Um dos primeiros artigos que me marcou e que li com afinco quando começou a pandemia de Covid-19 foi um sobre luto. Não pelas mortes que viriam, mas pela vida antes dela e pela perda de pequenas coisas, às lembranças das quais eu pelo menos me aferrei de forma bastante intensa, por me dar conta de que não saberia quando poderia tê-las de novo, se poderia tê-las de novo. Uma delas é o futebol. Às vezes procuro lembrar do último jogo do meu time que vi inteiro, em um bar, com os olhos na televisão mas discutindo com meu melhor amigo coisas disparatadas. Naquela noite, já distante, o Grêmio ganhou e nos despedimos peculiarmente nem um pouco tristes que, por outros compromissos, nenhum de nós dois veria o próximo jogo, no dia 12 de março: o primeiro grenal da história disputado em uma Libertadores. Para os sensatos, grenais nunca são jogos bem vindos, muito menos quando valem alguma coisa.
Escrevo este texto no dia seguinte à primeira partida que meu time disputou desde então. Justamente um grenal, mas pelo campeonato estadual. O Grêmio ganhou. Eu, novamente, não vi. Ouvi os gritos quando houve o gol, que foram sequestrados por imprecações contra o presidente da república. Outro amigo me descreveu o lance em termos técnicos: “de chiripa” (i. e., um gol feio). Ele é torcedor do rival e, portanto, eu teria de aferir a veracidade dessa sentença, mas não quero. Desde que a pandemia começou, me encontro definitivamente nostálgica.
Para além das particularidades do isolamento social no Brasil (que podem ser ouvidas sendo esmiuçadas brilhantemente por Lidiane Rodrigues aqui), o início da pandemia em geral foi marcado por alguns aspectos bastante dissonantes materializados em atos cotidianos desesperados como, por exemplo, não saber o que se lavar primeiro depois das saídas de casa: se as compras, as mãos, os sapatos ou a maçaneta. Um dos primeiros indícios desse atabalhoamento higiênico que me chamou a atenção foi justamente um jogo do campeonato inglês no qual os jogadores não se cumprimentaram como normalmente fazem previamente ao início da partida. Fiquei rindo sozinha pensando que nenhum daqueles homens ia abdicar uns dez minutos depois de entrar em contato com o corpo alheio. Logo em seguida cancelaram-se todos os jogos. Culpou-se um bastante animado Atalanta e Valencia pela Liga dos Campeões por ter causado o surto da doença em Bergamo, na Itália. Os canais de televisão voltados aos esportes, portanto, tiveram de recorrer aos arquivos para preencher suas grades de programação. Emergiram elas, as reprises.
Um dia após meu aniversário, em uma tarde de domingo em abril, ouvi um grito, seguido de fogos. Liguei a televisão e Ronaldo Nazário tinha acabado de fazer o segundo gol contra a Alemanha na final da Copa do Mundo de 2002. Outra dissonância, que momentaneamente passou a fazer parte de nossas vidas: comemorar o que já houve como se fosse ao vivo. Os redutos da internet que frequento começaram a ter debates circulares sobre a seleção de 82 e sobre a seleção de 70. Em outra situação bastante peculiar, uma noite me vi jantando enquanto assistia à final da Copa do Mundo de 1978 narrada por alguém cuja voz minha cabeça ainda associa a semi-assistir, na semi-letargia do verão, as primeiras rodadas do campeonato gaúcho. Para piorar a situação, enquanto a Holanda perdia no Monumental de Nuñez para os donos da casa, era anunciado que a final a ser exibida na semana seguinte seria a mesma Holanda perdendo o Mundial de quatro anos antes para a Alemanha Ocidental. A nova ordem do tempo, caracterizada como presentista por François Hartog (2013) ou como “presente amplo” por Hans Ulrich Gumbrecht (2015), parecia ser na pandemia também a desordem do tempo e não apenas no cotidiano de quem está fazendo home office. Sem futuro, com um presente a conta-gotas, só nos resta(va) esse passado catado de uma prateleira, onde se poderia ver muito mal pessoas de quem eu em particular muitas vezes tinha apenas ouvido falar ou assistido em madrugadas insones no YouTube, junto àqueles marcadores de outra época: homens fumando à beira do campo, propagandas de coisas que não existem mais, pessoas assistindo às partidas em pé nas arquibancadas. E apesar de inicialmente contemplar essa realidade com certo horror, comecei a me dar conta, na medida em que começaram as pressões para se retornar com os campeonatos de futebol no Brasil, que talvez isso não fosse tão ruim assim.
A nostalgia também já foi ela própria considerada um transtorno de saúde. O termo foi cunhado nos últimos anos do século XVII por um estudante de medicina suíço para designar um mal que afligia de soldados a trabalhadores e trabalhadoras domésticos europeus. Svetlana Boym, em sua história desse fenômeno, no entanto, a considera um sentimento histórico, um sintoma do período que vivemos e da nossa relação com o tempo e com o espaço e, no fundo, uma rejeição da ideia de modernidade, da história e do que é chamado de progresso (BOYM 2017, 157-158). Ela é também marcada por ambivalências, na medida em que pode facilmente produzir certos “monstros” políticos: certa nostalgia por certo período ditatorial brasileiro e seus resultados na política nacional atual é evidência o bastante desse potencial. Boym divide a nostalgia em dois tipos: uma restaurativa, essa que está associada à ideia de tradição e de nação e que se pretende verdade; e outra reflexiva, ciente da impossibilidade do retorno a esse passado pelo qual se anseia, calcada no afeto e nas possibilidades apresentadas por esse não estar. Ela pode, inclusive, se apresentar através da ironia e do bom humor (idem, 161). Algo como celebrar invasões de cachorros em campos de futebol nos quais elas ainda acontecem, em oposição àqueles onde não.
Esportes em geral se querem nostálgicos e não apenas por seu desenvolvimento estar associado à indústria de massa do século XX. Poderíamos aqui considerar um aspecto que escapa o espaço desse simples ensaio e constatar que há neles um ato de memorialização instantânea: atletas “fazem história” a todo momento e muitas vezes viram estátuas quando ainda em vida. Além disso, por mais que o plantel atual do seu time seja bom, sempre haverá um homem mais velho para dizer que “aquele” e não “esse” time é que era bom. Há também de se considerar que outro sintoma da nossa relação com o tempo atualmente é que nos relacionamos com o passado muito mais através da chave da memória do que da história, o que se reflete no surgimento do desejo de conservação do patrimônio (HARTOG 2013, p. 193) e também de um consumo do passado manifestado não apenas no colecionismo do que é antigo, mas sim na própria fabricação desse antigo, como abordado por Andreas Huyssen (2003, p. 14). Refiro-me aqui à indústria retrô, que atingiu também o universo futebolístico paralelo à acelerada transformação do esporte em uma commodity e também ao processo de demolição ou reforma de muitos estádios considerados “velhos”. Essas transformações estão atreladas à elitização do acesso aos jogos, um fenômeno bastante interseccional, pois, estão contidos nele questões de classe, raça e gênero. Um exemplo disso é a defesa da ideia de um estádio “para as famílias”, acolhedor a mulheres e crianças e no entanto apenas disponível para um certo tipo de família e de crianças. No Brasil esse processo foi especialmente embalado pela Copa de 2014 e tem sido amplamente abordado no âmbito acadêmico; registro aqui os trabalhos legados pelo geógrafo Gilmar Mascarenhas e os ainda produção pelo antropólogo Arlei Damo.
No entanto, algumas formas de resistência a esse processo surgiram, e elas se dão justamente de forma nostálgica, no modo reflexivo ao qual Boym se refere, manifestando um desejo por se frear as transformações no futebol impostas pelo mercado e em nome do que chamam de progresso, embora cientes de que um retorno ao que se era não é de todo possível. Esse desejo era visível nos estádios na forma de faixas com os dizeres “Não ao futebol moderno” e em outras que muitas vezes se contrapunham a valores defendidos pelas autoridades do esporte; uma favorita de minha parte no antigo Estádio Olímpico dizia “Anti Fair Play”. Mas aqui irei deter-me especialmente a um projeto surgido em 2004 em Porto Alegre, primeiro como programa de rádio e depois como blog chamado Impedimento, dedicado ao futebol sul-americano.
Espero que os fundadores e colaboradores do projeto não se ofendam quando digo que o Impedimento foi e é um exercício de nostalgia, mesmo entendendo que sua proposta inicial fosse de cobertura jornalística dos campeonatos sul-americanos e que eram ignorados pela imprensa brasileira. A questão é que no mundo esportivo do século XXI, preocupar-se com o futebol dos demais países sul-americanos enquanto a imprensa mainstream dedicava espaços de sua programação cada vez mais amplos ao futebol europeu dito civilizado já me parece nostálgico o suficiente. O futebol europeu – ou melhor, um certo discurso sobre o futebol europeu – parecia ser o futuro inexorável desse esporte nos outros países do mundo ou pelo menos algo parecido ao que eles deveriam almejar. Mais de uma vez, em episódios de violência entre torcedores no Brasil, vi jornalistas em suas bancadas citando a transformação do futebol na Inglaterra nas últimas décadas do século XX – tida meramente como resposta ao hooliganismo e às tragédias de Heysel e de Hillsborough – como um exemplo desejável.
Celebrar, portanto, cenários e personagens de um futebol popular, em estádios rústicos, onde sinalizadores, papel picado, entre outras práticas que aos poucos foram deixando de ser permitidas nos estádios brasileiros, me parece ser um exercício de nostalgia sobre o próprio presente, na medida em que, quando o Impedimento surgiu, muitas dessas transformações estavam em marcha, visando já a Copa de 2014. Um exemplo é um texto de 2011 de autoria de Iuri Müller sobre a mudança de sede do clube argentino San Lorenzo de Almagro causada pelos projetos de urbanização da ditadura militar argentina, o qual, entre a demolição de um estádio e a construção de outro, o fez jogar em canchas alheias por mais de uma década. Quando por fim teve seu Nuevo Gasómetro, a torcida não se adaptou, sentiu-se que o bairro novo não teria acolhido o clube e o desejo de regressar a Boedo fez surgirem protestos pelo retorno. Nos comentários ao texto, a associação que muitos dos leitores fizeram à época foi à mudança que se concretizaria nos anos seguintes, em Porto Alegre, do Grêmio ao seu novo estádio no bairro do Humaitá, bastante distante da Azenha. Como outros tantos textos ali, um ensaio sobre a perda (e sobre o medo dela).
Hoje em dia, o Impedimento está ativo ainda apenas através de sua conta de Twitter, oferecendo comentários ocasionais sobre o estado atual do esporte na América Latina. Um exemplo que confirma sua postura editorial foi o tweet em que congratulou o Estádio do Maracanã pelos seus 70 anos, que “teriam sido” completados se o estádio “estivesse vivo”.
Colocando-se como herdeiro do Impedimento, o projeto Puntero Izquierdo é ainda mais abertamente nostálgico, pelo menos em seu “manifesto”. Dedicado a reportagens mais longas e não à cobertura diária de campeonatos e torneios, o site promoveu um dos eventos mais interessantes dos primeiros meses de isolamento social prévio ao retorno dos campeonatos: um torneio de contos. Chamado Torneio de Contos Mario Benedetti – autor do conto que dá nome ao portal – a disputa contabilizou mais de 240 inscrições. Os selecionados foram organizados em oito grupos com nomes de clubes pequenos sul-americanos e os contos, publicados anonimamente, eram submetidos a uma votação simples. Os vencedores depois se enfrentariam em uma etapa de mata-mata. Já quando os primeiros textos apareceram, quase todos, em sua maioria, apresentavam cenários de um futebol plural e popular, jogado não apenas nos grandes estádios, mas também em praças e na várzea, por pessoas comuns. Extrapolavam as fronteiras do Brasil, se passando muitas vezes em países vizinhos e apresentavam a relação visceralmente cotidiana que a sociedade sul-americana tende a ter com esse esporte. O futebol era assunto de trincheira de guerra, era motivo o bastante para querer se alterar a realidade, e os estádios serviam de combustível e/ou pretexto para encontros amorosos e estreitamento de laços familiares. O vencedor, parecendo sublinhar minha sensação de inegável nostalgia ao lê-los, trata de um faroleiro de Cabo Polônio, no Uruguai, que teve sua carreira de futebolista abortada por uma lesão. Estranha e possivelmente informada pelo filme recente O Farol, imaginei a coisa toda em preto e branco.
Quando o futebol europeu foi retomado, sem torcida presente, foram variadas as manifestações de que aquilo não seria futebol de verdade, pois a multidão (ou não) faria parte do jogo (e, de fato, faz: recentemente se divulgou que sem torcida, os árbitros mudaram sua forma de tomar decisões). É complicado afirmar que a demanda dos clubes pela volta dos campeonatos no Brasil seja um sinal de que não estão em sintonia com a sociedade, já que o isolamento social por aqui está longe de ser uma unanimidade. No entanto, esse retorno pelo retorno, para cumprir tabelas e contratos, colocando jogadores e funcionários dos clubes em risco, em um momento em que as UTIs seguem cheias e o número de mortos no país – que se saiba – já tenha passado há tempos de lotar seu maior estádio, apenas aprofundou minha sensação de perda em relação à vida de antes.
Na minha vida de antes havia o futebol, mas ele não existia sozinho, por mais que muitas vezes assistisse aos jogos falando para as paredes em casa, isolada antes do isolamento. No entanto, ele servia também para, no que hoje seriam flagrantes contravenções sanitárias, eu ver meus amigos, sentar em um bar e tomar uma cerveja, abraçar esses mesmos amigos e até desconhecidos no estádio, para caminhar distâncias esdrúxulas e ficar de pé segurando a respiração, aglomerada entre estranhos, esperando ou vendo o improvável acontecer. Nada disso é possível hoje. Nesse momento, se estamos presos a um presente eterno, esperando tudo isso passar, sinto até certa preferência por ficar vendo os fantasmas nas reprises, com homens fumando à beira do campo entre propagandas de bancos que já faliram, quando ainda existia algum resquício daquele futebol não moderno, que, com a imagem quase sempre turva, está tão distante de agora quanto o “velho” normal.
REFERÊNCIAS
BOYM, Svetlana. Mal-estar na nostalgia. História da Historiografia, n. 23, p. 153-165, 2017
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Nosso amplo presente: o tempo e a cultura contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2015
HARTOG, François. Regime de Historicidade. Belo Horizonte: Autência, 2013
HUYSSEN, Andreas. Present pasts: urban palimpsests and the politics of memory. Stanford, CA: Stanford University Press, 2003
Créditos na imagem: Foto de Carlos Roberto de Oliveira/ Reprodução. Disponível em: https://college.canon.com.br/concursos/fotos/15806
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