A obra Democracias Espectrais: por uma desconstrução da colonialidade, publicada pela Editora NAU em 2020, de Marcelo Moraes, propõe, a partir de um pensamento desconstrutor, um olhar profundo sobre a democracia. Marcelo não se dispõe, assim, a dar respostas, a fechar conceitos; ele a todo momento conduz o leitor a fazer perguntas que desconstroem uma visão romantizada e tradicional sobre a democracia. Trata-se de um movimento de plantar a desconfiança, de despertar as perguntas, sem assumir como tarefa o respondê-las; talvez para, conscientemente, não reproduzir a proposta de verdade de uma certa filosofia tradicional. Essa obra nos leva, então, a caminhar pelos percursos indecidíveis da história e da filosofia.
Nesse sentido, o livro não só se refere aos mais diversos tipos de violências – epistêmicas, sociais e políticas – como também traz, ele mesmo, uma violência característica de todo discurso que questiona aquilo que é dado como verdade; o movimento aporético que desconstrói o cânone da democracia não tem como não ser agressivo, não tem como não deixar no leitor um desconforto, um mal-estar.
No entanto, diferente do que muitos possam desavisadamente afirmar, esse movimento não é improdutivo, não se trata de questionar por questionar, não se trata de desconstruir o que está posto desde sempre só por capricho. Não! Os questionamentos que Marcelo propõe, apesar de muitas vezes nos deixar com a sensação de que nunca pensamos sinceramente sobre a democracia, mobilizam no leitor um compromisso, que podemos classificar, pelas suas implicações, como um compromisso radical de buscar atender às demandas da democracia que o autor denomina, como eco de sua formação filosófica derridiana, como uma democracia por vir.
Democracia por vir não diz respeito a uma democracia que vai se presentificar no futuro – a própria noção de presença é desconstruída -, nem a uma democracia que pode ser construída dentro de uma lógica de causa-efeito; mas a uma democracia que, embora nos apresente demandas urgentes, as quais exigem um investimento também radical, nunca se completará, sempre estará em um por vir inalcançável que exige de nós comprometimento social e político.
Ao ler esse livro, percebemos que a violência da exclusão não caracteriza apenas o mundo fora da universidade; mais que isso, ficamos com a sensação de que é no mundo da produção acadêmica que essa exclusão é mais contundente, mais competente e, ao mesmo tempo, mais disfarçada, menos dada ao questionamento. Existe uma violência em uma filosofia que se propõe a estudar uma pretensa verdade e parte apenas dos filósofos europeus, uma violência em uma historicidade que apresenta a democracia apenas como legado ateniense; em uma filosofia que desconsidera o outro que não é europeu, negando seus conhecimentos, sua contribuição, sua cultura, sua arte, sua medicina, suas técnicas. Trata-se da exclusão do outro de forma acadêmica, articulada, com ares de inquestionável, com um léxico filosófico-científico. Mas que, nesse livro, é posta em xeque a partir de uma pesquisa criteriosa e farta de referências bibliográficas tão ricas e objetivas que ficamos sem entender onde tudo isso se escondia, que mecanismo tão poderoso foi capaz de produzir séculos de filosofia e história da democracia, apagando essas marcas de forma tão efetiva.
Para aqueles que insistem em uma teleologia em tudo que reflete e estuda, é desse ponto que podemos extrair a “produtividade” dessa obra. Isso se dá porque só somos levados a querer estudar mais profundamente algo quando percebemos que o conhecimento que achávamos que tínhamos era um meio-conhecimento, um conhecimento que se fazia universal quando na verdade consistia apenas em uma fração da episteme, uma fração que se instituía como um inteiro por meio de uma repetição que se pretendia mantenedora, mas que nela mesma trazia sempre algo novo.
A filosofia ubuntu com que Marcelo fecha esse livro com a sua premissa do “uma pessoa só é uma pessoa através das outras”, com o entendimento de que todos os seres estão de alguma forma interligados, pode ser identificada não apenas no quinto capítulo, mas em todos os quatro capítulos anteriores. Essa preocupação com o outro/leitor se exemplifica logo na dedicação do autor em um longo primeiro capítulo em que, generosamente, municia o leitor de referenciais importantes para o entendimento de sua reflexão. Esse capítulo traz de forma pormenorizada e paciente um entendimento sobre as noções de espectrabilidade e repetição/iterabilidade. Sem essas noções, toda a leitura subsequente estaria comprometida.
Percebe-se essa visão do outro também nos questionamentos que o filósofo nos apresenta sobre quem de fato pode se configurar como “besta”, quem é o monstro, quem é o selvagem. E também nas noções de “hóspedes” e “intrusos”. A todo momento, Marcelo nos leva a pensar a alteridade como necessária a qualquer subjetividade, no sentido de que, em um movimento de différance, a minha subjetividade só é possível na relação com o outro; aniquilá-lo constitui a minha própria aniquilação.
Um aspecto negativo que talvez possa ser apontado nesse livro é o fato de que o autor é repetitivo nas suas colocações. No entanto, o que parece se configurar na retórica de Marcelo Moraes é aquilo que ele mesmo nos apresenta no início do livro, a repetição. O movimento do discurso nesse texto é o movimento da iterabilidade. O leitor atento vai notar que, a cada aparente repetição de conteúdo, o autor nos traz algo que ele ainda não havia dito. O mesmo ocorre com as citações; cada uma parece ter um porquê seja pelo seu conteúdo propriamente ou pela importância de trazer aquele autor naquele momento do texto. Enfim, essa dinâmica da repetição borra a separação entre prática e teoria, na medida em que Marcelo performatiza o conteúdo do seu texto na sua escrita. Dessa forma, o texto se configura como um meta-texto, um texto que descreve aquilo que em si mesmo se efetiva.
Nessa mesma dinâmica da repetição, Marcelo reitera ideias, trazendo para seu texto outros gêneros textuais, tais como o gênero poesia com versos como os de Manuel de Barros e o gênero dramático em referência a textos teatrais de Shakespeare e de Artaud; além de aludir a textos cinematográficos, fazendo pontes com filmes de Charles Chaplin, Elio Petri, Lars Von Trier entre outros. Todas essas referências trazem para a obra uma riqueza cultural que pode levar o leitor a intertextualidades que propiciam um diálogo com produções artísticas, enchendo de vida o texto acadêmico e se apresentando elas mesmas como verdadeiros tratados filosóficos, que em muitos sentidos lançam também sobre o mundo um olhar profundo e desconstrutor.
Relevante também ir para o texto, buscando relacionar as partes do título e o seu gráfico na capa, em que as letras são escritas com sombras delas mesmas, em referência a uma espectralidade. Importante perguntar-se qual seria a conexão entre as democracias espectrais e a proposta de desconstrução da colonialidade. Essas mesmas democracias, que Marcelo descreve como as democracias que espectram a Europa, no que se refere a seu desenvolvimento em muitas áreas – destacando aqui o âmbito político -, espectram a democracia que se convencionou definir como nascida na Europa. Em um movimento de desconstrução da noção de origem em oposição a uma noção de cópia, o autor nos leva a refletir sobre de que forma a filosofia e a política do continente africano espectram a filosofia e a política do continente europeu. Isso se dá, segundo Marcelo, porque constam registros de visitas de filósofos, matemáticos e homens europeus de outros ofícios ao continente africano, onde provavelmente tiveram contato com muitos elementos que levaram em sua bagagem no retorno ao seu continente e que lá esses elementos se hibridizaram, foram reinterpretados e produziram muitos frutos; influência que é apagada nos livros escolares e nos discursos tradicionais da academia.
Esse movimento de colonização de saberes se repete no decorrer da história em muitas estratégias que são análogas às atitudes de colonizadores no encontro com habitantes do espaço que transformariam em seus espaços, em suas colônias, de forma autoritária, etnocêntrica e violenta. Quando estudiosos viajantes europeus vão ao Egito e lá aprendem sobre a arte da política e de outras áreas, voltam para seu continente e essa troca não é devidamente registrada, ou seus registros são relegados; permite-se que a Europa floresça como se só dependesse dela mesma para se desenvolver. Esse mesmo movimento ocorreria séculos à frente. O europeu invadiria, mataria e saquearia bens, força de trabalho e também conhecimento e arte desses povos. Mas não se trata apenas de espoliar; vai muito além disso. Trata-se de levar o que aprende com o outro, as suas riquezas concretas e subjetivas e, em momento algum, assumir essa influência inegável no próprio “progresso”. Diz respeito a se apropriar e, ao mesmo tempo, apagar a troca; trazer e se declarar proprietário desses bens materiais e imateriais sem, contudo, dar relevância ao fato de que aprendeu com o outro.
Ao pesquisar o quanto a política egípcia espectrou a política ateniense, considerada berço da democracia, Marcelo nos traz um rico material sobre a cultura e os costumes egípcios, tirando o seu leitor de um ciclo vicioso de afirmações cuja única sustentação é o fato de que elas são reiteradas desde sempre no nosso mundo ocidental, como se não fossem passíveis de questionamento. A desconstrução da colonialidade a que se refere o título do livro tem efeito no instante em que o autor nos apresenta um Egito para além da aura folclórica em que o ocidente envolveu essa civilização. O autor traz para nosso entendimento os períodos intermediários, fases da história do Egito em que não existia a figura do Faraó como aquele que coordenava e orientava com mão forte todos os movimentos do país. Foram períodos em que os pesquisadores descrevem uma descentralização do poder e uma política próxima, em muitos momentos, ao que conhecemos hoje como governo representativo.
Como o próprio filósofo nos diz na introdução, esse livro é “o esgotamento de uma tese de doutorado”, despertando com esse significante “esgotamento” uma multiplicidade de sentidos que vai desde uma exaustão pela profundidade do que ele nos apresenta e por todo o esforço dedicado à construção de mais de trezentas páginas de muita força e intensidade, até a ideia de que sua tese foi despejada nesse livro como as águas de um rio são esgotadas no mar. Tudo isso pode nos dar a impressão de ponto final, mas esperamos que o autor siga produzindo reflexões que nos movam a aporias que transformem o pensamento, que nos faça entender que precisamos abrir mão da fixidez, do imutável porque não passam de ilusão. Precisamos considerar os espectros, precisamos saber conviver com eles, precisamos perceber a força que eles nos trazem, levando-nos a um entendimento de que tudo é passível de ser desconstruído, isto é, pensado de uma outra forma, entendido a partir de outras possibilidades, o que nos tira o conforto e a segurança, mas nos dá enriquecimento de reflexões e ações.
Enfim, trata-se de uma obra que não se prende apenas a apontar os limites e os paradoxos da democracia. Diz respeito a um texto que nos leva a refletir o quanto a democracia em que pensamos viver não passa de um arremedo de democracia. Não que o filósofo queira afirmar a existência de uma democracia original, passível de ser reproduzida em algum momento e em algum lugar. A questão é que acreditar que se vive em uma democracia plena e impor esse modelo para outros povos é ficar alheio ao acontecimento da desconstrução a que essa democracia, como tudo o mais, está sujeita. Esse é o movimento que Marcelo nos traz de forma tão relevante e rica nessa obra. Um livro que tem o potencial de trazer a escritura de um compromisso acadêmico e pessoal do autor com uma desconstrução da colonialidade, que corresponde ao questionamento de verdades instituídas, em prol de uma abertura que se propõe contínua e indecidível.
Créditos na imagem: Divulgação. NAU Editora.
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