A cultura pop dos anos 2010, sobretudo a musical, muito pautada numa “cultura do YouTube”, não apenas de exposição, mas de estratégia de sobrevivência às rédeas do mercado, que não se abre a todos e engole aqueles a quem interessa a esse mercado, está inundada nessa mesma plataforma de vídeos por aquilo que temos convencionado chamar de “geração dos melancólicos” (que hoje criam redes de sociabilidade em torno de seus vídeos e canais do YouTube). Inaugurada entre 2010 e 2011, essa cultura não é nova. Sempre existiu, mas sua roupagem e sua vendagem são estratégias específicas da nova geração. Comungam dos interesses e afetos de sujeitos articulados nessa mesma “rede social digital de vídeos”, uma espécie de compêndio. Esses afetos também não são novos, mas parecem estar sempre a serem reciclados.
Como a própria modernidade, que se recicla, possui fases, essas articulações de afetos também se portam da mesma maneira. Se podemos ver ideais de modernidade presentes no Renascimento, na Revolução Francesa, no Iluminismo, na Revolução Industrial (com a presença do trem), numa própria conceituação de modernidade – na passagem do século XIX para o XX, quando poderíamos listar Coney Island como um território afetado pela ruína e pela transformação em nome de um falso progresso – (VIEIRA, 2018), na queda do Muro de Berlim, na virada do milênio (em 1999 para 2000) – embora esses dois últimos também sejam enxergados como ciclos de uma pós-modernidade sociológica, calcada numa era do vazio lipovetskyana, então podemos ver os mesmos afetos articulados agora no YouTube em ciclos ao longo da história. Mais recentemente, estariam casos como a necessidade de se desativar das amarras do mundo, como propunha Walter Benjamin ao rejeitar as duas Grandes Guerras. A mesma sensação é cantada anos à frente por John Lennon ao negar o mundo na música God, em 1970. Mais à frente e não muito longe, em 1986, Renato Russo exibe figuras fantasmáticas (como o próprio Lennon) no videoclipe de Tempo Perdido, pedindo: “me diz, mais uma vez, que já estamos distantes de tudo”. O “mais uma vez” retoma um ciclo sem fim. A necessidade da distância é sempre iminente, mas essa separação nunca chega. A modernidade – ou a ideia de pós-modernidade sociológica, anunciada nessa mesma época, em fins dos anos 1980 – propõem um recomeço de algo que, por conseguinte, nunca é diferente.
São esses afetos mobilizados em corpos de sujeitos tristes com o tempo, que transformam suas organizações corpóreas em verdadeiros “gestos políticos” – falaremos à frente –, fazendo emergir em seus rostos semblantes da melancolia[1], que podem ser sentidos, também, na virada de 1999 para 2000 e no início desta década, na estética saqueada pelo mercado e introjetada na robotização de Xuxa com o programa Planeta Xuxa, com suas roupas prateadas “do futuro” (vistas também em Gigi D’Agostino no clipe de L’Amour Toujours, do Euro Disco), ou nos flertes de Steven Spielberg em A.I. – Inteligência Artificial (filme de 2001) e no fetiche de Britney Spears com uma fixação no espaço e na tecnologia profética do videoclipe de Oops!… I Did It Again. Dosado pela mesma aritmética, está o grupo Linkin Park, com suas apoteóticas catástrofes de fim do mundo nos clipes de What I’ve Done e In The End (comum a uma cultura de apocalipse na virada do milênio). Imersos em fugas de seus presentes e desejosos de um outro tempo, todos esses acabam por denunciar as agruras de um tempo e dos próprios sujeitos em meio a essas tramas temporais, como os ciclos de modernidade e as ruínas às quais os sujeitos somos levados, conscientes ou não de um semblante da melancolia em seus rostos, que, por fim, é, ao mesmo tempo, uma faceta saqueada pelo mercado e uma tentativa de se desativar deste[2].
Na esquina seguinte, estão outros corpos melancólicos – estes, aparentemente similares que os apresentados acima – de figuras como Amy Winehouse e Lana Del Rey, a representarem um esfacelamento dos sonhos, esgarçados no tempo presente, reencenando a desilusão de Benjamin, Lennon, Russo, da virada do milênio e abrindo espaço para as divas pop melancólicas dos anos 2010, ora inseridas na cultura da fonografia, ora buscando desativarem-se desta, inaugurando uma nova “geração dos melancólicos”. Dotadas de uma performance convocadora dessa melancolia, do próprio ato de desativar, seus corpos quase inertes em suas danças aparentemente nulas pelos palcos em turnês e videoclipes convidam para que seus seguidores se sirvam de um sortilégio das imagens soníferas de seus semblantes melancólicos. No final, o semblante é a deterioração de si mesmo, a decrepitude do presente, a morte do futuro e a consequente inação do passado, como vemos desde Benjamin. Entretanto, essa melancolia que enverniza o semblante é uma forma de rejeitar a própria dança das cadeiras das temporalidades, que nos atropela e nos lança em ruínas, atuando como agentes que exercem seu poder em nome do “novo”, do “mais atual”, do “mais contemporâneo”, do “moderno” ou, quiçá, “pós-moderno”.
A melancolia, desde Benjamin e sobretudo nele, segundo Rangel (2016), longe de um ato soberbo de genialidade, de um pessimismo puro ou profunda apatia, é:
[…] um sentimento, uma atmosfera ou clima (Stimmung) que é a origem (e também desponta) da compreensão de que a reconfiguração da história [suplantar uma cultura cristalizada do capital] é ou teria se tornado difícil ou mesmo improvável, o que, por outro lado, não significa passividade. […]. Maria Rita Kehl também entende que Benjamin seria determinado pelo que chama de “melancolia positiva”, e [Michael] Löwy classifica isto que estamos chamando de melancolia de “pessimismo revolucionário”… (RANGEL, 2016, p. 127; grifo no original)
Assim, a “melancolia benjaminiana” é, tal qual no semblante que se espalha pela cultura pop e em seu entretenimento dosado por esse mesmo elemento sintetizador, a organização experiencial de um “gesto político” (um “ato desativado”, intempestivo, de altivez, falseado pelo mercado e, ao mesmo tempo, crítico dele próprio e dentro de suas peias[3], dentro da cultura pop). Aparentemente esvaziada pelo mercado e alienada, essa melancolia é a concretização do télos – um ponto final não alienante ou presumido para o qual guia uma medialidade. E essa medialidade também caracteriza um gesto de rompante político, haja vista que, como atesta Agamben (2015),
Para a compreensão do gesto, nada é, portanto, mais desviante do que representar uma esfera dos meios voltados a um objetivo […] e depois, distinta desta e a ela superior, uma esfera do gesto como movimento que tem em si mesmo o seu fim… Uma finalidade sem meios é tão alienante quanto uma medialidade que só tem sentido em relação a um fim. […]. O gesto é a exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal. Ele faz aparecer o ser-em-um-meio do homem e, desse modo, abre-lhe a dimensão ética. (AGAMBEN, 2015, p. 59; grifos no original)
Portanto, pensando na mais atual “geração dos melancólicos” na dissolução dos sonhos – a própria dissolução dos sujeitos –, veríamos, no corpo melancólico de “doce serial killer” de Lana Del Rey (como diz a canção Serial Killer), inicialmente pautado pela ausência da felicidade (como mostramos na imagem de capa) e depois anunciado por um sorriso ardiloso (como já destacamos em nossa coluna Artefatos da Comunicação, em textos anteriores), uma emancipação do mercado, intempestiva, mas sem sair dele. Da mesma maneira, veríamos no corpo melancólico e apocalíptico de Billie Eilish (outro exemplo dessa geração), que se destrói de uma forma distinta em cada um de seus videoclipes, uma Stimmung de reconfiguração de sua condição de sujeito e, consequentemente, da própria história que a circunda – retomando Rangel (2016).
Esse apocalipse de Billie Eilish, cujo corpo se liquefaz na tristeza da solidão e do silêncio sufocantes, como vemos no videoclipe de When The Party’s Over (metáfora para a destruição de um sonho adolescente), ilustra a utopia de morte, sentida em todos os outros sujeitos melancólicos, ainda que não de forma apocalíptica, mas como outras formas de morte menos violentas, mais sutis, ou sem o componente do apocalíptico. A morte é uma suposta chance de se libertar de uma cultura sedimentada. Mas não quer dizer que dará certo, tanto que Lana Del Rey, a título de exemplo, passa a rejeitar isso em determinado momento e investe no sorriso. Entretanto, outras figuras da geração dos melancólicos permanecem nisso, como, além de Eilish, a polêmica cantora Halsey (autodestrutiva nos amores violentos como a cantora P!nk em seus últimos trabalhos – a exemplo de Please Don’t Leave Me –, ambas igualmente perdidas na saída para a rua à noite e no retorno apenas no outro dia, pela manhã, embriagadas, após arrumarem confusão e escapar da polícia, num modelo de juventude rebelde, como vemos nos videoclipes de Without Me e Nightmare, de Halsey) e o cantor Khalid (preso em uma jaula e preparado para o abate em Lovely, que conta com a parceria de Billie Eilish).
Além desses, o que dizer também do brasileiro Jão, inserido na mesma “cultura do YouTube” dos anos 2010 e na mesma veia melancólica, servida da estética vaporwave à nostalgia da infância, da produção memética (dos memes) à sustentação de uma linguagem digital (e geracional dos mesmos anos 2010), trazendo para discussão em suas composições uma atmosfera homossexual estranhamente militante nas mesmas redes sociais e nesses grupos construídos com intuito de sobrevivência e compartilhamento de um mesmo afeto? O que dizer de Duda Beat, “a princesinha melancólica do manguebeat”, que reivindica o pop e também desativa seu corpo por essa mesma melancolia dentro do pop? Como não assimilar a performance da mulher vulnerável e entorpecente de Dua Lipa, como se estivesse dotada de Beladona ou de um “Boa Noite, Cinderela”, à performance do “queria estar morta” de Lana Del Rey em Dark Paradise, tida igualmente como “de dar sono”, como se seus corpos estivessem realmente desativados? Na mesma medida, estão MØ e Marina & The Diamonds e suas nostalgias fancy, falsamente e mercadologicamente elaboradas para parecerem saudosistas, mas que, no fim das contas, expressam uma cultura do culto ao passado, reivindicando a mesma celeuma entre as temporalidades – como vemos nos clipes de New Year’s Eve e I Want You, de MØ; e como vemos nos videoclipes Oh No! (visivelmente datado na estética das produções de videoclipe do início de 2010) e Blue, de Marina.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
______. O uso dos corpos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.
SERELLE, Márcio. Uma outra república do entretenimento. Rumores, São Paulo, v. 4, n. 8, p. 1-11, 2010. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/51202. Acesso em: 5 out. 2019.
VIEIRA, W. D. Coney Island e a nostalgia de um “divertimento irresponsável” em Lana Del Rey. Temporalidades, Belo Horizonte, v. 10, n. 3, p. 289-309, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/article/view/6180. Acesso em: 5 out. 2019.
NOTAS
[1] Na cultura midiática, melancolia e tristeza se confundem a todo tempo. O que é essa melancolia? A melancolia ronda o mundo e nossa relação com o tempo é melancólica, ora usando dela para sobrevivermos (como vemos em Walter Benjamin, Renato Russo e Lana Del Rey), ora revelando a melancolia por meio da crueldade do mundo cedendo a esse mundo e suas rédeas, suas opressões (como vemos em Xuxa ou Britney Spears), mas revelando ainda a mesma melancolia, isto é, nosso esfacelamento no tempo e as inconsistências desse tempo em nossas vontades e nossos usos dele.
[2] Por meio dessa lógica, podemos compreender a ideia de inoperosidade em Agamben (2017), que pode ser assimilada como uma busca pela ontologia dos corpos, uma estética de comunicação emancipatória, um “curto-circuito” dos corpos que os faz acessar sua essência e se desativar das amarras do capitalismo, de uma cultura sedimentada, subvertendo a lógica de controle e atualizando essa chamada “sociedade disciplinar” para uma suposição de não alcance.
[3] Atritos referentes ao “gesto político” precisam ser levados em conta nesse caso. De um lado, há, na história, como ocorrido no Brasil no período colonial, a virada para o entretenimento como “gesto político”, embora ele pouco ajude na compreensão de nossa realidade, dada a concentração deste nas mãos de uma elite, e não necessariamente econômica (SERELLE, 2010). Por outro lado, a questão levantada por nós agora é a possibilidade do engajamento político nesse gesto por meio de um semblante da melancolia não aquietado ou confortado por um comodismo (mas sim, manuseado pelo mercado em sua medialidade e, por essa mesma medialidade, revelador de sua desativação, de sua “mobilização desativadora” – a inoperosidade).
Créditos na imagem: Cena do clipe de National Anthem, com um dos semblantes da melancolia de Lana Del Rey. Foto: Reprodução/YouTube – Lana Del Rey.
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William David Vieira
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