Um dos mais marcantes fenômenos sociais que o Brasil conheceu no período da Proclamação da República (1889) e nas décadas imediatamente posteriores, foi o fatídico deslocamento de contingentes populacionais de regiões flageladas por ações humanas ou naturais para regiões mais bem providas de recursos, as conhecidas migrações internas, em especial o que se convencionou chamar de êxodo rural.
Em estudo sobre as crises da Monarquia, que tiveram repercussão direta no movimento republicano, Maria Theresa Petrone (1975) lembra que, entre as várias crises de natureza política, econômica, religiosa, institucional etc., instaura-se, a partir de meados do século XIX, uma crise social que se traduz, entre outras coisas, e em razão do colapso do sistema escravocrata, num novo equilíbrio demográfico, gerado por um processo intenso de migração interna, com os deslocamento de contingentes populacionais do Norte/Nordeste para o Centro-Sul.
Para além das ressonâncias e desdobramentos político-sociais que as migrações inevitavelmente acarretam, há que se registrar que, no plano simbólico, esse foi – aliás, tem sido até hoje! – um dos fatos históricos mais representados na literatura brasileira. O Sudeste, materializado, sobretudo, pelas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, contrasta, nesse âmbito da dramatização estética, com o Nordeste, da mesma maneira que “centro” e “periferia” ganham, no mesmo contexto, valores simbólicos imponderáveis. Para São Paulo descolam-se, a partir de Junco, no interior da Bahia, Nelo e Totonhim, protagonistas do romance Essa Terra (1976), de Antonio Torres, assinalando não apenas a dificuldades práticas que semelhante atitude apresenta, mas também o final trágico entrevisto nesse processo; o mesmo final trágico, diga-se de passagem, a que parece destinada Macabéa, protagonista de A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, cujo destino foi, desta vez, o Rio de Janeiro.
A despeito dos exemplos “contemporâneos” acima citados, os romances que melhor traduziram essa autêntica saga do deslocamento interno, retratando simbolicamente os fluxos migratórios no século XX, foram produzidos ao longo de sua primeira metade, durante o chamado neorrealismo brasileiro. É o caso de obras um tanto díspares, como Os Corumbas (1933), de Amando Fontes, romance “proletário”, que narra o deslocamento de parte da família que o protagoniza para a capital sergipana; e Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, em que os deslocamentos pelo sertão nordestino é, tout court, o mote estrutural da narrativa. Mais do que todos eles, contudo, é com O Quinze (1930), de Rachel de Queiroz, que esse tema adquire vigência plena em nossa produção literária e alcança um estatuto literário inigualável. Como lembra Luís Bueno (2006), em alentado estudo sobre o período, O Quinze pode ser considerado “o grande marco da renovação pela qual passaria o romance brasileiro na década de 30, porque foi capaz de construir uma síntese de uma série de questões relevantes. No aspecto temático, ao trabalhar com dois planos de narrativa fortemente ligados a um grande problema, aquilo que chamamos aqui de apego à terra, Rachel de Queiroz pôde tocar no drama da seca, na condição feminina e no processo de urbanização que começava a se generalizar no país, a partir de uma história extremamente simples” (p. 132).
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A partir, portanto, da década de 1930, a literatura brasileira conheceu sua primeira tendência estética de expressão, depois do retumbante advento da Semana de 22: trata-se de uma literatura de temática regionalista, centrada, sobretudo, no Nordeste e que tem como principal motivação questões sociais diversas: a “questão da terra”, a miséria e a fome, o retrato de um povo vitimizado pelas mazelas da natureza ou da ação humana seriam apenas alguns dos inúmeros motivos literários abordados por essa vertente de nossa produção que, no afã de realizar um quadro social das nossas áreas não urbanizadas, acabaram por legar à literatura nacional obras de cunho verdadeiramente cosmopolitas.
Romance neorrealista e regionalista, O Quinze pode ser considerado um dos mais relevantes inauguradores desta tendência, tendo como substrato temático a grande seca do Nordeste, ocorrida em 1915, a qual se projeta de modo contundente nas páginas tocantes desse romance; a narrativa sugere, outrossim, uma tomada de posição da autora, o que a coloca no centro da chamada literatura engajada, no sentido sartreano do termo (SARTRE, 1989), característica aliás fundamental dos romancistas da época (BOSI, 1978). É para São Paulo, por exemplo, que partem Chico Bento e sua família, ideia sugerida por Conceição, em cuja fala podemos depreender indícios claros da relação conflituosa entre as regiões nordeste e sudeste: “por que vocês não vão para São Paulo? Diz que lá é muito bom… Trabalho por toda parte, clima sadio… Podem até enriquecer” (QUEIROZ, 1972, p. 45); desta visão, aliás, participa também a própria figura de Chico Bento: “e lá não tem sezão, nem boto, nem jacaré… É uma terra rica, sadia (…) Eu já tinha ouvido contar muita coisa boa de São Paulo. Terra de dinheiro, de café, cheia de marinheiro…” (QUEIROZ, 1972, p. 63).
Obra marcada por uma grande tensão social, O Quinze deve ser analisado, contudo, sob uma ótica mais larga e diversificada, capaz de lhe conferir verdadeiro valor artístico-literário. Neste sentido, é possível também analisá-lo no que ele possui de mais controverso e polêmico: suas contradições, revelando-se um romance cuja trama se apoia inteiramente numa rede de dicotomias múltiplas a construir um autêntico fato dramático, podendo ser definido como uma espécie de narrativa de contrastes, onde ideias opostas entre si surgem lado a lado para conduzir a história a um termo definitivo e inesperado. O romance, enquanto objeto concreto, encontraria assim o seu desfecho, mas a temática tratada – e, principalmente, o substrato histórico-social em que ele se fundamenta, em especial a “questão da terra” -, essa seria infindável.
Os contrastes aqui aludidos são de natureza vária: personagens que se opõem, realidades físico-espaciais que se contrastam, gerações que entram em conflito, fatos psicológicos que se chocam. Somando tudo isso, O Quinze surge aos nossos olhos como um romance essencialmente marcado pela antítese, recurso literário prevalente em sua trama narrativa. Além disso, a descrição das personagens atingidas pela seca e pela saga inexorável da migração torna-o um romance verdadeiramente comovente, em que homens e mulheres, jovens e velhos e até crianças contribuem de forma definitiva para criar uma comoção generalizada, mas também uma atmosfera tétrica e algo grotesca.
Duas personagens ocupam o centro da narrativa: Conceição, a moça culta, que desfruta de uma posição privilegiada na sociedade local (na verdade, faz parte de uma espécie de classe média nordestina); e Chico Bento, matuto pobre e ignorante, que passa da condição de vaqueiro à de retirante. Como se trata de um romance que busca privilegiar a temática da migração, das agruras sofridas pelo sertanejo e motivos afins – realidades vividas mais intensamente por Chico Bento do que por Conceição, é verdade -, é aquele, e não esta, que deve ser considerado o verdadeiro protagonista de O Quinze: de fato, Chico Bento é a personagem mais trabalhada, literariamente falando, ao longo de toda a narrativa, tendo não apenas seu perfil físico, mas também o psicológico, traçado pela autora com inigualável maestria.
Na verdade, a figura de Conceição destaca-se da maioria das personagens não exatamente pelo seu aspecto físico ou psicológico, mas antes pelas ideias e opiniões que procura divulgar e um pouco também pela ação altruísta que a autora lhe confere – suas ideias, neste sentido, destoam do chamado “senso comum”, revelando um avanço sensível no que concerne à tipologia das relações estabelecidas no seio daquela sociedade:
“Conceição tinha vinte anos e não falava em casar (…) Talvez tivesse umas idéias; escrevia um livro sobre pedagogia, rabiscara dois sonetos e, às vezes lhe acontecia citar o Nordau ou o Renan da biblioteca do avô (…) Chegara até a se arriscar em leituras socialistas, e justamente dessas leituras é que lhe saíam as piores das tais idéias, estranhas e absurdas à avó” ((QUEIROZ, 1972, p. 35).
São, como podemos perceber, as ideias escassas inspiradas num ideário socialista que fazem de Conceição uma personagem diferente das mulheres que viviam naquele tempo, pelo menos da maioria delas. Assim, não falta a Conceição laivos de um feminismo incipiente, uma realidade que só iria adquirir plena força quase meio século depois e, principalmente, nos grandes centros urbanos. Por isso, não é difícil encontrar, nas páginas de O Quinze, manifestações diversas acerca do papel da mulher na sociedade brasileira. A posição assumida por Conceição dentro da narrativa revela-nos, de início, um fato insólito: mulher culta, aparentemente sem preocupações financeiras e que, afinal de contas, optou pela liberdade individual, ao renegar a vida doméstico-familiar, esta personagem não se enquadra no universo comum às mulheres de seu tempo e espaço, desfrutando de uma condição social francamente privilegiada.
O mesmo não se pode dizer de Chico Bento, que, em muitos aspectos, é o oposto de Conceição: autêntico nordestino, agrupando em si muitas das características do homem de sua época e de seu espaço (a humildade, o orgulho viril, a fé cristã etc.), Chico Bento representa o modelo acabado do retirante sertanejo, que, no romance de Raquel de Queiroz, leva-nos obrigatoriamente a pensar nas figuras humanamente patéticas dos quadros de Portinari. Certamente, não é todo sertanejo que tem a “sorte” de ser apadrinhado por Luiz Bezerra e de Conceição, ambos contribuindo para amenizar o sofrimento do pobre homem – mas esta é uma exceção que apenas confirma outra regra, a de que a maioria dos retirantes tem de enfrentar, sozinhos e com os seus próprios e escassos recursos, a trágica realidade da seca.
Homem sonhador por excelência, Chico Bento é também um ser profundamente religioso, de quem a autora nos apresenta um quadro comovente: “Chico Bento arrastava os pés, curvado, trêmulo, com a lata na mão estendida, habituado já ao gesto, esperando a esmola” (QUEIROZ, 1972, p. 72). Descrição, aliás, que, em muitos sentidos, lembra o protagonista de Vidas Secas, romance já aludido de Graciliano Ramos.
Novamente, por meio da descrição da personagem, a autora nos revela sua condição social: pobre, ignorante, vivendo de favores e sofrendo as misérias da seca, Chico Bento representa, como dissemos há pouco, a figura típica do retirante nordestino que, ao contrário de Conceição, encontra pouca oportunidade de melhorar sua situação.
Tudo isso no remete à tese que vínhamos defendendo desde o princípio: a disposição das personagens no romance, a relação que elas estabelecem entre si, enfim, sua descrição revelam o flagrante contraste que permeia toda esta obra de Raquel de Queiroz, materializado nas figuras visivelmente antitéticas de Conceição e Chico Bento.
Não é apenas no que diz respeito às personagens que podemos entrever esta característica de O Quinze – também em relação à realidade físico-espacial que envolve a trama emergem os contrastes, principalmente reforçados pela tradicional dicotomia campo/cidade: de um lado, o espaço físico culto, civilizado e desenvolvido; de outro lado, o ambiente rude, marcado pela ignorância e pelo atraso. Aliás, é exatamente a caracterização do cenário nordestino – com suas estradas pedregosas e vermelhas, cortando a caatinga morta; ou com sua paisagem cinzenta, embrutecida pela vegetação semidevastada; ou ainda com seus pastos e várzeas esqueléticos – que confere ao romance a sua cor local, de onde advém a temática estruturante do êxodo rural.
Contrastante, portanto, parece ser ainda a realidade que exprime dois fatos oponentes: a vontade de ficar (lembremos que tanto Curdulina quanto Chico Bento sofrem pelo simples fato de terem de migrar) e o imperativo de partir; não é outra a perturbação de Vicente, inversamente dividido entre a necessidade de permanecer e o impulso de retirar-se, ainda que seja para o desconhecido, para o inatingível. Nesse sentido, a obra de Rachel de Queiroz, pelos contrastes e antíteses que apresenta, engendra uma visão “real” do drama nordestino, sem lançar mão, como diz Agripino Grieco, em sua Evolução da Prosa Brasileira (1969), dos lugares comuns a que esse assunto pode induzir.
Em poucas palavras, pode-se concluir que as oposições presentes na obra desembocam, diretamente, na crítica social, na condenação de uma sociedade maniqueísta, que atua na produção de contradições sociais visíveis, valorizando o que considera bom e condenando o que lhe parece ruim, ou seja, fazendo um julgamento moral da realidade circundante, conjugando crítica e contraste. De resto, esse “apelo” social já se tornara uma marca singular da geração de romancistas da qual Raquel de Queiroz fazia parte, como já aludimos anteriormente. De uma relação antitética entre os elementos do romance, chega-se a uma relação conflituosa entre os componentes de nossa própria realidade social. E a migração nordestina é apena um dos capítulos desse drama humano.
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo Bosi. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1978.
BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo/Campinas, Edusp/Unicamp, 2006.
GRIECO, Agrippino. Evolução da Prosa Brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1969.
PETRONE, Maria Theresa Schorer. “As Crises da Monarquia e o Movimento Republicano”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Universidade de São Paulo, São Paulo, No. 16: 31-41, 1975.
QUEIROZ, Raquel de. O Quinze. Rio de Janeiro, José Olympio, 1972.
SARTRE, Jean Paul Sartre. Que é Literatura? São Paulo, Ática, 1989.
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Maurício Silva
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