Experimentamos, dia após dia, a manutenção de regimes de poder que, ao escancararem os seus projetos de dominação, forjam sentidos, significados e modelos que restringem, de forma violenta, os parâmetros de vida. Nesse processo é possível identificar a articulação dos esvaziamentos como instrumentos de poder. Trata-se, no fim das contas, de uma política que depura sentidos, retira significados e se apropria das produções dos grupos subalternizados. Nessa dinâmica, os produtos desses grupos são palatáveis, desde que eles estejam distantes dos corpos estigmatizados.
O esvaziamento é um recurso eficaz, inclusive, em nossa memória colonial. A colonialidade, como circulação dos efeitos devastadores de uma política do terror, permite que sujeitos, produções, sentidos e técnicas sejam aniquilados. Esse projeto de execução revela os parâmetros bélicos e imorais do que se apresenta como norma, uma vez que essa mesma norma precisa destruir para se nutrir. Ao pensarmos, por exemplo, na apropriação cultural, reconhecemos uma intersecção necessária entre o racismo, o capitalismo e as ideologias coloniais que, ao negligenciar a presença do que se descentraliza da brancura, traduz um desejo destrutivo.
As técnicas racistas se beneficiam da articulação das imagens, da usurpação das narrativas e da instrumentalização das cosmoexperiências negras, desde que isso seja feito às escondidas como, por exemplo, se utilizar das religiões de matrizes africanas longe de registros oficiais, mas publicamente se alinhar aos discursos religiosos hegemônicos, corroborando, assim, a manutenção de autorizações discursivas e simbólicas. Em outra lente, o escondimento dá lugar à depuração, isto é, uma mudança radical de sentido, dada a desimportância dos registros culturais que se aportam na negritude. É por esse motivo que vemos as tentativas de transformar o acarajé de Iansã em “bolinho de jesus”, a capoeira em um registro “gospel” e o sucesso do axé, desde que ele seja apresentado por um corpo branco.
A apropriação cultural, enquanto fenômeno político, isto é, como sistema de poder que deve ser analisado estruturalmente ao largo dos discursos que tentam encerrar essa reflexão nos interditos e nas subjetividades, revela a necessidade de reconhecer que as quebras antirracistas devem recusar os processos de esvaziamentos estéticos, uma vez que neles também se justificam as violações de grupos apresentados como dissidentes. A apropriação cultural desnuda o desejo de dominação que empreende um “embranquecimento da cultura, como estratégia do genocídio” (WILLIAM, 2019, p. 23).
Localizar a reprodução do racismo por meio da expropriação radical do que afirma sujeitos e grupos vulnerabilizados permite que localizemos o roubo que, por vezes, se confunde com troca. Na troca, há reciprocidade; no roubo, ao contrário, há usurpação e manutenção das disparidades que, nesse registro colonial, ocorrem de modo assimétrico. Que sejamos capazes de honrar as nossas ancestrais e os nossos ancestrais que, a partir de sua presença inegociável, provocaram revoluções, inclusive estéticas.
REFERÊNCIAS
WILLIAM, Rodney. Apropriação cultural. São Paulo: Pólen, 2019.
Créditos na imagem: Divulgação.
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