Em tempos de questionamentos à ciência e sua produção, de restrição às liberdades de expressão e do princípio da laicidade que orienta a organização do estado republicano em perspectiva democrática, universidades, a escola pública e o currículo escolar têm sido alvos de investidas nas redes sociais e em discursos de autoridades constituídas. Discursos põem em questão conceitos e enunciados produzidos por professores da educação básica orientados pelos conhecimentos científicos e diferentes saberes que circulam na cultura escolar e na sociedade. Conceitos com significados baseados em pesquisas científicas são negados e/ou afirmados tendo por base leituras fundamentalistas de doutrinas religiosas. Limites a uma educação escolar realizada em perspectiva crítica e reflexiva são propostos em projetos de lei e deliberações de agências governamentais.
Nesse contexto, o ensino de história e seus professores têm sido alvos preferenciais de ataques que visam restringir as possibilidades de desenvolvimento de pensamento crítico, social e culturalmente contextualizado. Em nossas pesquisas e atividades temos defendido que o ensino de história é lugar estratégico de afirmação de princípios democráticos e de liberdade de expressão e no qual é possível contribuir para a compreensão da historicidade da vida social, a partir de contribuições da História que, como nos ensinou Marc Bloch, é a “ciência dos homens no tempo”.
Ao longo do século XX, o ensino de história – como o de outras disciplinas – foi desenvolvido orientado por perspectivas pautadas por racionalidade técnica que buscavam ampliar a eficiência e eficácia do ensino por meio do uso de técnicas que possibilitavam a rápida e fácil “aprendizagem” baseada, no caso da história, na memorização de fatos realizados por personagens heroicos.
Essa tradição ancorada em narrativa canônica de construção eurocêntrica estabelecida ainda no final do século XIX, adquiriu estabilidade difícil de ser superada. Ensino de história era entendido como atividade de transmissão de conhecimentos. Pesquisa como produção de conhecimentos era atribuição dos historiadores cujas contribuições seriam transmitidas nas aulas desta disciplina escolar.
Sinais de esforços para mudanças nesse quadro, que predomina até a década de 1980 começaram a ser percebidos no contexto da abertura política que caracterizou o fim do regime militar e a instauração do processo de redemocratização do país. Novos tempos eram inaugurados e, entre os muitos desafios políticos, sociais, culturais e educacionais, a história a ser ensinada passou a se configurar como questão a ser enfrentada. Entendia-se que era chegada a hora de superar perspectivas anacrônicas do ponto de vista historiográfico presentes nos currículos e de viabilizar um ensino capaz de “formar cidadãos críticos e agentes de transformação social”.
Com base em Cuesta Fernandez (1998), alguns autores defendem que, no Brasil, pode-se definir uma periodização com quatro momentos de definição e redefinição do código disciplinar da História escolar: construção do código disciplinar da história no Brasil (1838-1931); consolidação do código disciplinar da história no Brasil (1931-1971); crise do código disciplinar da história no Brasil (1971-1984); reconstrução do código disciplinar da história no Brasil (1984-?). (SCHMIDT,2012, p.78).
De acordo com essa proposta, a partir de 1984, teria sido iniciado o período de “reconstrução do código disciplinar da história no Brasil” (SCHMIDT, 2012) período que pode ser caracterizado por um intenso movimento de renovação da seleção dos conteúdos a serem ensinados: de uma história tradicional a uma história militante, engajada; de uma história político-administrativa, a uma história econômica ou sociocultural; de uma forma de organização curricular linear para uma história temática, por eixos temáticos ou integrada; de metodologias de ensino baseadas em questionários, exercícios de memorização, para uma proposta de ensino baseada em problematizações e no uso de fontes que aproximam o ensino de história das perspectivas da história dos historiadores.
Assim, na década de 1980, críticas acentuadas à história ensinada foram apresentadas, partindo de diferentes grupos e por diferentes motivos. Mas o que podemos verificar é que a história “a ser ensinada” ou “ensinada” foi posta em questão, foi problematizada: no momento da retirada dos Estudos Sociais do currículo do então Primeiro Grau, optava-se pelo retorno das disciplinas História e da Geografia. Mas que História? Que Geografia?
Por outro lado, observou-se um investimento crescente de profissionais envolvidos com a formação de professores de história na busca de sua qualificação em cursos de mestrado e doutorado e que escolheram como objeto de pesquisa o ensino e a formação de professores nesta disciplina. Localizados em sua grande maioria em Faculdades de Educação, iniciaram a constituição de um campo – de uma área de pesquisa em ensino de história.
Este objeto, ao longo desses anos começou a receber atenção dos historiadores que até então, de maneira geral, não demonstravam maior interesse pelas questões educacionais. Ao longo dos anos 2000 temos observado um deslocamento da localização das disciplinas de Didática e de formação de professores para Departamentos, Faculdades e Institutos de História que buscam assumir a responsabilidade por esta formação e, em alguns casos, utilizando abordagens que buscam se diferenciar daquelas assumidas pelos pesquisadores localizados em Faculdades de Educação.
Este processo inaugura a afirmação de um novo código disciplinar? Ou estamos ainda em pleno processo de disputas pela reconstrução deste código? Como se configura este código? Que conhecimentos são objeto de ensino? Quais suas fontes? Como se configuram?
Essas questões problematizavam visões ainda muita arraigadas, no âmbito do que tem sido chamado “mito do descompasso” , de que o conhecimento ensinado nas disciplinas escolares se configura em síntese simplificada, reduzida e, portanto, factível de erros em relação ao “conhecimento acadêmico” propriamente dito, produzido por outros , no caso, os historiadores de ofício.
Paralelamente, neste período, testemunhamos mudanças significativas decorrentes, por um lado, da renovação dos estudos históricos produzidos com base em diferentes teorizações – da história social, história cultural, nova história política, história das ideias, estudos foucaultianos, – e do ponto de vista metodológico, as significativas contribuições das pesquisas realizadas no âmbito da chamada história oral e por meio de abordagens discursivas possibilitadas pelas contribuições de estudos realizados no âmbito da virada cultural e linguística.
No que se refere ao ensino da história, contribuições importantes começam a se fazer presentes a partir de pesquisas que se voltam para a investigação sobre a história desta disciplina escolar, sobre as estabilidades e mudanças na seleção dos conteúdos abordados, negados. Destacamos as pesquisas que se voltam para a especificidade do fazer curricular que torna possível a produção de conhecimentos que articulam contribuições dos conhecimentos historiográficos com saberes dos professores, estudantes, da cultura escolar e aqueles que circulam no âmbito das práticas sociais de referência e na sociedade de forma ampla. Produção contingencial, que se realiza para atender à necessidade de tornar significativos os conteúdos estudados para grupos de alunos específicos, tem nos conhecimentos historiográficos um referencial para validar a produção, e que se diferencia do senso comum ao incorporar fluxos dos conhecimentos científicos que atualizam e renovam os saberes e que, assim, possibilita avanços em relação a concepções preconceituosas e que reproduzem visões baseadas em perspectivas conservadoras construídas de forma colonizada.
Outro aspecto importante a ser destacado refere-se ao fato de que um número crescente de pesquisadores tem reconhecido, defendido e construído teorização que considera estruturante e incontornável o diálogo com autores da teoria da história para a investigação e compreensão dos processos de produção do conhecimento escolar. Questões sobre o tempo e temporalidades, narrativa histórica, sujeito histórico, fontes históricas, tempo presente, por exemplo, são necessárias de serem discutidas para a compreensão dos processos envolvidos na produção do conhecimento escolar no currículo.
Esse posicionamento implica pensar novos problemas, novos objetos… Como as questões do tempo presente têm sido abordadas nas aulas? Como têm sido estabelecidos diálogos que induzam a problematização e desnaturalização do social? Como desconstruir narrativas elaboradas com base em crenças, distorções e sem fundamentação científica? Como professores/as articulam os diferentes saberes para tornar possível de ser ensinadas e aprendidas questões e conteúdos que constituem o currículo escolar?
Além das questões envolvidas na instituição escolar, pesquisas têm se debruçado sobre a história ensinada em espaços não escolares e não formais de educação tais como museus, arquivos, mídias, audiovisuais, jogos, espaços urbanos, patrimônios, etc. Estudos muito instigantes têm sido produzidos com articulações potentes no âmbito da chamada história pública.
Enfim , o número de pesquisadores em ensino de história tem crescido o que demonstra, além do interesse, o reconhecimento do “ensino de” como espaço tempo estratégico de produção de saberes, culturas e, de ação política seja na desconstrução de narrativas autoritárias, racistas e excludentes, seja na afirmação das possibilidades de afirmação da importância de conhecer experiências históricas outras que nos constituem como sujeitos humanos que somos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERNANDEZ CUESTA, Raimundo. Clio en las aulas: la enseñanza de la Historia en España entre reformas, ilusiones y ruinas. Madrid: Akal, 1998.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira dos Santos. História do Ensino de História no Brasil: uma proposta de periodização. Revista História da Educação – RHE, Porto Alegre, v. 16, n. 37, p. 73-91, Maio/ago. 2012.
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