“Tem dois neguinhos. Um morava na Jamaica. Outro mora no Brasil. Um se chamava Bob Marley. Outro é Gilberto Gil”. O som do contrabaixo e da percussão nos conectam nas Américas.
Seja no atabaque ou no bongô, há um mistério inegável no som grave que toca do Brasil até a Jamaica. As ondas do “Atlântico Negro” regaram a costa brasileira no passado e agora voltam com a maré até a costa das Américas, onde aproximaram Lagos de Salvador e Kingston de Londres. Quando se fala de origem não se discute que o samba e a batucada são símbolos culturais brasileiros, mas esses sons que caracterizam o Brasil e os tambores da América Latina estão além de terem uma raiz única nesses batuques que se espalham pelos ritmos musicais. A influência desse intercâmbio musical não procura mais buscar uma “raiz original” das músicas latinas, brasileiras e negras, mas entende a premissa explorada em “O Atlântico Negro” de Paul Gilroy de que esses estilos compartilham uma herança do som produzido na colônia brasileira e de um conjunto “emaranhado” de produções de fora do continente que influenciavam ao mesmo tempo que se deixavam influenciar, como é o exemplo da língua Iorubá, que através desse trânsito entre Brasil e África foi criando sua forma em raízes compartilhadas. Nesse mexido entram o reggae, o dub, o samba, o afrobeat e o axé, que para as populações daqui e de lá deixam de ser só música e se tornam alimento, espírito e política.
Na década de 80, São Luís se tornou a “Jamaica Brasileira” por popularizar o reggae na capital, onde a música chegou através de marinheiros que na falta de dinheiro para pagar por serviços que consumiam nos prostíbulos, usavam de discos jamaicanos de reggae como pagamento. Foi dito que o ritmo contagiou a população da cidade do Maranhão pelo compartilhamento de descendência africana que possuíam os moradores do nordeste brasileiro para com os marinheiros jamaicanos. Mas além dessa ligação de sangue, as duas populações se identificam nesses tambores que tocam na Jamaica e na música de matriz africana produzida pela cena brasileira, pelo compartilhamento de significado e sensação que essas músicas despertam, essa manifestação musical se comunica nos reinos dos sentidos das populações periféricas e fazem os maranhenses sentirem em seus bailes a mesma emoção sentida pelos jamaicanos em seus “Sound System”. As linhas de baixo do som do reggae e do dub agem nos corpos e como dito por Lee “Scratch” Perry tem algo nesse som grave dos rocksteady e do reggae jamaicano que bate exatamente como um coração e que se sente nas pernas, nas barrigas e na mente. As ondas de grave do contrabaixo atingem as massas e as afetam.
Em uma entrevista para o documentário Dub Echoes (2008), o rapper e produtor de música jamaicana Roots Manuva (Rodney Smith) mostra como esses ritmos falam com o corpo,
“Eu consigo lembrar de algumas vezes, ouvir a banda da igreja tocar, e algumas vezes quando você estava com fome, o baixista da banda conseguia tocar uma linha de baixo que te ajudavam a esquecer sua fome. Eu tenho certeza que algum dia eles vão descobrir que pode se usar linhas de baixo pra curar as pessoas de sua dor. ”
O axé na Bahia, no início do seu movimento cultural, era conhecido como samba-reggae e assim como o ritmo caribenho também usa seus tambores para afetar os corpos. Quando Daniela Mercury e Caetano Veloso descrevem no filme “Axé – Canto do Povo de um Lugar” sobre sua experiência de primeiro contato com o axé no carnaval da Bahia em 1987, relatam sobre uma “música estranha” e um “ritmo desconhecido” que carregavam multidões e que ao ouvir o grave, fazia a pele arrepiar, em seu relato os músicos brasileiros descrevem o efeito dos tambores do Olodum descendo a rua Chile. Esse ritmo das percussões que tocam no Pelourinho através do axé baiano, se relaciona com o que se toca nos tambores de todo o Atlântico, pois segundo Paul Gilroy essa cultura dispersa compartilha de estruturas de sentimento, produção, comunicação e memória.
A mesma banda Olodum foi palco do cantor Lázaro na Bahia, de onde o cantor compôs sucessos nos tambores da banda, chegando a ganhar disco de platina e de diamante (o alcance do disco seria ainda maior se contássemos a democratização que teve através de CDs e DVDs pirateados pelas bancas de camelôs). Esses sons de baixo e a atabaque podem curar a dor e a fome, da mesma forma que o dub e o reggae fazem na Jamaica. E foi alegando justamente querer se livrar do vício e da dor que sentia Lázaro, que segundo o artista em seu testemunho espiritual, o fez se converter para a religião cristã e buscar se aproximar dos sons produzidos na igreja. A conversão de Irmão Lazáro o fez revolucionar a música evangélica através da inserção do som de baixo e de percussão do Olodum no gospel. A música e a igreja no Brasil e na Jamaica agem nos corpos da mesma forma, livrando-os das dores que o estado não quer se responsabilizar, explorando o território do inexplicável divino. Vemos no estudo de Andrew Chesnut a explicação desse sucesso crescente das igrejas evangélicas onde Chesnut, PhD em História da América Latina, aponta justamente a facilidade que essas igrejas possuem em se relacionar com a músicas dos bairros periféricos, para conseguirem se integrar com as necessidades e com as culturas marginalizadas nessas regiões, sendo elas no Caribe ou no Brasil.
É inegável que a aproximação desses ritmos com as igrejas cristãs ou com as religiões africanas mostra o segredo desse sucesso: uma sensação de compreensão e de identificação desses corpos vindos de populações carentes com misticismos que não tem explicação racional preparada em suas línguas, mas que se manifestam nas danças e na música, um movimento de práxis. Esse algo que permeia os subúrbios brasileiros, em sua resistência estética e física se desdobra fora da santidade dos rituais do velho continente, onde a antiga cultura europeia e a liturgia católica não conseguiram se fixar sem a autofagia brasileira e seu empenho em popularizar as práticas. Esses ritos se modificam e são traduzidos na narrativa poética do samba João Bosco nesse trecho da música “Escadas da Penha”, onde a música tem uma virada de percussão feita por Everaldo Ferreira
“Tá lá o valete
No meio das cartas
No jogo dos búzios
Tá lá no risco da pemba
No giro da pomba
No som do atabaque
Tá lá
E tá no cigarro, no copo de cana
Na roda de samba, tá lá
Nos olhos da nega na faca do crime
No caco do espelho no gol do seu time”
Essas rotinas e hábitos se tornam na cultura popular o próprio campo do exercício de fé, e através de seus ritmos de samba, batucada e reggae o povo vai coroando sua própria liturgia e definido seus objetos de culto. Onde não há cetros, cálices ou coroas, o copo de cachaça, a dança e o baralho se tornam a humilde adoração ao sobrenatural, onde o próprio som produzido pelas massas vai afastando sua dor e sua fome e dificultando a separação do que é religião e o que é baile. Essas questões entrelaçam as relações de origem do axé, do reggae e dos sons latinos e amplificam seus papéis no Atlântico Negro, mostrando o aproximação do Brasil com a Jamaica, onde essa criação de significados perde a raiz linear e objetiva e se mostra como uma teia de origem musical, definindo nesses países a cultura e a religião, o místico e a música, e os ligando ao invisível dos guetos.
Créditos na imagem: Festa de inauguração do Museu do Reggae em São Luis (MA) em 2018 – Foto: Ingrid Barros/Sobre o Tatame.
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Victor Meireles Pinto
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dançando e escrevendo lindoo
Que orgulho vitu, muito boa a escolha do tema e muito bem escrito o texto
Gostei dmais dessa materia, pena que os evangélicos não respeitam a cultura afro, so sabem usar para promover a religião cristã.