a memória, é sua traição. Trai o discurso da virtuosa colonização portuguesa, trai a ideologia do fardo civilizatório do homem branco, trai a mentira da superioridade européia e trai seu falecido pai, que como disciplinador dos pretos e possivelmente abusador das pretas, acerta as contas com o passado.

Retrato do imperialismo? Assim poderia o ser. Esse livro me desperta afetos, todavia, pela imbricada relação entre memória e história, amor e reparação. O relato de Figueiredo – que é uma maneira de vir a ter novamente com o pai – não pode deixar de considerar o que ocorreu ali. Memória e história dos continentes Africano e Europeu no século XX, marcadas pela colonização e exploração dos africanos pelos europeus, alicerçada no racismo, no segregacionismo, na exploração, na violência e no apagamento dos povos, línguas, culturas e religiões africanas.

Mas a traição se faz necessária. Como a escritora diz, “o traí para que pudéssemos levantar a cabeça”. Que por aqui, em terras brasileiras, nossa memória da escravidão, do genocídio dos povos originários, do machismo, dos regimes ditatoriais, das ondas fascistas e da necropolítica de cada dia também possa produzir em nós esse reencontro com nossa história. E que depois do ódio, possamos juntos levantar a cabeça.

 

 

 


*O título do texto é uma referência direta ao álbum “Canções para depois do ódio”, lançado pelo grande compositor Marcelo Yuka.

 

 

 


Créditos na imagem: Arquivo pessoal Isabela Figueiredo.

 

 

 

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