Episódio de hoje: O que aprendi com Carolina Maria de Jesus

 

Precisamos conversar: Entenda, o racismo nos destrói de maneira muito particular, ele nos convence de nossa inferioridade. Uma aluna negra tende a não acreditar prontamente em suas capacidades intelectuais, não fomos política e socialmente educadas para isso, e, se você quer que a sua aula seja de fato transformadora para ela, você precisa deixá-la reconhecer-se na bibliografia. Não se trata de uma acusação aos autores europeus, pelo contrario, não vejo problema nenhum em permanecer citando muitos deles, mas também não se trata de um presente, ou de uma doação. Representatividade importa, representatividade é sobre justiça e direito! A minha coluna trabalha o enfrentamento de crimes e preconceitos, e, a utilização das artes no Ensino de História, por isso reservei alguns “Episódios” à literatas negras. Quem sabe uma delas possa estar na sua próxima aula, e se não for o caso, quem sabe você se disponha a procurar e a encontrar uma autora preta essencial à sua bibliografia, existem várias… S2

 

O que aprendi com Carolina Maria de Jesus? A primeira vez em que ouvi falar desta autora preta que escreveu poemas e diários no Brasil do século XX, ainda estava no início da graduação. Tratava-se do meu primeiro evento acadêmico, não me lembro ao certo que ano era, mas sei que ainda não estava inserida em uma pesquisa. Me inscrevi para o Seminário, comprei a passagem para Juiz de Fora, escolhi a roupa ideal para cada dia. A palestra de abertura estava confirmada e o minicurso previamente decidido, mas e os simpósios temáticos? Qual deles acompanhar? Escolhi o de literatura, algo em mim já sinalizava a pesquisadora que me tornaria. Dentre as mais diferentes apresentações, entre livros futuristas e poesias do século XIX, lá estava uma historiadora que estudava a obra Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus.  Nunca tinha ouvido falar desta escritora, mas me encantei. Tratava-se das experiências de uma autora preta e favelada, não imaginava que pudessem publicar algo assim, naquele momento ainda não conhecia autoras negras, e muito menos alguém que as estudasse. Nem se quer tinha uma pesquisa para apresentar, mas o meu primeiro evento acadêmico não poderia ter sido melhor e mais transformador.

Para além do gosto pela literatura que não me saía da cabeça, iniciava ali a minha transformação intelectual. Embora eu já tivesse dito isso a mim, minha mente começava a gravar: “Mulheres negras são capazes de escrever”. Eu sei, parece uma constatação óbvia, mas ela só acontece com o reconhecimento e com a representatividade. É claro que é possível fazer o que ninguém ainda fez, mas descobrir que outras fizeram antes de mim me trouxe a força e a coragem para tentar, nasceu alguma coisa ali que passava a me dizer ao pé do ouvido: “Pode ir, você não está sozinha!” E o que a literatura de Carolina poderia representar? Aquela literatura representava muito mais do que a cor preta nas letras, representava a exposição da fome, do racismo e da hipocrisia social.

Ao voltar para a cidade de Mariana, procurei por aquela “nova” autora na internet. Lá encontrei muitos títulos sobre Carolina Maria de Jesus, alguns expunham a sua biografia, alguns diziam que havia sido uma grande escritora, e outros ainda pontuavam o pouco reconhecimento que uma autora como ela recebia ainda no século XXI. E não é verdade? Já estava na graduação quando a conheci, e como teria sido especial conhecê-la muito antes disso, já havia lido Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos e Clarisse Lispector, e porque não havia lido também as poesias de Carolina Maria de Jesus?

As suas poesias falam claramente sobre o medo que as pessoas sentiam dela. E como é que não sentiriam medo das denúncias feitas por uma escritora preta? As revoluções começam assim! E se a partir de Carolina outras pretas achassem que também poderiam falar? E se descobrissem que o silêncio também mata? E se quisessem escrever, contar as suas próprias histórias? Carolina desejava morrer e renascer em um país onde “predominasse o preto”, imagine só o risco que estas palavras carregavam. É muito mais seguro manter distância de palavras escritas assim, e porque não dizer de palavras catadas no lixo, se foi com os livros encontrados no lixo que Carolina aprendeu a ler. E se nas poesias Carolina expôs o medo que causava, em seu diário deixou registradas as marcas da escravidão.

Em Quarto de Despejo, descobrimos que Carolina desejava o básico para viver, queria comprar sapatos para filha, deixar de sentir-se escravizada “a custo da vida”, ter uma casa com água e esgoto encanado, e manter certa distância de políticos e patrões. Lendo o diário de Carolina, entendi que apenas alguém que passara fome pelo menos uma vez, poderia governar este país, porque, segundo ela, a fome além de ser “a pior coisa do mundo” era também uma professora. A obra mais famosa de Carolina Maria de Jesus não é costumeiramente estudada nas escolas, mas chegou a vender mais do que a Gabriela de Jorge Amado.[1] O Diário de uma favelada não interessa a todos os professores, mas ensina mais sobre a desigualdade social, a escravidão, e o racismo do que um conceito decorado ensinaria. Carolina Maria de Jesus era preta demais para ser embranquecida, e talvez seja por isso que o silêncio ainda lhe caia tão bem em determinados espaços pálidos da vida.

 

 

 


REFERÊNCIAS:

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960.

JESUS, Carolina Maria de, “Antologia pessoal”. (Organização José Carlos Sebe Bom Meihy). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996, p.174.

PIRES, Paulo Roberto. O dia em que Carolina Maria de Jesus acusou Jorge Amado. Vermelho. 03/ 08/ 2019.

 

 

 


NOTAS:

[1]PIRES, Paulo Roberto. O dia em que Carolina Maria de Jesus acusou Jorge Amado. Vermelho. 03/ 08/ 2019

 

 

 


Créditos na imagem: Revista Cult / Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/carolina-maria-de-jesus-textos-ineditos/

 

 

 

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