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Humanidades e dissonâncias

Ninguém está entendendo nada: tropicália, hostilidade e técnica*

“…Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. […] Nós, eu e ele (Gilberto Gil), tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem… se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! Junto com ele, tá entendendo? […] Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É assim que eu quero ver.”

(Discurso de Caetano Veloso durante a apresentação de “É Proibido Proibir”  quando o público lhe deu as costas em 1968 no III Festival Internacional da Canção, Fase Nacional – TV Globo. O júri deu o primeiro lugar à “Sabiá”, de autoria de Chico Buarque e Tom Jobim.  “Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores” de Geraldo Vandré ficou em segundo lugar.)

Caetano Veloso no último 13 de março realizou no seu perfil do Instagram um repost do Movimento #342Artes, no qual abordava criticamente a tragédia em Suzano. A publicação, cuja foto era uma cena da campanha presidencial de Jair Bolsonaro que carregava uma criança no colo e a ensinava o gesto de simulação de uma arma com os dedos, procurava alertar para a perigosa relação do massacre à escola Raul Brasil com os discursos de intolerância e flexibilização do armamento proposta pelo atual governo. As reações favoráveis e contrárias à postagem foram diversas. Muitos dos que negavam Caetano o acusavam de forma hostil de incentivar o ódio ao atual presidente ou o mandavam silenciar quando o assunto fosse política e não música.

“Vocês não estão entendendo nada!” – Ecoam atuais os gritos de 1968.

***

A Tropicália, movimento artístico do final da década de 60 do qual Caetano é um dos protagonistas, desejou valorizar um olhar novo capaz de produzir deslocamentos do brasileiro na sua relação com o mundo e com sua própria história. Uma ambição de “desprovincianizar” o Brasil sem que isso significasse a negação dos elementos singulares do país. Dimensionar esse desejo e seus impactos não é fácil porque ele correspondeu à emergência de um mundo: formas inéditas de existir se sedimentaram.

Capa do disco Tropicália ou Panis et circencis, 1968.

Do ponto de vista musical, por exemplo, a Tropicália, superou a divisão entre o rock e a MPB. O movimento buscava uma reunião de elementos sincréticos. A fusão da poesia, alegorização e carnavalização do Brasil, a releitura daquilo que era considerado cafona e ultrapassado produziu um repertório que reuniu Bossa Nova, canções folclóricas, contestação social, o candomblé, o cristianismo… Também estava presente uma retomada da antropofagia oswaldiana, que incorporava experiências internacionais como o rock através da guitarra elétrica e a psicodelia. A Tropicália produziu experiências estéticas únicas devorando elementos dos mais diversos. Mas ela também repercutiu uma tensão própria à sua temporalidade que se desdobrava dessa “conciliação”.

As mídias, as mais diferentes e que atravessavam a indústria fonográfica, a publicidade, o designer… foram um dos espaços fundamentais para a descoberta e expansão do modo de vida que a Tropicália impulsionava. Por meio delas, o movimento explodiu os critérios de produção e consumo das obras de arte: acreditava-se que a ampliação das performances através da cultura de massa pudesse produzir uma transformação dos horizontes e comportamentos morais conservadores e caretas da sociedade brasileira. E

Em “sintonia” com Walter Benjamin, eles esperavam que a reprodutibilidade técnica da arte permitisse alcançar o íntimo do espaço privado promovendo uma atualização constante dela, afastando a mera contemplação e conquistando a experiência da arte propriamente.  Para Benjamin (próximo a Bertold Brecht), embora na era da técnica ocorresse a quebra da aura de toda e qualquer obra – o aspecto revolucionário da arte constituído junto ao espaço/tempo originário que lhe confere autenticidade – haveria uma potência nessa reprodução junto ao consumo das massas relacionada às experiências estéticas: aberturas e descobertas de outros mundos possíveis.[1]

Os tropicalistas se orgulhavam disso porque esse movimento despertou novas formas de existência no e para o Brasil. Em Verdade Tropical, Caetano explica esse orgulho:

Nós remanescentes da tropicália nos orgulhamos de ter instaurado um olhar, um ponto de vista do qual se pode incentivar o desenvolvimento de talentos tão antagônicos como o de Rita Lee e o de Zeca Pagodinho, o de Arnaldo Antunes e o de João Bosco, do que nos orgulhamos se tivéssemos inventado uma fusão homogênea e medianamente aceitável[2]

A Passeata dos 100 mil, 1968. Foto Campanela Neto.

A instauração desse mundo significou uma pluralização das possibilidades de se fazer arte, de se fazer música e de viver que Caetano não abre mão de restituir à Tropicália. O movimento tem esse mérito. Mas tem também uma responsabilidade. Os tropicalistas usaram diversas referências culturais projetando uma experiência mais democrática do que era considerado “boa música”. Mas, paradoxalmente, Caetano insistia, por exemplo, que haveria uma “linha evolutiva da música brasileira”: Orlando Silva – João Gilberto – Caetano Veloso.[3] Embora quisesse superar a ideia de “limpeza musical” da Bossa Nova como equivalente à “boa música”, havia, na verdade, uma potência estética atribuída, especialmente, à João Gilberto que Caetano procurava popularizar. Nesse sentido, a Tropicália levava à frente algumas das restrições que queria combater.

Destaco duas entrevistas concedidas à Revista O Bondinho em 1972 para explicar melhor esse fenômeno. Nessa conjuntura a Tropicália enquanto movimento “não existia mais” em razão, sobretudo, do exílio de Caetano e Gil em 1968.

A primeira voz é de Tom Zé, um dos integrantes do movimento:

[…] –  Se os artistas de um país, de um grupo social, não produzem alimento para manter acesa a consciência crítica dessa coletividade, dentro de algum tempo essa coletividade está apodrecendo dentro de suas raízes. […] Será que a bossa nova, por exemplo, além de ter deixado a todos nós melodias bonitas, canções gostosas, pra se comer com farinha ou petit-pois, deixou, num balanço geral, algum dado objetivamente palpável de elevação de nível para o homem brasileiro? […]Veja bem. Nós fomos o povo em cima do qual a bossa nova foi atirada e nós tivemos que sofrê-la. Tivemos que modificar os nossos conceitos estéticos.

À medida que Tom Zé se estende na resposta, vai falando como se relatasse um acontecimento espetacular, os olhos arregalados, o sotaque mais e mais acentuado:

– Tivemos, “Mau” [referindo-se ao jornalista], que reformular e refinar nossa sensibilidade para que fosse possível compreender a mensagem sutil e informativamente superior às canções que estávamos acostumados a gostar…[…]Na medida em que o homem da classe média brasileira criou um processo mental que o tornou capaz de assimilar o cosmo de estrutura mais complicada, por analogia, isto vai atuar em todas as suas escolhas, em seu discernimento.  Portanto, do ponto de vista cultural, a gente pode dizer que a bossa nova deu à classe média brasileira – que a consumiu – um mundo maior e mais rico… Afinal devemos lembrar do maior cuidado de ver e ouvir as coisas que a Bossa Nova requeria, para ser assimilada.[4]

Agora a fala de Caetano que reagia a algumas críticas destinadas a João Gilberto e também a ele:

O fato é o seguinte, as pessoas fingem – e como comigo e também com Gil: se tiver oportunidade cai todo mundo em cima, porque as pessoas fingem que gostam, entendeu? Fingem que estão de acordo, pra não passar por desatualizado (sic), não sei o quê, mas ninguém tá entendendo nada.  Essa é que é verdade.[5]

Tom Zé parecia acreditar naquela conjuntura que a classe média mudou sua sensibilidade a partir do que consumiu, a Bossa Nova. Mas como ele mesmo disse, era preciso ter cuidado para ouvir. Como garantir essa escuta? Caetano foi menos otimista (naquela entrevista!) e seu olhar registrou um dos desafios que a Tropicália experimentou no seu legado: muito desses homens da classe média com acesso àquela produção cultural fingiam ouvir. Esse fingimento significa que foram poucos aqueles que efetivamente se dispuseram a se lançar à abertura tropicalista. Apenas rendiam-se à técnica, especialmente a da indústria fonográfica.  As entrevistas de Caetano e Tom Zé quando confrontadas com algumas cenas atuais deixam claro  que não há uma reação complementar (sincrônica) entre aquilo que a arte se propõe (ou aquilo que é em si mesma) e sua recepção. (Roger Waters que o diga!)

O compartilhamento geral de uma experiência estética não pode ser assegurado por nenhum sentido. Na era da técnica, esse fenômeno torna-se mais acentuado. Friedrich Kittler nos dá algumas pistas sobre isso. O filósofo alemão levou radicalmente a intuição de Heidegger à frente na qual não há verdade fora da técnica. Ampliando o problema, Kittler argumentou que a verdade “só pode residir na própria mídia, não em suas mensagens”.[6] Isso significa que o comportamento e performances induzidos pelas mídias têm mais poder do que os sentidos de suas mensagens. Isso não é um problema em si.  Mas Kittler observou também que “na mídia de arquivamento tecnicamente perfeita, ou seja, além de qualquer capacidade da memória humana, nunca falta espaço para transformar os consumidores em potenciais paranoicos[7]. Isso ocorre porque as mídias desenvolvidas após as guerras mundiais, especialmente a Segunda, foram desdobramentos materiais diretos das próprias técnicas de guerra.  Acrescento às considerações de Kittler e de Benjamin que, diferentemente do que ocorre com a obra de arte, a técnica não destitui a aura da guerra em sua reprodutibilidade.

***

A paranoia que se desdobra em hostilidade por parte daqueles que atacam hoje Caetano nas redes sociais é resultado da captura do corpo… ouvidos, olhos, boca pelas mídias, o que nos exige alguma vigília crítica. Como instrumentos de guerra, elas conquistaram o poder de ensurdecer, cegar e disparar armas letais.

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NOTAS e REFERÊNCIAS

* Uma primeira versão deste ensaio foi apresentada no I Evento Quintais: Mídia, arte e resistência realizado em novembro de 2018 pelo Grupo de Pesquisa e de Extensão Quintais do departamento de Comunicação da UFOP. Agradeço novamente ao Grupo o convite para compor a mesa e o espaço de discussão.

[1] BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Primeira versão (1935/36). In.: _________. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas, volume 1. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.

[2] VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. Edição comemorativa de 20 anos. São Paulo: Companhia das letras, 2017, p. 300 – grifos meus.

[3] VELOSO, Caetano. “Que caminho seguir na música popular brasileira?” In.: Revista Civilização brasileira, ano I, n.7, maio 1966. [O problema também foi abordado em Verdade Tropical. Op. cit.]

[2] Tom Zé. “O futuro da família brasileira é um hálito puro.” Entrevista de Ricardo Vespucci para Revista O Bondinho, janeiro de 1972. In.: O Bondinho. JOST, Miguel e COHN, Sérgio. (orgs). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 10-11 – grifos meus.

[5] Caetano Veloso. Entrevista de Hamilton Almeida para Revista O Bondinho, abril de 1972. In.: O Bondinho. JOST, Miguel e COHN, Sérgio. (orgs). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 239.

[6] KITTLER, Friedrich. “O rock – o uso indevido de um equipamento militar”. In.: GUMBREHT, H.U (Org.). A verdade do mundo técnico. Ensaios sobre a genealogia da atualidade. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017, p. 269 – grifos meus.

[7] Idem, p. 276.

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