O vosso reino, Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2019, é o romance de estreia de Warley Alves, historiador de formação, atualmente cursando o doutorado em história na Universidade Federal de Minas Gerais, no qual pesquisa as relações entre história e literatura, tendo como pano de fundo a Revolução Mexicana. Warley, por meio de uma linguagem simples, constrói uma distopia que muito se relaciona com o atual contexto político e social do Brasil. Ainda sobre a linguagem, o leitor que for natural de Belo Horizonte ou que tenha passado uma estadia na cidade, perceberá algumas marcações linguísticas típicas, assim como o inevitável paralelo entre Liberdade, cidade na qual o romance se passa, com a capital mineira.

Acompanhamos no livro a história de três amigos: o casal Adon e Lara e o melhor amigo de ambos, Daniel, universitários estudantes de engenharia, administração e filosofia, respectivamente, da Universidade Pública de Liberdade (UPL). A cidade em que a trama se passa fica localizada num país fictício governado pelo Partido Laboral (PL), partido de centro-esquerda que ocupava o poder já há algum tempo e que vinha se desgastando com recorrentes acusações de corrupção e com a insatisfação da classe média. Nesse contexto, uma série de manifestações contra o governo ganham força e levam ao fortalecimento do discurso reacionário sintetizado na Frente Nacionalista, partido que unia nacionalismo, fundamentalismo cristão, desprezo pelas minorias e que propunha limpar o país de “desviados” como homossexuais, prostitutas, corruptos, entre outros.

Dessa maneira, Warley mescla realidade e ficção (ou a realidade se mescla a ficção imaginada por ele), construindo uma distopia que a cada dia vai se mostrando mais presente no cotidiano brasileiro. Passagens nas quais grupos de manifestantes tomados por ódio criado por uma espécie de alucinação coletiva são refletidas em falas como “Abaixo o comunismo”, “vai pra Cuba”, “nossa bandeira jamais será vermelha” (ALVES, 2019: 167).  Por outro lado, o medo dos oprimidos também é representado no romance, principalmente na figura de Talita, travesti que, sofrendo constantemente com agressões e perseguições, ao observar uma outra travesti encenando ser crucificada numa manifestação, toma consciência do seu lugar dentro daquela sociedade, como nos conta o narrador:

Talita, olhando para aquela imagem e refletindo um pouco, se deu conta de sua própria condição: pessoas como ela não eram apenas marginalizadas na sociedade em que viviam: para aqueles que se julgavam “pessoas de bem”, elas eram a materialização do ódio por aquilo que era diferente; o câncer que deveria ser extirpado; o mal que ameaça a ordem e a perfeição criada pelo seu Deus. Um Deus feito sobre a imagem e semelhança do Homem Branco (ALVES: 2019: 128).

Em uma análise recente sobre o livro, o também historiador Igor Tadeu Camilo Rocha (2019: n.p.)afirma que a narrativa desenvolvida em O vosso reino traz para a ficção dramas reais que geram identificação do leitor que pode até mesmo ter vivido algo semelhante. Ainda segundo ele, o livro é um romance que consegue atingir a sensibilidade do leitor e, dessa maneira, oferecer chaves de leitura da realidade. Assim, a narrativa de Warley “constrói uma chave crítica nesse sentido, remetendo a memórias e vivências de uma história brasileira recente num espaço fictício, sem perder de vista questões universais da experiência humana em meio a contexto de barbárie”. Porém, como escreve Luiz Fernando Amancio (2019: 11-12), outro historiador belorizontino que se aventurou pela literatura, no prefácio do livro:

Para a criatividade, sobretudo, levar os eventos para um país fictício é importante para Warley. Embora esteja inspirado em nossa triste conjuntura, o livro não está condicionado a ela. O leitor não estará diante de uma narrativa datada. O autor expande sua análise e pode, inclusive, se permitir projetar possíveis futuros.

Nesse sentido, é possível depreender do romance elementos  para pensar questões referentes à própria banalidade do mal, tão bem trabalhada por Hanna Arendt (1999) em seu livro Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. Isso aparece principalmente na falta de reflexão por parte de alguns personagens sobre atos brutais ou mesmo a sua justificativa em prol de um “bem maior” representado pela nação. Também a “brutalização” da qual fala George L. Mosse (1975; WINTER & LEFEBVRE, 2001), ao se referir à perda da empatia e capacidade de sensibilizar com o sofrimento alheio presente em sua análise sobre o regime nazista é, de certa forma, retratada em O vosso reino.

Outro ponto de destaque do livro é a forma como demonstra a compatibilidade de ideais autoritários com o mercado. O discurso opressor converte as minorias em produtos lucrativos dentro de um sistema que visa “corrigir os desviados”. No livro, essa pauta é representada, principalmente, pela “cura gay”, que se torna lucrativa para membros da Frente Nacionalista que dividem entre si as etapas de um processo macabro e desumano, mas igualmente rentável. Warley demonstra, assim, algumas das mais terríveis consequências que podem advir da fusão entre fundamentalismo religioso, autoritarismo e mercado.

Acompanhar o desenvolvimento dos três protagonistas em meio a um contexto de aumento da polarização e todas as questões e dramas que isso lhes causam, dão a eles características próximas as de qualquer brasileiro que vivenciou os últimos anos no país. Questões cotidianas aos brasileiros nos últimos tempos, como as de ver pessoas queridas assumindo posições duvidosas de apoio a medidas autoritárias em nome de uma “limpeza moral” e anticorrupção, fazem parte do drama vivido pelos protagonistas. Toda a desesperança que os setores mais progressistas sentem em contextos como esses também é apresentada na narrativa, fazendo com que qualquer leitor que se identifique com essas pautas simpatize e empatize com alguns personagens. De maneira a poder sentir até algum mal-estar em determinadas passagens que deveriam ficar restritas somente à ficção.

Por estas e tantas outras, O vosso reino apresenta-se como uma leitura fundamental para quem pretende e deseja compreender melhor o atual contexto político nacional em sua complexidade abarrotada de absurdos. E também para quem deseja conhecer um novo e promissor autor e deliciar-se com uma narrativa fluída.

 

 

 


REFERÊNCIAS

ALVES, Warley. O vosso reino. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2019.

AMANCIO, Luís F. Prefácio. In: ALVES, Warley. O vosso reino. Rio de Janeiro: Jaguatirica, p. 9-12, 2019.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 [1963].

MOSSE, L. George. La nazionalizzazione delle masse. Simbolismo politico e movimenti de massa in Germania (1815-1933). Bologna: Società editrice il Mulino. 1975 [1974].

ROCHA, Igor, T.C. Um longo anoitecer sobre a liberdade. Justificando: mentes inquietas pensam direito. 2 de dezembro de 2019. Disponível em: https://www.justificando.com/2019/12/02/um-longo-anoitecer-sobre-liberdade/?fbclid=IwAR0xpCN0VwJW3oxJhynph6KaKE8t4mahm5MadOAYiVIQ2rk0zA9eiV7WEvA [Consultado em 03/01/2020].

WINTER, Jay; LEFEBVRE Frédéric. De l’histoire intellectuelle à l’histoire culturelle: la contribuition de George L. Mosse. Annales. Histoire, sciences sociales. 56 année, n. 1, 2001, p. 177-181.

 

 

 


Créditos na imagem: Capa do livro ALVES, Warley. O vosso reino. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2019, p. 241.

 

 

 

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