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O silêncio emancipatório: algumas dicas de como calar a própria boca quando necessário
As Ciências Humanas e os Desafios do Século XXI

O silêncio emancipatório: algumas dicas de como calar a própria boca quando necessário 

 

Se a linguagem é uma ferramenta, um recurso usado todo dia, mesmo quando não percebemos, ela provavelmente tem seus limites, assim como um martelo tem suas limitações. A existência de um instrumento depende das características do seu material, o seu tempo de uso, além do seu contato com o que existe ao redor, o que Heidegger chamou de configuração. Não importa se feita de ferro, aço, ou diamante, não importa se é usada com cuidado ou agressividade, o limite não é um detalhe opcional, mas uma constante que atravessa cada matéria no mundo, já que todas estão expostas ao tempo e aos obstáculos da vida. Até mesmo um sujeito pretensioso, capaz de justificar cada centímetro da realidade, continua apresentando um limite, um instante em que a palavra e o corpo não chegam mais, um momento em que eles falham e silenciam. Segundo a psicanálise lacaniana, esse “silêncio bastante sutil” é o espaço da verdade, o lugar que interessa, além da fonte do próprio conhecimento. Parece irônico que o silêncio seja associado ao saber, o que fere toda aquela bagagem ensinada nos cursos de Humanas e Sociais, espaços em que a fala é a senhora absoluta de todos os destinos, sejam humanos ou não.

Aprendemos com as Ciências Humanas e Sociais que a verdade é algo de epistêmico, uma fala, um conjunto de interpretações elaboradas por alguém, de preferência extraída do núcleo da própria realidade, como um minerador extrai a matéria bruta das profundezas da terra. Quanto mais eu nomeio, quanto mais classifico, mais o mundo se apresenta de uma forma “clara e distinta”, como diria um bom cartesiano. O critério é óbvio, sem dúvida, nada mais do que uma busca incansável pela “transparência” e pela “simplificação”. Se algo existe, se de fato participa daquilo que chamamos de mundo, então pode ser nomeado, pode ser inscrito nas malhas da linguagem, sem qualquer problema ou resistência. A “verdade”, dizem por aí, é apenas uma forma de “Saber”, um discurso, em outras palavras, ela é apenas um assunto de linguagem, de representação. Ao menos é assim que contam a história. Se existe algo lá fora, para além dos muros das ideologias e da má consciência, é possível (e é preciso) nomear, trazer à tona, na medida em que a verdade nos esclarece, ao mesmo tempo que nos conforta. Se eu nomeio, tenho controle, se tenho controle, não tenho medo, se não tenho medo, posso dormir sossegado em minha cama confortável.

A psicanálise, com sua estrutura bem genealógica de linguagem, segue um rumo alternativo, descentrado, bem diferente daquele que estamos acostumados. A verdade aqui não é bem um discurso, muito pelo contrário. Mesmo sendo um significante, ele é oco, vazio, nada mais do que uma carcaça perdida em vínculos diferenciais. Ela não é um discurso, mas a ausência do discurso, o instante em que a palavra falha, quebra, implode, derrete. Nesse momento de implosão, nem um pouco agradável de presenciar, o sujeito percebe a si mesmo em um espaço complexo, descentrado, sem fronteiras claras e, principalmente, sem uma casuística conveniente. A verdade na psicanálise, portanto, opera como uma rede, embora seja uma rede desejante, um corpo que se conecta de várias formas, o tempo todo. Enquanto transcendentais oferecem causas, culpados e fundamentos simples e óbvios, a verdade enquanto rede convida cada um de nós para o universo dos diplomatas, daqueles que precisam negociar o tempo todo com um mundo autônomo, complexo e muitas vezes frustrante.

Ao entrar de cabeça na atmosfera acadêmica, respirando cada contorno da sua arquitetura asséptica, aprendemos que a “fala” é o grande critério, a chave de entrada no paraíso dos fatos, proposições e premissas. É preciso sempre nomear, interpretando tudo, o tempo todo, o que também acaba sendo um tipo de vantagem epistêmica. Aprendemos que a inteligência de alguém é proporcional à sua capacidade de extrair interpretações, de conectar pontos e, principalmente, de evitar o ritmo das CONTINGÊNCIAS. O silêncio, nas Ciências Humanas e Sociais, sempre foi visto como algo desprezível, muito repugnante, nada mais do que uma postura conservadora de uma consciência alienada. Ser progressista, pelo contrário, é acolher a fala, além de toda sua cadeia de significantes, afastando de si não apenas o silêncio, mas qualquer mancha contingente presa no tecido das relações. De um jeito bem irônico, na fronteira do próprio sarcasmo, a psicanálise, ao menos a lacaniana, oferece um caminho não apenas distinto, como também oposto.

O gozo do blá-blá-blá (Jacques Miller), entendido aqui como a mania representacional e desesperada de estabelecer vínculos sólidos entre significantes e significados, lembra bastante traços de paranoia, uma busca alucinada por um grande sistema, uma estrutura que conecta cada detalhe do que acontece, sem deixar aparentemente nenhuma aresta, nenhum excesso. A diferença é que essa paranoia é institucional, e não clínica, recompensando assim todos os envolvidos, na medida em que reproduzem seus critérios. Se a paranoia subjetiva (psicológica) é punida pela sociedade, através de repreensões, xingamentos ou outras medidas mais severas, a paranoia institucional, ao contrário, recompensa seus filhos e filhas com diplomas, notas e outros presentes simbólicos. Quanto mais a CONTINGÊNCIA é varrida de cena, e os significantes tomam conta da superfície do mundo, mais o teórico é considerado como uma criatura inteligente, crítica. Mas seria essa apenas a única possibilidade? Será que em um mundo onde todos falam o tempo inteiro, e interpretações de bolso atravessam todos os bolsos, o silêncio, talvez, não seria algo também convidativo?

 

 

 


Créditos na imagem: Mathilde Aubier.

 

 

 

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