Saberes filosóficos de Axé e a narrativa de origem do Ilê Omin Otá Odara

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Através dos saberes filosóficos de axé apresentados na narrativa de origem do Ilê Otá Omin Odara soprado pela Iyalorixá[1] Marlene de Oxalufan e com base no cruzo e entre o ancestral e o contemporâneo, iremos propor um giro epistêmico considerando a força da palavra falada, vislumbrando um outro horizonte filosófico como forma de propagar epistemologias outras nos variados âmbitos de produção de conhecimento, pois:

No sentido mais geral, o termo filosofia designa a busca do conhecimento, a qual se iniciou quando os seres humanos começaram a tentar compreender o mundo por meio da razão. O termo pode também definir o conjunto de concepções, práticas ou teóricas, acerca do ser, dos seres, do home e seu papel no Universo (LOPES e SIMAS, 2020, p.49)

Dito isto, iniciamos com o princípio do axé/força vital, que está presente em tudo que é vivo e que existe, pois, o axé está presente nas plantas, nas águas, nas pedras, nas pessoas, nos animais, no tempo, ou seja, tudo é sagrado e está em constante interação com o mundo, o que permite que tenhamos olhares e ações diferenciadas com todos os seres que vivem ao nosso redor (TRINDADE, 2005), compreendendo que:

A expressão “Força Vital”, sempre presente nas teorizações sobre filosofias africanas, designa o fenômeno responsável pela vida existente no Universo visível e invisível e pela sua manutenção. Todos os seres do Universo possuem sua própria Força Vital; ela é o valor supremo da existência. Possuir Força Vital é a melhor maneira de possuir felicidade e bem-estar (LOPES e SIMAS, 2020, p.28).

Ao transitarmos pelas rotas cruzadas no Atlântico percebemos que para reivindicarmos os saberes filosóficos de axé precisamos forjar um giro epistêmico de entendimento e construção de saberes, compreendendo que não existe nada novo que não precise recorrer ao fundamento para existir:

Afinal, a problemática epistemológica é necessariamente étnico-racial, o saber manifesta-se na medida em que há um ser que o encarna. Garantir a presença, a multiplicidade de sabedorias de presenças (corpos) é também investir na multiplicidade de sabedorias que os montam (SIMAS e RUFINO, 2018, p.111).

Na tradição africana os orixás são seres que possuem personalidades e histórias próprias, Oxalufan simboliza o fim do círculo e o recomeço, seria a versão mais velha e sábia de Oxalá, ancestralidade presente na Iyalorixá Marlene Rodrigues Medrado uma mulher negra, mãe, amiga, companheira, professora por formação e Iyalorixá por determinação dos orixás. Zeladora do Ilê Omin Otá Odara, A Casa da Força das Águas e da Pedras Encantadas que foi aberta ao público em 19 de outubro de 2013, iremos mostrar a narrativa de origem do Ilê baseada na prática e na experiência, compreendendo que o conhecimento transmitido oralmente deve ser preservado no ancestral e transmitido no contemporâneo:

Esse nome foi dado por minha navalha, o Babalorixá José Flávio Pessoa de Barros de Oxaguian, do Ilê Asé Omí Iwyn Odara, que por sua vez, foi iniciado por Iyá Nitinha de Oxum do Ilê Asé Iyá Nasso Oká, mais conhecido como a Casa Branca do Engenho Velho, uma das mais tradicionais Raízes de Ketu.

A “Casa da Força das Águas e dos Lindos Espíritos das Árvores” plantou a “Casa da Força das Águas e das Lindas Pedras Encantadas”, na mesma cidade, em Cachoeiras de Macacu no Rio de Janeiro.

O Ilê foi aberto pelas mãos de Iyá Débora de Oxum – Iyalorixá de Asé Iyá Nasso Oká Ilè Osum, sucessora do Asé de Miguel Couto deixado por sua avó Iyá Nitinha de Oxum e hoje, a minha zeladora. Emoção que não tenho como descrever!

Muitos foram os momentos que as lágrimas vieram, mas, tentei ser forte como o Jequitibá que existe na região.

O dia amanhecia em 18 de outubro e fui levada por um irmão Egbomy Luís Filipe de Oxaguian junto com meu Hungbóno e minha mais velha de Oxum para o Ilê.

E lá chegando meu Hungbóno Ronaldo de Exu foi quem tão bem conduziu o administrar da casa para receber Miguel Couto.

Ao ver Ekede Jussara entrar no portão com a pequena Sara e minhas mais velhas Egbomy Eliete de Oxumaré e Egbomy Fátima de Oxum foram sinônimo que o momento era aquele.

A Ekede da Oxum de Mãe Nitinha e a energia da Egbomy Eliete de Oxumaré me deixaram sem voz. Miguel Couto havia chegado. Daquele momento em diante, eles receberam as chaves da casa.

Foi tudo muito rápido e o “Igbin Atômico” de Meu Pai estava lentinho e lerdo, mal mexia a cabeça.

Foi chegando aos poucos, o primeiro Ogum, o primeiro Oxaguian, minha única Yao, as minhas Ekedes e um pouco depois minha Iyá Débora e Vó Florzinha com a corte do Bori. Nesta hora eu não vi mais nada. Um turbilhão de lembranças e um sem saber onde colocar as mãos (TEXTO DA IYALORIXÁ MARLENE DE OXALUFAN PUBLICADO EM 19/10/2013).[2]

A narrativa da Iyalorixá Marlene é atravessada pelos caminhos do valor supremo da existência que é a força vital que conecta todos os seres do universo, enfatizando a importância da ancestralidade como valor civilizatório afro-brasileiro (TRINDADE, 2005) onde percebemos a necessidade de cruzar o novo com base na história e na memória, pois a palavra possibilita refletir o passado no presente, pois:

A palavra que tira do sagrado seu poder criador e operativo, está em relação direta tanto com a manutenção quanto com a ruptura da harmonia, no ser humano e no mundo que o cerca (LOPES e SIMAS, 2020, p.43).

Os saberes filosóficos de axé presentes na narrativa de origem do Ilê Omin Otá Odara, nos remonta a necessidade de pensar sobre o originário através de uma riqueza de detalhes, compreendendo a importância de ressaltar que os mitos de criação representam um papel importante na interpretação simbólica dos elementos do universo, e que:

No pensamento original africano, um ser – seja ele espírito, seja ele vivente, atuando sobre um animal, um vegetal ou um mineral – é capaz de influenciar indiretamente outro ser. A resistência a eessa ação também só é obtida pelo fortalecimento a energia vital, recorrendo-se a outras forças. Para se proteger contra a perda ou diminuição da energia vital por ação direta ou indireta de outros seres, a pessoa deve recorrer a forças que possam revigorar sua própria força individual. Tais forças são as energias das divindades e dos espíritos dos antepassados. Chega-se a elas por meio do culto ou ritual destinado a propiciar o revigoramento (LOPES e SIMAS, 2020, p.29).

A importância das narrativas de origem se dá pelo fato de fazerem parte das culturas de axé, que são plurais, coletivas e da cooperação, por isso é tão importante repensar e reconquistar nossas narrativas através da palavra, para compreendermos nossa história, refletindo em/sobre comunidade, diversidade e em grupo, ressaltando nossos saberes filosóficos ancestrais e contemporâneos.

O princípio do axé que é essa força vital que nos permite ter vontade de viver e aprender com vigor, nos dá alegria e brilho no olho, em nada se assemelha as normas, burocracias, métodos rígidos e imutáveis, pelo contrário, tudo é uma possibilidade para quem é guiado pelo axé, pois:

Em síntese, o ser humano tem um relacionamento com o real fundamento na crença em uma Força Vital – que reside em cada um e na coletividade; em objetos sagrados, alimentos, elementos da natureza, práticas rituais; na sacralização dos corpos pela dança, no diálogo dos corpos com o tambor – que deve ser constantemente potencializada, restituída e trocada para que não se disperse (LOPES e SIMAS, 2020, p.29).

Se entendemos que tudo que está neste plano terreno é sagrado, compreendemos que na tradição africana a palavra falada, além de possuir um valor fundamental, também possui um caráter sagrado que se associa à sua origem divina, pois as narrativas de origem são ao mesmo tempo conhecimento, aprendizado, história e filosofia.

 

 

 


REFERÊNCIAS

LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Filosofias africanas: uma introdução. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.

TRINDADE, Azoilda Loretto da. Valores Civilizatórios Afro-brasileiros na educação infantil. MEC− Valores afro-brasileiros na Educação. Boletim, v. 22, 2005.

 

 

 


NOTAS

[1]  Ialorixá, Yalorixá ou mãe de santo, cargo designado sacerdotisa de um terreiro, seja ele de Candomblé, Umbanda ou Quimbanda.

[2] Texto disponível em: < https://ileotaodara.com.br/2013/10/19/abertura-do-ile-axe-omin-ota-odara/>. Acesso em 04 de junho de 2021.

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução. Acervo pessoal da Iyalorixá Marlene de Oxalufan.

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Gisele Rose da Silva

Possui Bacharelado e Licenciatura Plena em Filosofia pela UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro (2003) e Especialização em Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo pelo IPPUR-UFRJ. Mestre em Relações Étnico-Raciais pelo CEFET-RJ e Pós-Graduada em Gestão Escolar (Administração, Supervisão, Orientação e Inspeção). Trabalha como professora de Filosofia para Ensino Médio. Possui experiência nas áreas de: Filosofia, Sociologia, Educação e Relações Étnico-Raciais.

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