Resposta do historiador Renato Pinto Venâncio ao General Mourão a convite da ANPUH-Brasil.
“Na data de hoje, em 1532, o Rei D. João III criava as #capitanias no #Brasil. Descoberto pela mais avançada #tecnologia da época, o País nascia pelo #empreendedorismo que o faria um dos maiores do mundo. É hora de resgatar o melhor de nossas origens.”
General Hamilton Mourão
A recente afirmação do vice-presidente a respeito de que o Brasil nasceu graças ao “empreendedorismo” é uma boa oportunidade para discutir o uso público do conhecimento histórico. Essa declaração, acima reproduzida, foi publicada em twitter de 28 de setembro, desdobrando-se, até dia 30 de setembro, em mais duas postagens enfatizando o empreendedorismo dos “donatários, bandeirantes, senhores de engenho e mestres de açúcar, canoeiros e tropeiros”, assim como dos maranhenses resistentes ao “domínio holandês”.
Interpretações históricas avançadas em redes sociais não estão sujeitas ao rigor da avaliação dos artigos científicos ou das teses de pós-graduação. Trata-se, na realidade, de afirmações públicas de apelo retórico e mobilizador. Declarações dessa natureza mais valem pelo que não dizem: por qual razão foi empregado o termo “empreendedorismo”, inexistente no século XVI, em vez de noção mais condizente com os motivos conscientes do período analisado?! O mesmo pode ser afirmado em relação ao termo “empresa”, pressuposto do “empreendedorismo”, que até o início do século XVIII foi empregado apenas para retratar feitos épicos ou religiosos, não tendo o sentido econômico que a Revolução Industrial lhe emprestou ao final do referido século.
Tudo isso poderia ser dito, de forma crítica, em relação à afirmação do vice-presidente. Porém, conforme mencionado, no debate público há liberdade para o uso retórico da história, com o intuito de enfatizar uma dimensão do presente, projetando-a deliberada e anacronicamente no passado. Por isso, para melhor compreender a declaração em questão primeiro deve-se entender a expressão “empreendedorismo” na atualidade e depois seu uso no passado. No tempo presente esse termo é utilizado não apenas no sentido de valorização da iniciativa individual, como também tacitamente de crítica ao Estado. De acordo com esse ponto de vista, o Estado atrapalha, sufoca, desvirtua o desenvolvimento do Brasil. É isso que está em questão na passagem que elogia o empreendedorismo. Empregar esse termo em relação ao século XVI não é nem um pouco ingênuo, pois implica em atribuir a suposta grandeza brasileira, existente naquele período, à ausência do Estado: as capitanias hereditárias, afinal, consistiam em iniciativas de grupos escravocratas privados.
Repercutindo a visão de que somente a iniciativa privada fará retornar à grandeza perdida, a postagem do general encerra-se de forma apoteótica: “É hora de resgatar o melhor de nossas origens”. O “melhor de nossas origens” são as capitanias hereditárias. Frente ao texto do twitter em questão, é preciso afirmar que o “empreendedorismo” das capitanias hereditárias redundou em tremendo fracasso. A iniciativa individual, sem o apoio do poder monárquico português, não deu certo. Ao longo do século XVI, 12 das 14 capitanias fracassaram sob a vigorosa resistência indígena ou devido ao desinteresse dos fidalgos “empreendedores” portugueses.
A ironia involuntária do comentário do general é que a efetiva colonização do Brasil – e não a “descoberta do Brasil”, pois se tratava de área povoada, invadida e saqueada aos povos indígenas – dependeu da intervenção do Estado português, que entre 1548 e 1549 criou o Governo Geral e, ao longo do período subsequente, progressivamente incorporou as capitanias hereditárias, transformando-as em capitanias régias.
A caracterização do século XVI como o do empreendedorismo brasileiro é um anacronismo gritante, mas também é um reflexo dos embates políticos de nosso tempo. A sua compreensão e refutação vinculam-se aos embates pela preservação do que restou do tímido Estado de bem-estar social avançado pela Constituição Federal de 1988. Cabe aos historiadores participar nesse debate público, mostrando que em qualquer aspecto relevante da história do Brasil, como nos casos da industrialização, da conquista de direitos sociais, da formação da comunidade científica etc., há provas abundantes do protagonismo do poder público. Aliás, mesmo nos países campeões do liberalismo, como Inglaterra e Estados Unidos, sempre houve uma participação equilibrada do Estado e da sociedade na promoção do desenvolvimento nacional.
Créditos na imagem: Engenho de Itamaracá, de Frans Post para mapa de Gaspar Barlaeus, 1647.
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Renato Venancio
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Journal of Theory and History of Historiography
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