Oswald de Andrade nasceu na cidade de São Paulo em 1890, em uma tradicional família de classe média alta urbana. Jorge Amado nasceu em Itabuna em 1912, na fazenda Auricídia, no distrito de Ferradas, região sul da Bahia, em uma família ligada à produção de cacau.
Ambos foram reconhecidos intelectuais atuando tanto na literatura, como escritores modernistas, quanto na política, como militantes de esquerda ligados ao PCB. E ambos, em meados dos nos anos 1930, tiveram a cidade do Rio de Janeiro como cenário de atuação político-intelectual e nela estabeleceram seus primeiros contatos, tornando-se amigos a partir de então.
Mais velho do que Amado, Andrade diria que ter conhecido o jovem escritor baiano teria trazido um renascimento em sua produção literária, a partir do conhecimento dos primeiros livros do escritor. Entre eles, Cacau, Suor e Jubiabá. Para Andrade, “nada talvez ganhe no Brasil, de 30 para cá, a importância de Jubiabá pela revelação de poesia social que esse monumento representa. Já disse em artigo que Jubiabá é um comício, o mais belo comício que o Brasil ouviu depois do Navio Negreiro de Castro Alves” (ANDRADE, p. 31).
Já Amado, seu elogio ao escritor paulista carregava um sentido de reverência ao modernismo de 1922. Para ele, Andrade seria um modernista, único, que teria passado adiante do “modernismo” e “feito o necrológio do movimento e da burguesia do café em novelas candentes de sátira”. Essa literatura seria aquela “contra a qual a reação jogava o ‘romance introspectivo’ de romancistas preocupados com mágicas bestas, vestidos com as calças frescas de Proust, encontrará em 1935 o seu apoio de massas no movimento da Aliança Nacional Libertadora” (AMADO, 1992, p. 251).
Enfim, até aquele momento, meados dos anos 1940, teríamos dois intelectuais, dois amigos. Contudo, veio o ano de 1945 e, com ele, mudanças significativas, tanto no cenário mundial quanto no nacional. E paralela a elas, a amizade entre os dois escritores também passaria por mudanças, dando lugar para as desavenças. Se amigos em tempos obscuros, desafetos em tempos de abertura. E por que isso ocorreu? A resposta, ao que tudo nos indica, estaria menos no campo literário e mais no da política, ou, de forma mais ampla como nos ensina Pierre Rosanvallon, do político (se é que seja possível estabelecer essa divisão). Mas vamos supor que sim, pelo menos para os fins deste ensaio.
No contexto global, o ano de 1945 marcou o final da Segunda Guerra Mundial e, no Brasil, o fim do Estado Novo, getulista (1937-1945). Com ele, surgimento de um processo de abertura política que proporcionou, dentre outras coisas como o retorno de exilados políticos ao país, a ocorrência de eleições gerais. Nesse cenário, ocorreram as eleições gerais em que foram eleitos tanto um novo o presidente da República quanto os membros do Congresso Nacional. E o que isso teria a ver com a trajetória de dois intelectuais talvez mais reconhecidos como escritores do que como políticos?
Acontece que, com o processo de abertura política, políticos, partidos, intelectuais etc. passaram a circular novamente pelas cidades e, junto a isso voltaram a ser autorizados e permitidos a se reorganizarem os partidos políticos. Depois de 8 anos de Estado Novo, e 15 de Getúlio, voltávamos a praticar um pouco de democracia. Com isso, o próprio PCB pode sair da ilegalidade mesmo que rapidamente, e alguns intelectuais ligados a sua militância puderam concorrer às eleições. E foi nesse cenário que Amado e Andrade se desentenderam. E por quê? Com a abertura para eleições, ambos os escritores que se viam em condições de concorrer a uma vaga na Câmara dos Deputados de São Paulo, ambos como representantes do PCB naquele estado, e desejavam candidatar-se à Câmara Federal por São Paulo. Contudo, e o que deve ter despertado a ira do Andrade, se deveu ao fato do partido ter preferido Amado. Se somarmos a isso o fato de, embora fosse um literato famoso, o escritor baiano não era tão conhecido em São Paulo.
Amado é eleito, Andrade se desliga do PCB, ato que chegou a contar com uma carta enviada pelo escritor paulista a Luís Carlos Prestes, em que ele relata o ocorrido e critica as orientações do partido, desligando-se dele. A partir desse momento, Andrade passou a atacar Amado pela imprensa, lugar de atuação que o antropófago nunca havia abandonado de fato. Amado, até onde se sabe, não teria revidado as provocações. Apesar de não se manifestar no contexto dos insultos, ao que tudo indica, ele se manifestou sobre o ocorrido em seu (não) livro autobiográfico, chamado Navegação de Cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, publicado em 1992. Nele, o autor nos diz que teria ficado muito chateado com o fato de Andrade ter afirmado que o escritor baiano o teria sabotado na escolha de seu nome para a eleição de São Paulo, coisa que Amado se defendeu dizendo ter feito o contrário, mas que nem Prestes nutria confiança no antropófago. Do lado de Andrade, não se sabe de nenhum escrito ou manifestação em que apareça alguma referência a uma possível reaproximação dele de Amado. Andrade chegou ao final de sua vida muito doente e debilitado, e morreu no ano de 1954 (Amado viveu quase meio século ainda, falecendo 2001). Em seu (não) livro, o escritor baiano comenta que só foi falar novamente com Andrade próximo a sua morte. Nas palavras do escritor, “só voltei a ver Oswald uma vez, pouco antes de sua morte [1954], num coquetel em São Paulo, estava numa cadeira de rodas, apertamo-nos as mãos, nos emocionamos os dois, sou de choro difícil, saí da sala para não chorar em público” (AMADO, 1992, p. 107).
Talvez nunca saibamos o que realmente ocorreu, se Amado realmente, como acusou Andrade, não o apoiou ou mesmo o sabotou a indicação de seu nome para o partido; ou se Andrade, que havia se referido ao escritor baiano como o novo Castro Alves (depois da publicação do romance Jubiabá), ao chamar Amado de “bardo nazi-baiano”, estaria agindo por puro ressentimento… não importa. Talvez o que nos importe, principalmente em tempos de obscurantismo, negacionismo e anti-intelectualismo, é que o conhecimento histórico é sim importante e que cada vez que nos permitimos voltar ao passado para tentar entender alguma coisa que por lá possa andar esquecido, temos a chance de tentar nos entender melhor, nos conhecer melhor. Mas… e esses intelectuais? O que eles têm a ver com isso? Por que saber sobre o que eles fizeram, o que escreveram, de suas brigas… nos interessa hoje?
Apenas para pegar uma questão, a meu ver central, esses intelectuais foram formadores de opinião, inegavelmente. Em tempos que ainda não existia as redes sociais virtuais, whatsapps e afins, esses escritores eram, via de regra, polígrafos. Escreviam romances, manifestos, crônicas, críticas de várias naturezas, biografias, reportagens para jornais e revistas, poemas, contos, enfim, eram profissionais da escrita.
Explorar, portanto, trajetórias (de) intelectuais que tiveram uma relevante projeção no cenário nacional e internacional (basta lembrar que Jorge Amado foi um autor que, no Brasil, só perdeu em número de vendas para o escritor Paulo Coelho; ou que Oswald de Andrade foi fonte de inspiração direta para o movimento Tropicalista, surgido nos anos 1960) nos ajudam a complexificar e repensar as formas de atuação política no mundo social. Cruzar itinerários, por fim, também nos parece um profícuo caminho para um melhor entendimento das redes criadas e mantidas por esses intelectuais, evitando, assim, cairmos em “ilusões biográficas”, como nos ensina Pierre Bourdieu.
REFERÊNCIAS
AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro: Record, 1992.
ANDRADE, Oswald de; CHALMERS, Vera M. (Vera Maria). Telefonema. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. de M. (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.
ROSANVALLON, Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010.
Créditos na imagem: Ilustração: Felipe Lima (In: Gazeta do Povo. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/comunismo-completaria-100-anos-se-estivesse-vivo-mas-ele-morreu-8iawp24r6abppckkeqsx8nv4r/)
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Grande texto, no sentido conotativo!!
Eterno graduando em Letras, parabéns pelo belo trabalho!!
Um abraço,
Vovó da Aninha!
Bravo Valdeci, bravíssimo!!! Senti seu texto como oxigênio puro, fresquinho, aliviante e revigorante neste momento de agonias em que a fumaça da ignorância e da intolerância aliadas aos sintomas sufocantes do corona virus nos deixam inertes num vácuo trevoso.