Num mundo cada vez mais interconectado e integrado por múltiplas interfaces desafiadoras, torna-se premente a superação de paradigmas fragmentadores do pensamento. Assim, neste texto apresentam-se algumas linhas de enfrentamento das perspectivas compartimentadoras do real. Com esse intuito toma-se como ponto de partida provocações reflexivas oferecidas pelo sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein. Destaca-se um livro de sua autoria que já se tornou referência importante nos debates sobre a atualidade hipermoderna. Trata-se da obra com o sugestivo título O Fim do Mundo como o Concebemos (2002). Para situar este percurso, parece estimulante partir das ideias seminais contidas nesse livro instigante.

Acolhe-se inicialmente uma questão norteadora central. Tal questão servirá de guia. Encontra-se esta indagação chave na obra de Wallerstein citada: “De que maneira os estudos da complexidade e o fim das certezas nos forçam a reinventar o método científico?”. Para o autor, de modo sucinto, o que se tem chamado de estudos da complexidade está relacionado com uma versão de ciência que se choca com a ciência clássica newtoniana (ou cartesiana), qual seja, aquela que defende a compartimentação do saber e a fragmentação disciplinar, invocando uma aplicabilidade universal de princípios teóricos que, entretanto, são questionados atualmente pela própria comunidade dos cientistas naturais.

              As ciências da complexidade, consideradas sob esta perspectiva crítica, são muito diferentes da ciência newtoniana de várias maneiras importantes: a) rejeição da possibilidade intrínseca de previsibilidade; b) a normalidade do sistema se afastar do equilíbrio, com suas bifurcações inevitáveis; c) a centralidade da flecha do tempo. Entretanto, o que mais nos interessa aqui é a ênfase que dá “a criatividade autógena dos processos naturais e a indistinguibilidade entre humanos e natureza, com a consequente afirmação de que a ciência é parte integral da cultura” (WALLERSTEIN, 2002, p. 119). Como é sabido a ciência newtoniana, ao contrário, defende que a “melhor maneira de manejar a complexidade é reduzi-la a partes menores, através da diferenciação e especialização” (WALLERSTEIN, 2002, p. 128).

Wallerstein, ao recuperar as ideias de Ilya Prigogine (1917-2003)1, lembra das duas hipóteses alternativas básicas defendidas pelo eminente estudioso russo. A primeira delas é que “a ciência está em transição para uma nova forma de racionalidade, baseada na complexidade, forma esta que vai além da racionalidade do determinismo e, por isso, de um futuro que já tenha sido decidido”. A segunda é “o fato de o futuro não ser dado; é uma fonte de esperança básica” (WALLERSTEIN, 2002, p. 201). Assim, citando Wallerstein:

Em lugar da onipresença de repetição, estabilidade e equilíbrio, que era a visão da ciência clássica, a ciência da complexidade vê instabilidade, evolução e flutuação em toda parte, não apenas na arena social, mas nos processos fundamentais da arena natural. […] Assim, natureza e humanos não estão separados, e são até menos estranhos um em relação ao outro. (WALLERSTEIN, 2002, p. 201)

 

              Arrematando estes princípios, Wallerstein afirma: “Com o tempo, toda e qualquer estrutura se afasta do equilíbrio. ‘O subjetivo emerge de tudo, como parte deste tudo'” (WALLERSTEIN, 2002, p. 201). Até muito recentemente, convencionou-se admitir a divisão trimodal do saber em ciência natural, humanidades e ciências sociais. Atualmente, assistimos convergirem pontos de vista totalmente diferentes, quando os estudos culturais de um lado, e os estudos da complexidade de outro, “tomaram como alvo atacar o mesmo objeto, o modo dominante da ciência natural desde o século XVII, isto é, o da ciência baseada na mecânica newtoniana” (WALLERSTEIN, 2002, p. 226).

              Os chamados estudos culturais, propagados a partir dos anos de 1960, atacaram o mesmo determinismo e universalismo de maneira semelhante aos cientistas da complexidade: “Atacaram o universalismo principalmente com base na ideia de que as afirmações sobre a realidade social, feitas em seu nome, não eram de fato universais.” (WALLERSTEIN, 2002, p. 227)

              Como se pode constatar, ainda segundo Wallerstein:

Os estudos culturais representam um ataque contra o modo tradicional do saber, que tinha afirmado valores universais no reino do bem e do belo (os chamados cânones), e analisado textos internamente [na cultura] como encarnação dessas apreciações universais. Os estudos culturais insistem que textos são fenômenos sociais, criados em determinado contexto e lidos e apreciados em determinado contexto. (WALLERSTEIN, 2002, p. 227)

 

            Dessa forma, se pode afirmar depois de atravessar o século XX, e já avançando na segunda década do século XXI:

hoje estamos numa situação diferente. Por um lado, os estudos da complexidade enfatizam a flecha do tempo, tema que sempre foi central para a ciência social. [Essa] noção enfatiza a complexidade e admite que os sistemas sociais humanos são os mais complexos que existem. E enfatiza a criatividade na natureza, estendendo assim a natureza algo que antes era visto como característica exclusiva do Homo sapiens. (WALLERSTEIN, 2002, p. 228)

 

Os paralelismos, ou homologias, entre domínios do saber demonstram as simultaneidades epistemológicas destacadas aqui. De modo sintético esta perspectiva integradora, de reconciliação, sugere uma forte interlocução de pesquisa, em busca de novas trilhas através do diálogo com outras áreas do conhecimento. Como afirma Prigogine: “O apelo às Ciências da Complexidade não significa que estejamos sugerindo que as ciências humanas sejam “reduzidas” à Física. Nossa empreitada não é de redução, mas de reconciliação” (PRIGOGINE, 2000). Assim, é possível desenhar a unidade integrada quanto à percepção dos processos de transformação da atualidade, os quais se manifestam tanto na área da cultura quanto na da natureza e da tecnologia (MORIN, 2003).

Desse modo, atinge-se o ponto central desta reflexão – pelo espaço da intervenção, esse talvez seja o ponto que merece ser trabalhado um pouco mais. O foco recai no que se designa de ‘conflito antitético’ entre o ‘tempo da longa duração para a reflexão’2 e as exigências contemporâneas da pressa e ansiedade em dar respostas rápidas a problemas novos. É preciso colocar em questão a sociotécnica, isto é, colocá-la sob o crivo da perspectiva socioantropológica integradora. Contudo, a atualidade nos lança em um mundo admiravelmente novo, para o qual não temos respostas prontas. O fato destes novos enfrentamentos não terem antecedentes na história, torna inútil o esforço ansioso de encontrar na nossa ‘caixa de ferramentas tradicionais e clássicas’ (canônicas), as respostas para esses novos problemas.

À ciência, ainda na sua infância, exigem-se respostas rápidas para problemas que mal começaram a delinear-se nas dinâmicas da cultural e do ambiente, na atualidade3. O que parece urgente é preparar nossa mente para novas exigências do momento atual, marcado pela aceleração histórica, pois esse nos parece ser o momento da ‘reflexão’ e do trabalho de construção de novas matrizes teóricas não-canônicas, isto é, levar a sério a notícia do “fim do mundo como o concebemos”, anunciado por Wallerstein (2002). Assim, enfrentaremos com mais propriedade os problemas verdadeiramente cruciais, relacionados à conservação, preservação e promoção biocultural, ou seja, um novo gerenciamento político do teatro das memórias e dos acervos naturais e culturais em risco de desaparecimento na sociedade global (IANNI, 1993).

O tempo da reflexão e da elaboração de novos quadros de referência científicos, políticos e éticos tornou-se essencial para que possamos dar passos menos dúbios ou equívocos nesses novos domínios, nos quais se exige respostas ético-políticas adequadas aos enfrentamentos com a globalização/mundialização – tomadas aqui como processos vertiginosos de estandardização de padrões culturais e tecnológicos globais (JAMESON, 2001).

Talvez no futuro próximo, com a criação de outras instâncias reflexivas mais integradas, se possa oferecer condições de ir além das demandas mais imediatas; livres de um presente de curta espessura. Como afirma Mattelart, ao traçar os objetivos dos Estudos Culturais na atualidade, é possível enfrentar a ‘desconstrução de uma herança de pesquisa’:

Em tempos em que os pesquisadores e os intelectuais são convidados a se comportar como especialistas e engenheiros do social, respondendo às demandas dos poderes, em que um empirismo instrumental quereria desqualificar as interrogações sobre as condições de produção do saber, uma leitura genealógica só pode reintroduzir questões essenciais. (MATTELART, 2004, p. 17)

 

Sob o domínio do referido ‘empirismo instrumental’, a tecnociência e as sociotécnicas têm oferecido respostas pontuais e provisórias, fruto de uma demanda açodada, que leva ao solapamento das verdadeiras questões epistemológicas de fundo. É preciso encontrar algum modo de resistir e saber esquadrinhar as linhas de força dos atuais enfrentamentos na cena biocultural. Tanto na área da natureza quanto na da cultura, assiste-se novos investimentos avassaladores do capital em (as)saltos vertiginosos, em poucas décadas. Da ‘virada cultural’, se passa rapidamente para a ‘virada cibernética’ e desta para a ‘virada biotecnológica’, avançando a passos largos na engenharia genética; servindo assim de modelo para as novas engenharias culturais em processo de difusão.

              Ao retomar a questão que foi sugerida no início, chega-se ao desfecho desta breve reflexão sobre temas vertiginosos: “De que maneira os estudos da complexidade e o fim das certezas nos forçam a reinventar nosso método científico?”. Wallerstein nos convida a pensar a busca por um caminho possível: “Vivemos num cosmos incerto, cujo maior mérito isolado é a permanência da incerteza, pois é a incerteza que possibilita a criatividade – a criatividade cósmica, e com ela, é claro, a criatividade humana.” (WALLERSTEIN, 2002, p. 302).

 

 

 


NOTAS

 

1  Prêmio Nobel de Química, em 1977, recebido pelos seus estudos em termodinâmica; cujo os conceitos chave, resumindo sua perspectiva, são: “estruturas dissipativas” e “flecha do tempo”.

2  Há similitude com o tempo lógico de Lacan: 1. Instante de ver; 2. Tempo para compreender; 3. Momento para concluir; há sempre uma antecipação vivida na conclusão. Ver O Tempo Lógico e a Ascenção de Certeza Antecipada (LACAN, 1998, p. 205).

3  “Cabe às futuras gerações construir uma nova ciência que incorpore todos esses aspectos, porque, por enquanto, a ciência continua em sua infância.” (Prigogine, 2000).

 

 

 


REFERÊNCIAS

 

CANCLINI, Nestor. Diferentes, Desiguales y Desconectados. Barcelona: Gedisa, 2004.

IANNI, Octávio. A sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

JAMESON, Fredric. A cultura do dinheiro. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2001.

MATTELART, Armand. Introdução aos estudos Culturais. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

MORIN, Edgar. Religação dos saberes. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand, 2003.

PRIGOGINE. Carta para as futuras gerações. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 30 jan. 2000. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3001200004.html. Acesso em: 26 abr. 2024.

WALLERSTEIN, Immanuel. O fim do mundo como o concebemos. Rio de Janeiro: Revan, 2002

 

 

 


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