O Brasil de 2022 provavelmente está muito pior do que o otimista Darcy Ribeiro imaginou, desejou e lutou, durante os 74 anos de vida e de contribuições à antropologia, à educação, à política, e ao povo brasileiro. Se estivesse vivo, completaria o centenário no próximo dia 26 de outubro. Aproveitando essa efeméride e o cenário do país, apresentamos um pouco da vida, dos pensamentos, legados e “fazimentos”, com a resenha da biografia Darcy Ribeiro.
A obra integra a Coleção Educadores, organizada pelo Ministério da Educação (MEC) em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (Unesco), universidades e outras instituições ligadas ao setor de educação. A despeito de ter sido publicada em 2010, essa biografia de Darcy Ribeiro tem algumas características peculiares.
Primeiro, está disponível a todos, no Portal Domínio Público. Em segundo lugar, porque o biógrafo foi muito próximo de Darcy, durante o período em que este foi senador. Candido Alberto Gomes é sociólogo, professor e doutor em Educação. Foi titular da Cátedra Unesco de Juventude, Educação e Sociedade da Universidade Católica de Brasília (UCB). Tem mais de 200 trabalhos publicados, em dez idiomas. Além de pesquisar temas ligados à educação, foi assessor legislativo concursado do Senado.
Mais que uma biografia no estilo tradicional, Gomes apresenta as várias causas ou “peles” de Darcy Ribeiro: antropólogo, político, educador e escritor. Com escrita fluida, elegante e sem descuidar do rigor metodológico, o autor foi além do perfil burocrático e cronológico. A cada linha, página e capítulo, o leitor é presenteado com uma espécie de etnografia de Darcy Ribeiro. Em muitos momentos, é como se o biografado estivesse contando a própria história, em riqueza de detalhes. Diversas passagens nos remetem a depoimentos gravados do próprio Darcy, como se fosse ele o narrador.
No primeiro capítulo, o autor busca responder às questões mais gerais sobre a vida e a obra. Mas é Darcy quem nos envolve na própria história. O mineiro de Montes Claros costumava dizer que não era um, mas vários, assemelhava-se a uma cobra, como quem troca de pele várias vezes ao longo da vida.
A despeito de ser muitos, uma característica o distinguia: “Não era um intelectual que ficasse somente pensando e escrevendo. Exigia-se realizar. Por isso, se tornou educador e político. Assim, concebia a educação como caminho para a mudança […]” (GOMES, 2010, p. 12).
O educador foi forjado na amizade e cumplicidade com outro célebre educador, o baiano Anísio Teixeira. Darcy também foi ministro, vice-governador, senador e reitor. Ajudou a fundar o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Como vice-governador, criou os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), no Rio de Janeiro, para fornecer educação de qualidade, em tempo integral, para os filhos dos pobres.
“Vivi sempre pregando e lutando, como um cruzado, pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária”, afirmava Darcy, como se cada pele correspondesse a uma causa (RIBEIRO apud GOMES, 2010, p. 14).
No segundo capítulo, entrelaça-se o tempo ao indivíduo. É a contextualização histórica. Filho de Montes Claros, ele vivenciou boa parte do que o historiador britânico Eric Hobsbawm classificou como o “breve século XX”. Nasceu em 1922, ano do centenário da Independência do Brasil, da Semana de Arte Moderna, da Revolta do Forte de Copacabana e da fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Viveu a transformação da Primeira República para o Estado getulista, do Brasil rural para o despertar das grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, o projeto da nova capital, mas também as comunidades indígenas na Amazônia e no Pantanal. (GOMES, 2010).
Como muitos intelectuais de sua época, foi militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Mas saiu por absoluta incompatibilidade com a rigidez e burocracia partidária. Poucos sabem, mas foi um dos únicos que tentaram resistir ao golpe civil-militar de 1º de abril de 1964, contra o então presidente João Goulart, de quem era ministro da Casa Civil. Assim como outros intelectuais, a exemplo do também educador Paulo Freire, partiu para o exílio.
Com a abertura política e a anistia, retornou ao Brasil. Na redemocratização, uniu-se a Leonel Brizola, com quem se elegeu vice-governador do Rio de Janeiro, em 1982. O país vivia uma das piores crises econômicas da história. Mas Darcy e Brizola buscaram “na educação de tempo integral um remédio para fazer face ao empobrecimento e à formação humana […]” (GOMES, 2010, p. 22).
No terceiro capítulo, voltamos no tempo para conhecer a formação de Darcy Ribeiro. Ainda em Montes Claros, era apenas o filho da professora Dorinha e órfão de pai. Na juventude, chegou a frequentar o curso de Medicina em Belo Horizonte. Mas foi em São Paulo que encontrou o caminho na Escola Livre de Sociologia e Política. Concluiu a graduação em Ciências Sociais, com especialização em Antropologia e mestrado, em 1947. O brilhantismo intelectual despontara nessa época, quando ganhou uma bolsa para cursar o doutorado na prestigiosa Universidade de Chicago. Algo raríssimo no Brasil da época.
Com a formação completa, iniciou o trabalho de campo com povos indígenas. É o antropólogo, ou o “Darcy naturalista”, como o descreve Gomes (2010). Motivado pelo espírito de Marechal Cândido Rondon, começou a trabalhar no antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), hoje a tão maltratada Fundação Nacional do Índio (Funai). O contato com os indígenas foi decisivo para a formação intelectual e as reflexões de Darcy sobre a formação do país e a educação. Segundo o antropólogo, parte fundamental da nossa herança genética e o que temos de “sabedoria e adaptação à floresta tropical” devemos aos indígenas (GOMES, 2010, p.27-28).
Partindo do contato e das pesquisas com diferentes etnias como os Kadiwéu e os Kaapor, o etnólogo expandiu o campo de observação. Passou a investigar a relação entre os povos originários, a formação do Brasil e do continente americano. As conclusões de Darcy permanecem atualíssimas. Neste momento (junho de 2022), os ataques a terras indígenas, aos povos isolados, a morte do indigenista da Funai, Bruno Pereira, no Vale do Javari, a insistência do atual governo em defender o marco temporal e liberar a mineração em terras indígenas, só corroboram as reflexões de Darcy.
[…] é como uma formação capitalista de caráter neocolonial que a sociedade brasileira mais afeta os grupos indígenas, pela apropriação de suas terras para a exploração extrativista ou para formar novas fazendas agrícolas e pastoris e pelo seu aliciamento como mão de obra barata para ser desgastada na produção de mercadorias (RIBEIRO, 1979, p. 445, apud GOMES, 2010, p. 29)
Como bem observa Gomes (2010), os indígenas de Darcy são reais, em oposição àqueles do Romantismo do século XIX. O antropólogo mineiro apresentou ao Brasil e ao mundo uma realidade que vem sendo historicamente distorcida, negada e apagada. A identidade nacional foi construída com base em indígenas idealizados. No entanto, Darcy escancara “o índio em aculturação, marginalizado, ‘protegido’ (quer dizer, domesticado), dotado de cultura riquíssima, porém sofredor do avanço das fronteiras econômicas e das doenças físicas e morais do homem branco” (GOMES, 2010, p. 30).
Com Darcy, os povos indígenas ganharam o papel de sujeitos e não meros objetos de pesquisa e personagens submissos da história. A dialética e a práxis foram uma constante na vida dele. Do trabalho intelectual, passava a ações concretas e retornava à reflexão. Entre os principais resultados práticos como antropólogo estão a criação do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em 1952, e o Parque Nacional Indígena do Xingu, em 1954.
Do antropólogo nasceu o educador, e as duas causas caminharam juntas. Em um de seus muitos depoimentos gravados em vídeo, no documentário da TV Escola intitulado Educadores Brasileiros: Darcy Ribeiro – Um Vulcão de Ideias, ele ressalta que o Museu do Índio foi uma proposta sobretudo educativa. O museu deveria ajudar a reverter o imaginário sobre os povos indígenas, vistos como preguiçosos, bárbaros, não civilizados. Era necessário mostrar a sabedoria, a riqueza cultural e a contribuição decisiva desses grupos étnicos para a formação do país.
Além da convivência com os povos indígenas, foi o encontro com Anísio Teixeira que o transformou em educador. Darcy aderiu à Escola Nova, movimento que revolucionou o pensamento pedagógico no Brasil, a partir da década de 1920. Essas ideias refletiriam na concepção dos CIEPs, da Universidade Estadual do Norte Fluminense, da Universidade de Brasília e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1996), também conhecida como “Lei Darcy Ribeiro”.
Anísio e Darcy tinham mais em comum. Compartilharam o privilégio da formação acadêmica e científica nos Estados Unidos. O primeiro foi aluno e discípulo de John Dewey, de quem trouxe os conceitos para aliar teoria e práticas pedagógicas, como a escola experimental. Já Darcy trouxe na bagagem uma forma de fazer pesquisa que se diferenciava dos métodos tradicionais.
Ambos tinham como preocupação a educação pública de qualidade, e o destino do Brasil e dos brasileiros. Em 1957, Darcy assumiu um cargo no então Instituo Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep) e, “com Anísio, tomou a firme defesa da escola pública na luta pela primeira Lei de Diretrizes e Bases” (GOMES, 2010, p. 40), promulgada em 1961. À época, lembra Gomes, o Inep era um órgão de excelência e se sobrepunha em importância inclusive ao Ministério da Educação.
Vivemos o extremo oposto neste momento, em que o agora denominado Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) vem sofrendo interferência política e má gestão, e enfrenta a maior crise da história do instituto. Se estivessem vivos, Darcy e Anísio certamente estariam lutando juntos para reverter esse quadro.
Nos anos seguintes, novos e instigantes desafios surgiram para Darcy: (i) o convite do então presidente da República Juscelino Kubitschek para criar o projeto da Universidade de Brasília (UnB); (ii) assumir o cargo de ministro da Educação durante o período parlamentarista do governo João Goulart. Na pele de ministro, deixou vários “fazimentos”, expressão usada pelo próprio Darcy para referir-se aos legados dele. Criou um programa para reverter a situação dramática do atraso brasileiro na educação, que padecia com problemas tão antigos e alarmantes, como as altas taxas de reprovação e evasão escolar.
Novamente, a biografia expõe o quão aterrador é perceber como problemas de 60 anos atrás seguem tão atuais, não são solucionados e, pior, agravaram-se com a pandemia de Covid-19 no Brasil. Segundo dados divulgados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2021), 5 milhões de crianças estavam fora da escola em novembro de 2020. No ano anterior, em 2019, cerca de 1 milhão de crianças e adolescentes já não frequentavam a escola (UNICEF, 2021).
Ainda em 1962, Darcy determinou a execução de um planejamento inédito na educação brasileira, o Plano Nacional de Educação (PNE). “Além de cobrir o período de 1963 a 1970, estendendo-se a mais de um governo, associava metas e recursos” (GOMES, 2010, p. 43).
Com o golpe de 1964, seguiu para o exílio. Passou pelo Uruguai, Venezuela, Chile, Peru. Além de intensa atividade acadêmica, escreveu grande parte da obra durante o exílio. Ficou conhecido também como “construtor de universidades”, pela participação em projetos de criação e reestruturação de instituições de ensino superior. Um dos exemplos sempre lembrados é o de uma universidade na Argélia. (GOMES, 2010).
Na volta ao Brasil, ajudou a criar o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Ao lado de Brizola, como vice-governador eleito, “teve a oportunidade de realizar a sua versão pessoal da utopia da Escola Nova no Estado do Rio de Janeiro, em proporções que Anísio Teixeira, ou outro Pioneiro, jamais pudera fazer” (GOMES, 2010, p. 50). O projeto dos CIEPs talvez seja o mais utópico, “revolucionário” como o chama Gomes (2010), o mais necessário e urgente para a realidade brasileira, e segue igualmente atual como modelo de escola pública integral para atender aos filhos dos pobres.
Contudo, de todos os projetos com a assinatura de Darcy, foi o mais controverso e contestado. Os CIEPs uniam princípios da Escola Nova, da pedagogia de Paulo Freire, a arquitetura de Oscar Niemeyer, e os ideias de cidadania de Darcy.
Na biografia, há uma tentativa de traçar as linhas gerais da discussão sobre porque fracassaram os CIEPs: (i) críticas políticas ao governo de Brizola e Darcy; (ii) pressão midiática contra o projeto; (iii) resistências na academia; (iv) custos das escolas; (v) pressa na implantação por conta da “vitrine eleitoral”; (vi) disputa entre CIEPs e as escolas convencionais. Como um paradoxo da redemocratização, o autor afirma que Brizola, Darcy e os CIEPs podem ter sido vítimas do “voluntarismo dos governos, na ansiedade de fixar as suas marcas e mostrar realizações ao eleitorado” (GOMES, 2010, p. 57), com foco no curto prazo, o das eleições seguintes.
Além disso, com o pressuposto da discriminação positiva, para beneficiar os mais pobres entre os pobres, os CIEPs parecem ter renunciado à diversidade, à convivência entre os diferentes, um ideal caro à Escola Nova. “Para esta, a escola pública universal era um buquê constituído de diferenças, pluralista, onde os alunos aprenderiam a exercer a democracia e a cidadania, numa escola para a vida” (GOMES, 2010, p. 63).
A despeito das críticas, cerca de 500 CIEPs foram entregues, nos dois mandatos de Brizola, com atendimento de mais de 300 mil crianças. Ainda assim, segundo o biógrafo de Darcy, os que estudavam nos CIEPs eram minoria na rede estadual. Foi uma tentativa de “refundar a educação no Brasil e exercer efeitos irradiadores, porém estes foram muito menores que o esperado” (GOMES, 2010, p. 61).
Gomes alerta sobre as dificuldades e complexidade para mensurar os resultados qualitativos do principal projeto pedagógico de Darcy Ribeiro. Por isso, o capítulo sobre os CIEPs é, sem dúvida, o mais criterioso e cuidadoso do livro. O biógrafo diferencia o que foi idealizado com o que de fato ocorreu. E não transige com versões fantasiosas, muitas vezes preferidas pela militância político-partidária, apenas para exaltar a memória de Darcy.
Todos temos alguma explicação, mas ao ler a biografia somos levados a refletir porque a utopia de Darcy ainda não se concretizou no Brasil.
A utopia expressa por Darcy (Ribeiro, 1991) era a de oferecer educação integral e escola de tempo integral, como no Uruguai, conforme constatara no seu exílio, junto com Brizola, e em países desenvolvidos, a exemplo do Japão e dos Estados Unidos, já à época de Anísio na Columbia University. Lá não se discute se a escola deve ser de tempo integral ou não, ou é escola ou não é. Abaixo da linha do Equador, a falta de acesso comprime os alunos em até cinco turnos diários, fragmentando o tempo letivo em migalhas lançadas de cima da mesa aos miseráveis. A intenção, porém, não era oferecer mais do mesmo, isto é, ampliar a jornada com o mesmo processo educativo (ou falta dele). Isso seria insustentável. (GOMES, 2010, p. 57)
A melhor passagem da biografia escrita por Candido Gomes talvez seja a que expõe a coerência e o compromisso de Darcy com a educação, durante a discussão do projeto da segunda Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), na década de 1990. Esse debate teria unido a direita e parte da esquerda contra o então senador Darcy Ribeiro. Segundo Gomes (2010), os dois lados do espectro político aliaram-se para derrubar o texto de Darcy. Para a direita, ele continuava a ser um comunista perigoso e o projeto refletia essa ideologia. Já na visão da esquerda, Darcy tornara-se um “neoliberal”.
Como fazia há décadas, Darcy defendeu uma educação pública, de qualidade, que respeitasse as competências de Estados, do Distrito Federal e dos municípios, uma “lei geral de educação, que assim deveria ser duradoura, plástica, flexível, de longa vida” (GOMES, 2010, p. 78). Para contrariedade dos que o acusaram de defender esse ou aquele projeto político, as reflexões de Darcy durante o debate da LDB também seguem atualíssimas.
A crua verdade é que, entre nós, o ensino primário notoriamente não alfabetiza a infância, impedindo o Brasil de integrar-se à civilização letrada. O ensino médio não prepara para o trabalho nem para o nível superior. E, nas universidades e nas escolas superiores autônomas, na maioria dos casos, os professores simulam ensinar e os alunos fingem aprender. (RIBEIRO, 1996, apud GOMES, 2010, p. 83).
Darcy é um dos grandes intelectuais brasileiros do século XX. Do antropólogo refinado e reconhecido internacionalmente, do político destemido, compromissado, transparente, sonhador e inovador, ao educador que unia reflexão e ação, Darcy tem lugar cativo na história das ideias, da antropologia e da pedagogia no Brasil.
Apesar de transitar por quase todos os aspectos da vida de Darcy, a biografia deixou uma lacuna. O autor não aprofunda o debate sobre O povo brasileiro, a obra mais conhecida de Darcy. Publicado em 1995, é o último e mais popular livro de uma série em que defende a tese de uma antropologia da civilização.
Demorou mais de 30 anos para escrevê-lo e só o fez no final da vida. Sob as dificuldades impostas pelo câncer, fugiu do hospital e se refugiou em uma casa à beira mar, em Maricá, no Rio de Janeiro, onde concluiu a obra em 40 dias. “O Brasil e os brasileiros, sua gestação como povo, é o que trataremos de reconstituir e compreender”, sintetizou, na Introdução (RIBEIRO, 1995, p. 19).
Para Darcy, nós, brasileiros, somos um “povo novo”, porque fortemente mestiço, resultado de uma cultura sincrética, com traços singulares, “um novo gênero humano diferente de quantos existam”, a partir das matrizes portuguesas, africanas e indígenas (RIBEIRO, 1995, p. 19). A valorização da mestiçagem não serve, contudo, para negar a violência do nosso processo histórico. A unidade como um Estado-nação e a identidade nacional resultaram de violência deliberada e continuada, da escravidão, de genocídio e etnocídio.
O resultado, segundo Darcy, foi desigualdade social exacerbada e elites que “viveram sempre e vivem ainda sob o pavor do alçamento das classes oprimidas” (RIBEIRO, 1995, p. 23). O antropólogo contradiz a falsa tese da “democracia racial”, de uma suposta convivência harmoniosa entre os povos que formaram/formam o povo brasileiro, ainda contada pela história oficial.
Para Darcy, somos uma “nova Roma”, uma “matriz ativa da civilização neolatina” melhor que as outras, “porque lavada em sangue negro e em sangue índio” (RIBEIRO, 1995, p. 265). Em tom otimista, assegura que o nosso papel “será ensinar o mundo a viver mais alegre e mais feliz”, e não ser um mero receptáculo de aspectos da cultura europeia (RIBEIRO, 1995, p.265).
Esta última hipótese nos leva a elucubrar outra hipótese. O otimismo de Darcy Ribeiro em relação ao Brasil pode ter sido exagerado? Não pela incapacidade crítica e falta de conhecimento do mundo e do Brasil, mas por acreditar em uma espécie de determinismo histórico, segundo o qual haveria uma linha evolutiva em direção a algo sempre melhor. Muitos da geração dele compartilharam essa crença e utopia.
Mas os regressos democráticos aqui e em outros países, a emergência ambiental, e a situação crítica dos povos indígenas nos levam na direção oposta. Não conseguimos sequer manter as nossas crianças e jovens na escola, criar escolas públicas de tempo integral, proteger as terras indígenas, como seremos modelo de felicidade para o mundo? É fato que a história se escreve em curtas, médias e longas durações e não sabemos o que ocorrerá daqui a 50, 100, 500 ou 1.000 anos. Neste momento, o Brasil não representa nem sombra do que Darcy projetou para o nosso destino.
Para quem deseja conhecer todas as peles e desvendar os legados e a atualidade do pensamento “ribeiriano”, o perfil escrito pelo professor Candido Gomes é um convite irrecusável. Quase 30 anos após a aprovação da LDB (BRASIL, 1996), parece não haver dúvida sobre o que essa lei representa para a garantia do direito constitucional à educação no Brasil. Da mesma maneira, diante das ameaças aos povos e terras indígenas, como não exaltar a dimensão e a importância do Parque Indígena do Xingu?
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Presidência da República. Brasília-DF, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 12 abr. 2022.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
TV ESCOLA. Educadores Brasileiros: Darcy Ribeiro – Um Vulcão de Ideias. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iUh4O1koCag. Acesso em: março de 2022.
UNICEF. Fundo das Nações Unidas para a Infância. Cenário da exclusão escolar no Brasil: um alerta sobre os impactos da pandemia da Covid-19 na Educação. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/media/14026/file/cenario-da-exclusao-escolar-no-brasil.pdf. Acesso em: 3 abr. 2022.
Créditos na imagem: Reprodução. Foto: Marizilda Cruppe/ Foto de arquivo.
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Ramon Lamoso de Gusmão
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