O Iluminismo em rosto de mulher: Emílie du Châtelet e a luta pelo reconhecimento científico

0

Ainda que com um sorriso tímido, Gabrielle Émilie du Châtelet é retratada por Maurice Quentin de La Tour com um olhar simpático. Ao seu redor, volumosos livros de matemática e física mecânica dão uma atmosfera erudita. Em sua mão direita, um compasso interrompido em meio círculo na espera do retorno à equação binomial, enquanto o braço esquerdo, sustenta uma expressão contemplativa. Com as mangas do vestido esticadas até o cotovelo, Émilie parecia estar totalmente concentrada na sua atividade cotidiana de estudos. No centro da pintura, sua imagem emana uma luz da qual não se vê distorção ou irregularidade. Todo um equilíbrio geométrico parece manter a harmonia da representação que compõe um estado sublime de concentração, ambição e experiência.

Na primeira metade do século XVIII dificilmente veríamos uma mulher composta nesta situação. A representação do feminino em sociedades de monarquias absolutistas esteve mais ligada a uma fragilidade e recolhimento, do que necessariamente ao de honra, fortuna e poder. O lugar da mulher era estabelecido desde o momento em que nascia e sua ação se limitava as hierarquias e normas sociais da época. Querer subvertê-las forçosamente implicava na desnaturalização, na vergonha, no ostracismo, na dor e no sofrimento. Portanto, o que circunscrevia uma mulher no Antigo Regime era um imobilismo social de devoção e submissão, perante uma ordem imposta pelas instituições e agentes reguladores do espaço cotidiano. Querer mais do que a ordem natural das coisas lhes dava, já assumia um caráter depravado e desequilibrado da personalidade feminina.

Émilie du Châtelet enfrentou todas as tempestades que a colocava nesta redoma patriarcal. Sem dúvida sofreu as consequências de seus atos obstinados. Levou ao limite seus projetos científicos até receber o devido reconhecimento dos seus pares. A pintura de Maurice La Tour representa uma mulher cientista do período do Iluminismo francês que se consolidou em espaços nunca antes ocupados por outras.

Há de se dizer, primeiramente, que Émilie du Châtelet era uma mulher privilegiada. Nasceu em 17 de dezembro de 1706 no seio de uma família aristocrática que havia se consolidado nos setores de finanças e magistraturas da França. Era filha de Louis Nicolas le Tonnelier de Breteuil (Barão de Breteuil) e de Gabrielle Anne de Froulay, ambos próximos da corte de Luis XIV. Cresceu protegida pelo seu pai e disciplinada pela sua mãe no palácio da paróquia de Saint-Roch na rua Saint-Honoré em Paris, uma elegante habitação de quatro andares.

Segundo a historiadora Elisabeth Badinter, Émilie du Châtelet teve uma infância tranquila, cercada por uma educação artística e científica – algo pouco convencional para as mulheres da época. Seus pais davam apoio e correspondiam as suas necessidades materiais e intelectuais. Em casa, três cômodos eram destinados à ornamentada biblioteca, dos quais Émilie tinha acesso, e um obstinado salão de festas recebia as pessoas mais ilustres de Paris, como Fontenelle e o duque de Saint-Simon. O ambiente lhe conferiu uma aproximação com a vida científica da época.

É por meio do jovem Voltaire, que em 1714 conhece o Barão de Breteuil, que sabemos como se deu a educação de Émilie durante sua juventude. Sabe-se, conforme suas impressões, que “ela alimentara seu espírito com a leitura de bons autores em mais de uma língua. Tinha começado uma tradução da Énéide” e “aprendeu depois o italiano e o inglês” (VOLTAIRE, 1883, p. 7). Com o exercício de traduzir obras clássicas acabou por dominar completamente o latim, língua essencial para se adentrar no universo da ciência setecentista. Com 17 anos lê no original a famosa obra de John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano e aprende a filosofia cartesiana, apaixonando-se posteriormente por matemática, metafísica e física mecânica. Ela “conservará por toda a sua vida a exigência de um pensamento claro e metódico, e de uma física que se complementa na metafísica” (BADINTER, 2003, p. 66).

Aos poucos floresce nela uma ambição com as ciências e o conhecimento humano. Mas, no século das Luzes, uma mulher querer ser erudita era visto como algo digno de ridicularização. Mesmo nascendo em berço nobre, Émilie teria que desafiar o escárnio de homens que não lhe respeitavam. E foi seu amor pelos estudos que forjou sua resistência frente as normas culturais impostas. Fragilidade e submissão não combinou com o espírito ilustrado que corria nas suas veias. Sua personalidade e inquietação comprovam isso.

Sabe-se, por meio de suas cartas, que o amor pela matemática lhe conferiu um rigor e um método até na arte de viver. Hipóteses, incertezas ou dedução não foram sua maneira de conceber o mundo. Mais do que uma mulher submissa, Émilie du Châtelet confrontava tudo aquilo que não lhe agradava. Na descrição deixada por Voltaire, reforça-se que “A palavra certa, a precisão, a justeza e a força eram o caráter de sua eloquência” (VOLTAIRE, 1759, p. xi). Poderíamos dizer que Émilie tinha um temperamento típico de filósofos das Luzes: um espírito sistemático ordenado conforme o modelo empírico-racional, em que tudo aquilo que se vê é passível de ser organizado e descrito como real. Badinter nos lembra que ela era “dotada de grande energia” e fazia tudo em excesso, não mostrando “nunca a face da lassidão ou da saciedade” (BADINTER, 2003, p. 83). Tal personalidade era transferida para o seu trabalho. Madame de Graffigny descreve em suas cartas a rotina concentrada de Émilie: “Ela passa todas as noites, quase sem exceção, até as cinco ou sete horas da manhã trabalhando […]. Resumindo, só dorme duas horas por dia, e não deixa seu escritório, em 24 horas, a não ser para o café, que dura uma hora, e o tempo para cear e uma hora depois. Às vezes ela come um pouquinho às cinco horas da tarde, mas sobre sua secretária e ainda muito raramente” (BADINTER apud GRAFFIGNY, p. 85).

Sua energia, seu tempo e sua inteligência eram destinados à paixão pelo conhecimento. Mesmo após um casamento fracassado e com três filhos, sendo que um morre com dezesseis mês, a Sra. du Châtelet continua seus estudos. Com 29 anos ela estava em Paris, pouco satisfeita com a vida conjugal e aberta às novas experiências. Sua existência não se resumia ao lar e ao afeto com o marido. Ela se lança nas luzes sem perder nada daquilo que a vida lhe podia oferecer. Passa a viver os movimentos de uma Paris mundana, escapa de tudo aquilo que lhe reprime. Frequenta os divertidos salões, vai às Óperas e aos teatros, que lhe dá uma felicidade momentânea. Mas, conforme se vê em suas cartas, nenhum desses excessos correspondiam com seu principal desejo: a glória de ser reconhecida como uma mulher de ciência, excepcional em seu trabalho físico-matemático e respeitada pelos pares.

Em dezembro de 1735 ela diz: “Entrego-me ao mundo sem amá-lo muito. Encadeamentos insensíveis fazem dias inteiros passarem sem que muitas vezes nos apercebamos de tê-los vivido” (BADINTER, 2003 p. 124). Chegava o momento de a frenesi da vida parisiense dar uma pausa. Entre 1725 e 1735, Émilie tem uma vida cercada de incertezas. Desde a insatisfação com o casamento até as experiências conturbadas em Paris com amantes e festas, ela ainda não tinha encontrado seu grande objeto científico, que lhe garantiria um lugar no panteão do Iluminismo.

Até esse momento, Émilie du Châtelet havia passado pelas principais etapas da experiência feminina aristocrática do século XVIII. Uma mistura de “trajetória frustrada”, casamento insólito, amarguras e cansada de ser vista como uma “mulher comum”. O desejo de glória, honra e poder tinham que se sobressair. Sua ambição era a principal forma de manter ativo um trabalho sério e comprometido com a física moderna. Sua “única preocupação é a de ser a primeira ‘intelectual’ do seu tempo”, lembra Elisabeth Badinter. Mas como entrar no jogo do reconhecimento científico em pleno fervor do século das Luzes? Primeiro era preciso criar um contrassenso e depois uma linha de defesa contra os críticos. Assim fará Émilie.

Com 30 anos passa a se dedicar ao seu maior trabalho, que só terminará com sua morte. Dava-se início a primeira tradução com comentários da obra de Issac Newton na França, que naquele momento contava apenas com edições em inglês e em latim de 1713; e corria contra o tempo para publicar sua obra Instituições de Física. Era seu ato final em vida que colocava em jogo toda sua reputação enquanto mulher cientista. Num dos seus escritos, Discours sur le bonheur, Émilie chega a dizer: “Nem sempre saboreamos o desejo vago de que se fale de nós quando não estivermos mais aqui; mas ele sempre permanece no fundo de nosso coração. O filósofo gostaria de fazer sentir como isso é pura vaidade; mas o sentimento prepondera, e este prazer não é uma ilusão: pois ele nos mostra o bem real de gozar de nossa reputação futura” (CHÂTELET, 1961, p. 22).

O reconhecimento científico era uma forma de sua memória permanecer viva, mesmo após sua morte. Era pelo seu legado que ela mostrava a lucidez de uma cientista comprometida com a razão e a ambição. Mas ao propor uma revisão e aprofundamento das teorias de Newton, Émilie entrava numa das principais batalhas científicas que rondavam a Europa Ilustrada: a disputa entre cartesianos (racionalismo) e newtonianos (empirismo). Na França, o centro desse debate estava na Academia de Ciências de Paris, instituição na qual Émilie dá seu primeiro passo.

No anonimato, ela participa de um concurso da Academia em 1738, o qual premiava a melhor dissertação sobre a “Natureza e propagação do fogo”. O anonimato era uma regra da instituição, mas Émilie esconde sua participação até mesmo de seus amigos próximos, somente Voltaire sabia. Em carta de 21 de junho de 1738 ela diz: “Eu quis testar minha capacidade protegida pelo anonimato” (BADINTER, 2007, p. 385). O vencedor desse ano havia sido o matemático Leonhard Euler, mas, apesar de ela não ter ganhado, todas as dissertações iriam ser impressas numa coletânea. E era a primeira vez que a Academia de Ciências de Paris publicava o trabalho de uma mulher.

Após esse evento, em 1740, Émilie publica sua famosa obra Institutions de Physique. Nela vemos um conjunto de conteúdos que vão da filosofia natural de Leibniz, como Des Principes de nos Connoissances e Des Elemens de la Matiére, até a física newtoniana como De Mouvement e du Repos en général e De l’Attraction Newtonienne. A originalidade residia na combinação entre duas doutrinas vistas como opostas, mas que Émilie foi capaz de articular com brilhantismo.

O livro é bem recebido na sociedade parisiense, circula pelas livrarias e deixa o nome de Émilie flutuando pelas bocas de homens e mulheres. A Duquesa de Aiguillon, que conhecia o suficiente de matemática, diz em carta para Maupertuis: “A Sra. Du Châtelet deu-me o seu livro, que ainda não saiu. Li doze capítulos, mas fiquei de tal maneira encantada com ele que nem posso dizer, sobretudo no que diz respeito à metafísica. Nada é mais claro, mais bem escrito” (BADINTER apud FONTAINEBLEAU, p. 122). Émilie confessa em carta de 1740 para Frederico II que seu intuito era manter essa clareza metódica: “Meu objetivo é dar aos franceses uma filosofia inteira na linha de Wolf, mas com tempero francês… tomando o cuidado de não assustá-los com o vocabulário dos lemas, teoremas e demonstrações” (BADINTER, 2007, p. 351).

A Sra. Du Châtelet teve que se esforçar em dobro para conseguir o devido reconhecimento do seu livro. Não se tratava apenas de problemas de matemática, mas de uma situação social em que se encontrava. Uma mulher que dominava os saberes físico-matemáticos era inviável para alguns homens que liam seu livro. O abade Nollet, por exemplo, chegou a afirmar: “De maneira geral é muita coisa para uma mulher de posição, ainda jovem, e bela, pois são esses obstáculos que ela precisa vencer para ser filósofa” (Ibidem, p. 123). Para alcançar seu objetivo de reconhecimento entre os pares Émilie envia exemplares à Academia de Ciências e a todos seus amigos cientistas. O sucesso lhe é garantido, elogios se espalham pelas bocas parisienses e no estrangeiro. Émilie encontrava seu primeiro espaço no debate científico.

Mas foi sobretudo na sua tradução e comentário de Newton, Principes Mathématiques de la Philosophie Naturelle, publicado postumamente em 1756 (primeira parte) e 1759 (versão finalizada) que Émilie é saudada como uma matemática excepcional. Entre 1744 e 1749, dedicou-se a esse projeto, do qual não vê em vida ser publicado, pois em setembro de 1749, com 43 anos, morre após um parto complicado, de um filho que teve com seu amante Saint-Lambert.

É graças ao trabalho de Émilie que o publico francês há mais de dois séculos tem acesso às doutrinas newtonianas. Seus esforços foram prodigiosos. Da luta pelo reconhecimento científico até a glória do respeito dos pares, Émilie teve que resistir e se sacrificar. E foram seus passos nesse mundo que permitiram as aberturas de novos horizontes e a quebra de grilhões culturais. Lembremo-nos dela, não como “a amante de Voltaire”, mas como uma mulher de ciência do Iluminismo Europeu. Viva Gabrielle Émilie!

 

 

 


REFERÊNCIAS

BADINTER, Elisabeth. Émilie, Émilie: a ambição feminina no século XVIII. São Paulo: Paz&Terra, 2003. 

As Paixões Intelectuais: Desejo de Glória (1735-1751). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 

CHÂTELET, Madame du. Discours sur le bonheur. Paris: Les Belles-Lettres, 1961.  

VOLTAIRE. Préface historique sur Madame du Châtelet. In: Principes mathématiques de la philosophie naturelle de feu Madame la marquise du Châtelet, 1759.  

 

 

 


Créditos na imagem: Divulgação.  Maurice Quentin de La Tour (Domínio Público)

 

 

 

SOBRE O AUTOR

Luis Filipe Maiolini

Graduado em Bacharel-licenciatura pela Universidade Federal de Ouro Preto na área de História (2018). Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História pela mesma Universidade. Coordenador da Oficina de Paleografia da UFOP desde 2016. Tem experiência na área de História e prática paleográfica, especializando-se em História da Ciência e Medicina no século XVIII e XIX. Tem interesse nas áreas de História Política e Filosofia da Ciência.

No comments

Veja: