Não havia arte em Lascaux: considerações acerca do valor de culto benjaminiano em As mãos negativas, de Marguerites Duras

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“Eu sou aquele que chama

Eu sou aquele que chamava e gritava há trinta mil anos

Eu te amo

Eu grito que vou te amar, eu te amo

Amarei quem quer que ouça que eu grito”

Marguerites Duras

 

“Eu-te-amo não é uma frase: não transmite um

sentido, mas se prende a uma situação limite:

‘aquela que o sujeito está suspenso numa

ligação especular com o outro’. É uma

holófrase[1].”

Jacques Lacan

 

 

Este curtíssimo ensaio tem como objetivo pensar o curta-metragem As mãos negativas, de Marguerite Duras, à luz dos conceitos benjaminianos de valor de culto (Kultwert) e valor de exposição (Ausstellungswert). Walter Benjamin apresenta seu par de conceitos enquanto dois pólos, como se, numa linha, em que a produção artística iniciou-se com imagens a serviço da magia, a reprodutibilidade técnica representasse justamente a emancipação da existência parasitária da produção artística, até então relegada à sua função ritual, o valor do artefato da reprodutibilidade técnica é senão sua exposição. A nossa aposta é que, se permitimo-nos ver As mãos negativas a partir de Benjamin, conseguimos identificar na especulação poética instaurada por Duras a tentativa de remontar as pretensões mágico-existenciais[2] das mãos gravadas em negativo nas chamadas grutas madalenianas do sul da Europa (das quais Lascaux[3] é a mais conhecida).

Miremos com atenção as considerações benjaminianas acerca daqueles que tentam imputar ao cinema um valor ritual: “É bastante instrutivo ver como o esforço de elevar o cinema à “arte” compele esses teóricos a introduzir nele, com falta de atenção sem igual, elementos de culto” (BENJAMIN, 2017, 294). Benjamin aponta repetidas vezes que a força da obra de arte reprodutível reside na capacidade de fazer as coisas ficaram mais próximas, na destruição da aura, na desvinculação do original, na desinscrição do artefato artístico na tradição, numa preocupação apaixonada das massas, que incessantemente supera o original através da reprodução (BENJAMIN, 2017, p. 286). Dadas tais afirmações, parece difícil que o cinema remonte as pretensões rituais da representação artística neolítica, mas, Duras, ao testar os limites da linguagem cinematográfica parece fazê-lo.

O cinema de Duras é marcado por uma distância abismal entre o audível e o visível, uma certa autonomia entre a imagem, a característica voz em off – aquele registro sonoro que faz parte da cena, mas que não aparece no quadro/enquadramento quando o público a escuta­ – e a música. O papel criativo do espectador é um postulado duraciano. A ele é legado o encargo imaginativo de conciliar o áudio e o som, a princípio desconexos. Benjamin aponta para um grande e insuspeitado espaço de liberdade, que o cinema faz-nos vislumbrar (BENJAMIM, 2017, p. 306-307), segundo o autor, isso dá-se pelas possibilidades técnicas da câmera, que abre pela primeira vez a experiência do inconsciente ótico, e faz com que enxerguemos em ambientes cotidianos, um novo horizonte. Duras parece chegar ao imaginário do espectador, a partir de uma totalidade precária (totalité précaire) (AYER, 2012), com uma imagem que não contradiz o que é dito, tampouco parece de alguma forma afirmá-lo.

Les Mains Négatives é um curta metragem do ano de 1979, em que as ruas de Paris são filmadas em travelling[4] de madrugada até o amanhecer, enquanto a voz em off de Duras diz um texto poético. O texto de Duras versa justamente sobre as chamadas mãos negativas que nos são logo apresentadas, sem que as vejamos: “São chamadas ‘mãos negativas’, as mãos encontradas nas paredes das cavernas madalenianas da Europa sul-atlântica. Estas mãos estavam simplesmente impressas sobre a pedra depois de terem sido contornadas de cores. Normalmente elas eram pretas, ou azuis. Nenhuma explicação foi encontrada acerca de tal prática“. Dada tal fala, a música e as imagens aparecem, a voz em off começa uma investigação poética acerca das condições do homem que teria impresso as mãos negativas.

“Desses produtos, o importante é apenas que eles existam, não que eles sejam vistos” (BENJAMIN, 2017, p. 289), diz Benjamin a respeito da produção artística com valor ritual, admitindo que o homem neolítico deixa seus desenhos (com ênfase aos figurativos), como instrumento ritual. Nesse quesito, Duras atualiza de certa maneira o valor de culto das mãos negativas, que são mantidas em segredo ao espectador, uma vez que elas não são jamais exibidas, mas tão somente descritas. Parece que o valor ontológico das mãos negativas é restaurado como valor, uma vez que, não é importante que elas sejam vistas, mas antes que elas passem a existir, ainda que em nosso imaginário, pelo convite de Duras. A aposta benjaminiana é seguida: o valor de culto como tal praticamente obriga que a obra de arte seja mantida às escondidas (BENJAMIN, 2017, p. 289).

A ausência das mãos descritas, não é suficiente, porém, para justificar que Duras invocaria o valor de culto em seu curta metragem. Resta-nos a pergunta sobre o que é cultuado, ou mais detidamente, o que é presentificado, o que o mirar as mãos negativas dá a ver. Parece ser algo distinto das sugestões benjaminianas para os instrumentos de magia pré-históricos, que serviam à práxis: realização de procedimentos mágicos, instruções a tais procedimentos, objetos de contemplação mágica. Voltemos ao texto de Duras: “Diante do oceano /sob a falésia / sobre a parede de granito / essas mãos / abertas / Azuis / E pretas / Do azul da água / Do preto da noite / O homem veio só à gruta / face ao oceano / Todas as mãos têm o mesmo tamanho / ele estava só / O homem só na gruta olhou / no ruído / no ruído do mar / a imensidão das coisas / E ele gritou / Tu que és nomeada tu que és dotada de identidade / eu te amo” (AYER, 2019, p. 79).

Duras procura “reconstituir” o momento em que um rastro teria sido produzido e legado ao encontro de um destinatário, milhares de anos depois (AYER, 2019, p. 78), o encontro entre o emissor e destinatário, no lugar impossível dos milhares de anos que os separam, o próprio trabalho de reconstrução poética a partir da materialidade da marca das mãos, envia ao quase necessário eu te amo, daquele que deixou uma marca inconfundível de sua humanidade, de sua corporalidade, e que ama imediatamente àquela que a encontrou uma vez que a humanidade ela mesma é o que os liga inalienavelmente. O fato do homem usar pronomes femininos, como aponta Ayer: “[…] não é, aqui, a marca do início da ficção de uma história de amor. É, sim, um retorno ontológico à alteridade. […] A outra é alteridade – não é o mundo, não é um lugar, não é um igual, não é uma personagem de um enredo: é outro corpo, outro ser extenso e exposto, é outra” (AYER, 2019, p. 80). Instaura-se o culto duraciano.

Acreditamos ter exposto as razões que nos levam a pensar que o movimento empreendido por Duras em As Mãos Negativas pode ser vinculado, ainda que longinquamente, ao valor de culto de Benjamin que mobiliza o de uma vez por todas.  À leitora deste texto, pedimos atenção ao fôlego ensaístico que nos anima, que tem força, se é que tem alguma, tão somente por sua pobreza[5] (argumentativa).

 

 

 


REFERÊNCIAS:

AYER, Mauricio. 2012. « «Les mains négatives» ». Dans le cadre de Le cinéma de Marguerite Duras: l’autre scène du littéraire. Colloque organisé par Figura, Centre de recherche sur le texte et l’imaginaire. Montréal, Université du Québec à Montréal, 7 septembre 2012. Document vidéo. En ligne sur le site de l’Observatoire de l’imaginaire contemporain. <https://oic.uqam.ca/fr/communications/les-mains-negatives>.

AYER, Mauricio. Poema como partitura, leitor como performer: outro corpo em outro tempo, em Revista Alea, 2019.  Disponível em: https://www.scielo.br/j/alea/a/G8RCFyfRmmFSnXSRb339Qzb/?lang=pt&format=pdf

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Tradução de Daniel Pucciarelli.  In: O belo autônomo: textos clássicos de estética / organizador Rodrigo Duarte. – 3 ed. ; 2 reimp – Belo horizonte: Autêntica Editora; Crisálida, 2017.

DURAS, Marguerite. As mãos negativas, 1979. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UKr1PvBt7SM&t=171s&ab_channel=JonatanAgra

 

 

 


NOTAS:

[1] É o uso pré-linguístico de uma única palavra para expressar uma ideia complexa

[2] Optamos por “mágico-existenciais” pelo fato de Duras elucidar “Aucune explication n’a été trouvée à cette pratique.” “Nenhuma explicação foi encontrada para essa prática”, quando diz das mãos negativas.

[3] “Nunca ocorreria, devo pensar, aos pintores de Lascaux que eles estavam produzindo arte naquelas paredes. Assim como não havia estetas no Neolítico” (DANTO, 2006, p. 22).

[4] Movimento em que a câmera efetivamente se desloca no espaço. Durante esse movimento ela pode manter a mesma distância e o mesmo ângulo em relação ao objeto filmado, se aproximar ou se afastar do objeto, contornar o objeto.

[5] “Carta de Mozart, a respeito de alguns dos seus próprios concertos (KV 413, 414, 415): “Eles estão no meio exato entre o difícil demais e o fácil demais. Eles são brilhantes…, mas carecem de pobreza”. p.39 In: Notas sobre o cinematógrafo, Robert Bresson

 

 

 


Créditos na imagem: Reprodução: As Mãos Negativas, Marguerite Duras (1979).

 

 

 

SOBRE A AUTORA

Helena de Lima Gualberto Elias

É estudante de filosofia na UFMG, participa como bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) Filosofia, criou e organizou, até então, todas a edições do Cine-Clube que ocorre na UFMG: "3 Filmes Hoje: um antologia fílmica". Pesquisa, atualmente, a "Quinta Meditação Cartesiana", de Edmund Husserl.

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